Cristo Pantocrator

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Um tesouro de conhecimento divino

O texto que postarei agora é de São Pedro de Damasco. A edição da Philokalia que eu me sirvo é a inglesa (London, Faber and Faber, 1984, first edition, III volume, pag. 70 a 207).
Devido a amplitude do texto, vou postar aqui a Introdução ao texto. Cada novo tópico do Tesouro postarei em nova postagem, para assim facilitar a vida dos leitores. Isso porque o texto é didivido em muitos tópicos e é perfeitamente possível a leitura de um independente de outro, tal como ocorreu com o texto das doenças espirituais de São João Cassiano.

"Os trabalhos de São Pedro de Damasco ocupam mais espaço na Filocalia que qualquer outro, perdendo apenas para São Máximo Confessor. Pouco se sabe da vida e identidade do autor, a não ser por aquilo que ele próprio escreveu. São Nicodemos o identifica com certo bispo Pedro Hieromartir, comemorado dia 9 de fevereiro, que sofreu em defesa dos santos ícones em meados do século oitavo: sua língua foi cortada e ele morreu no exílio no Sul da Arábia. No entanto, é provável que o autor do texto da Filocalia seja outro Pedro, já que este autor cita Simeão Metaphrastis, que morreu no décimo século.  Parece mais provável que ele seja do século XI ou mesmo XII; ele é definitivamente anterior à controvérsia hesicasta. Apesar de ter vivido um período de agravamento entre a Ortodoxia e Roma, ele nunca alude a isto. (...)

Ele é evidentemente um monge, escrevendo para outros monges. Ele fala de três tipos de monasticismo - a obediência corporal' em uma comunidade plenamente organizada, a vida eremita, e o caminho intermediário ou semi-eremita, com dois ou três monges perseguindo uma vida de silêncio. Talvez tenha sido esta a forma de monasticismo que ele mesmo seguiu. O conteúdo de seu trabalho confirma isto: ele fala pouco sobre os aspectos comunitários ou sociais da vocação monástica, pouco sobre a hospitalidade e os serviços litúrgicos. Ele se interessa com a ascese pessoal e a oração individual hesicasta; e ele não encara a vida de alguém que é completamente solitário, já que frequentemente menciona os "irmãos". (...)

Como é de se esperar, o trabalho de São Pedro não é sistemático. Apesar dele fazer uso de vários esquemas gerais - as quatro virtudes cardeais, os oito pensamentos demoníacos, as sete ações corporais e os oito estágios da contemplação - há constantes repetições, digressões e mudanças de temas. (...)

Em seus ensinamentos espirituais, São Pedro é moderado. Ainda que escreva para monges, ele insiste que a salvação e o conhecimento espiritual estão no interior de cada um e que a oração contínua é possível em todas as situações sem exceção. Ainda que enfatize a necessidade do esforço ascético, ele nunca subestima a extrema importância da ajuda divina. Tudo o que temos é um dom da Divina Graça. Lágrimas, compunção, dor são frequentemente mencionados, especialmente nos oito primeiros estágios da contemplação; mas a nota predominante é de esperança, e ele tem muito a dizer sobre a finalidade universal do amor de Deus e a liberdade soberana da vontade humana" (Philokalia, Opus Cit, pags. 70 a 72).

Um tesouro de conhecimento divino
Introdução

Por conta da Graça de Deus foi-me concedido muitos grandes dons, ainda que eu não tenha feito nada de bom por mim mesmo, e assim acabei temendo que por minha preguiça e indolência eu esquecesse Suas bençãos - bem como minhas próprias falhas e pecados - e assim não Lhe rendesse graças ou mostrasse minha gratidão de alguma forma. Deste modo, escrevi este tratado como forma de repreender minha alma infeliz, de ilustrar o que veio a mim através da vida e obra dos santos padres, citando-os pelo nome, para que isso me sirva como um lembrete de suas palavras, mesmo que minha lembrança seja incompleta.

Como eu mesmo não possuo nem nunca possuí qualquer livro, eu os tenho pego emprestado com alguns amigos devotos, que também me ajudam em minhas necessidades físicas; e depois de passar por estes livros com muito cuidado, por amor a Deus, os tenho devolvido aos seus proprietários. Estes livros incluem antes de tudo o Antigo e Novo Testamento, isto é, o Pentateuco, o Saltério, os quatro livros dos Reis, os seis livros da Sabedoria, os Profetas, as Crônicas, os Atos dos Apóstolos, os Santos Evangelhos e os comentários de todos estes; e então todos os escritos dos grandes padres e mestres - Dionísio, Atanásio, Basílio, Gregório o Teólogo, João Crisóstomo, Gregório de Nissa, Antônio, Arsênio, Macário, Nilo, Efrém, Isaac, Marcos, João de Damasco, João Clímaco, Máximo, Doroteu, Filimon, como também as vidas e ditos de todos os santos.

Eu percorri por todos eles acuradamente e diligentemente, tentando descobrir a raiz da destruição do homem e a salvação, e quais de suas ações e práticas lhe trazem ou não a salvação. Eu quis encontrar o que todo mundo busca, e como as pessoas serviam a Deus no passado, e ainda O servem nos dias de hoje, na riqueza ou na pobreza, vivendo entre muitos pecadores ou na solidão, no casamento ou no celibato: como, simplesmente, em toda circunstância e atividade encontramos vida ou morte, salvação ou destruição. Mesmo entre nós, monges, há diferentes situações: obediência ao pai espiritual em todas as matérias referentes ao corpo ou à alma; silêncio que purifica a alma; aconselhamento espiritual no lugar da obediência; o ofício de abade ou de bispo. Em cada uma destas situações, alguns encontram a salvação e outros perecem.

Isto em si mesmo me deixava atônito; mas eu estava atônito também com a queda dos primeiros anjos no céu, imateriais por natureza, vestidos de sabedoria e de todas as virtudes, que subitamente tornaram-se demônios, enegrecidos e ignorantes, o princípio e fim de todo mal e malícia. E então houve Adão, que gozou de muita  honra e de muitas bençãos, tal era sua familiaridade com Deus, que foi adornado com sabedoria e virtude, sozinho no paraíso com Eva: ele subitamente tornou-se um exilado, cheio de paixões, mortal, forçado ao labor com suor e aflição. Dele brotou os únicos dois irmãos no mundo, Caim e Abel; e entre eles triunfou a inveja e o engano, e estes deram nascimento ao assassinato, maldição e terror. Eu estava atônito também pelos seus descendentes, cujos pecados foram tantos que eles provocaram o dilúvio; e então Deus em Sua compaixão salvou alguns na arca, um deles - Canaã - foi amaldiçoado, ainda que tivesse sido seu pai Cão que tivesse pecado: e para assim não revogar  a benção de Deus, o justo Noé amaldiçoou o filho no lugar do pai (cf. Gênesis 9: 22-27). Então houve a torre de Babel, o povo de Sodoma, os Israelitas, Salomão, os Ninivitas, Geazi, Judas e todos aqueles que foram dotados com bençãos e mesmo assim retornaram ao pecado.

Eu também estava atônito no modo como Deus, que é bom além de toda a bondade e pleno de compaixão, permite todos os muitos e variados tipo de aflição e provação no mundo. Alguns Ele permite como  sofrimento que conduz ao arrependimento. Estes incluem fome, sede, dor, privação do que é necessário à vida, abstinência do prazer, o desperdício do corpo por meio do asceticismo, vigílias, labores, fadiga, prolíferas lágrimas amargas, angústia, medo da morte, exame de consciência, medo de ser chamado a prestar contas, de viver no inferno com os demônios, o temível dia do juízo, a ignomínia que está prestes a cair sobre o mundo inteiro, o terror, a busca amarga e a avaliação dos atos de cada um, palavras e pensamentos, ameaças e a ira; e em adição a tudo isso, as várias eras de punição, o lamento inútil e as lágrimas incessantes; as trevas do desamparo, o medo, a dor, o exílio, o desalento, a opressão, o estrangulamento da alma neste mundo e no próximo. E então há ainda todos estes perigos a serem enfrentados neste mundo: naufrágios, doenças de todo tipo,  relâmpagos, trovões, granizo, terremoto, fome, maremotos, mortes intempestivas - todas as coisas dolorosas que Deus permite que nos aconteçam contra  nossa vontade.

Outras coisas não são desejadas por Deus mas por nós mesmos ou pelos demônios. Estas incluem batalhas, paixões, toda série de pecados da loucura ao desespero e a destruição final, das quais falará nosso tratado em seguida; o ataque de demônios, guerras, tirania das paixões, negligências, desarticulação e vicissitudes na vida, temor, calúnia e todas as aflições que nós, por nossa própria vontade, transmitimos uns aos outros contra a vontade de Deus. Novamente estava alarmado como, por assalto de tais demônios, ainda assim muitos conseguissem ser salvos, e que nada era capaz de deter este fato. E por outro lado também, muitos pereceram contra a vontade de Deus.

Quando, de meu estudo laborioso das Escrituras, eu me tornei consciente de todas estas coisas, e mais ainda, minha alma foi destruída, senti-me tão impotente quanto água derramada. Eu não compreendi plenamente o significado daquilo que li; de fato, tivesse eu compreendido, não poderia permanecer nesta  vida, cheio de pecados e desobediência a Deus tal como me encontrava, pois é exatamente isso o que produz todos os males deste mundo e do vindouro. Não obstante, por meio da Graça de Deus, eu tive as respostas  que procurava, e vi, de minha leitura dos santos padres, que temos de fazer certas distinções.

Primeiro, nós devemos reconhecer que o início de todo o desenvolvimento espiritual é o conhecimento natural dado por Deus, isso vem quer através da Escritura, quer do agir humano, ou por meio do anjo que é dado no batismo divino para proteger a alma de cada crente, atuando como sua consciência e lembrando-o dos mandamentos divinos de Cristo. Se a pessoa batizada guarda estes mandamentos, a graça do Espírito Santo é preservada Nela. 

Então, juntamente com o conhecimento, há nossa capacidade para escolher. Este é o início de nossa salvação; por nossa livre escolha nós abandonamos nossos próprios desejos e pensamentos e fazemos o que Deus deseja e pensa. Se temos sucesso ao fazer isso, não há objeto, nem atividade ou lugar em toda a criação que possa nos prevenir de nos tornarmos o que Deus desde o início desejou que fôssemos: isto quer dizer, de acordo com Sua imagem e semelhança, deuses por adoção através da graça, desapegados, justos, bons e sábios, ainda que rico ou pobre, casado ou celibatário, em autoridade e livre ou sob a obediência e escravidão _ em suma, qualquer que seja a nossa época, lugar, ou atividade. Isto é porque, antes da lei, sob a lei e sob a graça, havia muitos homens justos _ homens que preferiram o conhecimento de deus e Sua vontade a seus próprios pensamentos e desejos. Ainda que houvesse também muitos que nas mesmas circunstâncias e tempos tenham perecido, por terem preferido seus próprios pensamentos e desejos àqueles de Deus.

É esta então a pintura geral. Mas atividades e situações variam, e alguém necessita adquirir discernimento, ou pela humildade dada por Deus ou pelos questionamentos daqueles que possuem os dons do discernimento. Pois sem discernimento nada do que venha acontecer será bom, mesmo se nós em nossa ignorância pensamos que seja. Mas quando por nosso discernimento aprendemos como está em nosso poder obter aquilo que desejamos, então é neste momento que começamos a nos conformar com a vontade de Deus.

Apenas quando, como foi dito, em todas as coisas que buscamos, renunciamos nossa própria vontade,  atingimos a meta que Deus estabeleceu para nós e agimos de acordo com o que Ele deseja. A menos que façamos isto, nós não podemos ser salvos. Pois já desde a transgressão de Adão nós estamos sujeitos a paixões por causa de nossa presente associação a elas. Nós não perseguimos alegremente a bondade, nem temos tempo para o conhecimento de Deus, nem fazemos o bem por amor, desapegadamente; ao invés disso nós agarramos nossas paixões e nossos vícios e não aspiramos a tudo o que é bom a não ser por medo do castigo. E este é o caso com aqueles que recebem a palavra de Deus com firme fé e propósito. O restante de nós nem sequer aspira a este propósito, mas levamos em conta apenas as aflições desta vida e as punições que virão não são levadas em consideração e de todo o coração permanecemos escravos das paixões. Alguns de nós não percebe nosso apuro desesperador, e apenas sob constrangimento e com relutância se engaja na batalha pela virtude. E em nossa ignorância temos tempo apenas para o que merece nosso ódio.

Como pessoas doentes necessitam de cirurgia e cauterização para recobrar a saúde que perderam, assim nós necessitamos de provações e ferramentas de arrependimento, e temor à morte e do castigo, para que assim nós possamos recuperar nossa primeira saúde de alma e sacudir a doença que nossa loucura nos induziu. Quanto mais o Médico de nossa alma nos concede sofrimento voluntário e involuntário, mas devemos ser gratos a Ele por Sua compaixão e aceitar o sofrimento alegremente. Pois é para nos ajudar que Ele aumenta nossa tribulação, tanto por sofrimento que alegremente abraçamos por nosso arrependimento e pelas provações e punições não sujeitas à nossa vontade. Neste sentido, se nós aceitamos voluntariamente as aflições, nós seremos libertos de nossa doença e da punição que virá, e talvez mesmo da punição presente. Mesmo quando não somos gratos, nosso Médico em Sua graça irá nos curar, ainda que por meio de castigos e provações diversas. Mas se nós nos apegamos à nossa doença e persistimos nela, nós merecidamente traremos sobre nós mesmos duradoura punição. Nós teremos feito de nós mesmos demônios e assim justamente compartilharemos com eles a punição duradoura preparada para eles; pois, tal qual eles, nós teremos escarnecido de nosso Benfeitor.

Nós não recebemos bençãos no mesmo sentido. Alguns ao receber o fogo do Senhor por meio de Sua palavra, a colocam em prática e se tornam mais suaves de coração, como cera, enquanto outros pela preguiça tornam-se mais duros do que argila e pedra. E ninguém nos obriga a receber estas bençãos em diferentes sentidos. É como o sol cujos raios iluminam todo o mundo: a pessoa que quer vê-lo pode fazê-lo, enquanto a pessoa que não quer ver, não é forçada a isto, de modo que só ele é culpado por sua condição sem luz. Pois Deus fez tanto o sol quanto os olhos do homem, mas como o homem os usa depende apenas dele. De modo similar, então, Deus irradia conhecimento a todos e ao mesmo tempo Ele nos dá a fé como um olho por meio do qual nós podemos percebê-lo.

Se escolhemos compreender este conhecimento firmemente por meio da fé, nós podemos nos manter atentos de pô-lo em prática; e Deus então nos dá maior ardor, conhecimento e poder. Pois nossa busca por conhecimento natural  acende nosso ardor, e este ardor aumenta nossa capacidade de pôr o conhecimento em prática. Ao colocá-lo em prática nos mantemos atentos a ele, e ele por sua vez nos induz a praticá-lo em uma extensão maior. A maior prática é recompensada pelo maior conhecimento; e do entendimento assim adquirido nós ganhamos controle sobre as paixões e aprendemos a como suportar nossos sofrimentos pacientemente. Sofrimentos produzem devoção a Deus e o reconhecimento de Seus bens e de nossas faltas. Estes dão nascimento à gratidão, e gratidão inculca temor a Deus que nos conduz à guarda dos mandamentos, a uma tristeza interior, à mansidão e à humildade. Estas três virtudes produzem discernimento, que nos dá um insight espiritual e torna possível para o intelecto em sua pureza a prever falhas próximas e a preveni-los através de sua experiência e lembrança do que aconteceu no passado e desta forma se proteger contra ataques furtivos. E tudo isso gera esperança, e da esperança vem o desapego e o amor perfeito.

Uma vez que tenhamos avançado assim nós não desejaremos qualquer coisa que não seja a vontade de Deus; de preferência nós abandonaremos alegremente esta vida transitória fora do amor a Deus e aos nossos irmãos. Através da sabedoria e habitação do Espírito Santo e pela adoção filial, nós somos crucificados com Cristo e queimados com Ele, e nós nascemos com Ele e ascendemos com Ele espiritualmente por imitar Seu modo de vida neste mundo. Para falar simplesmente, nós nos tornamos deus por adoção através da graça, recebendo o penhor da eterna benção, como diz São Gregório, o Teólogo (São Gregório de Nazianzo). Neste sentido,  considerando os oito tipos de maus pensamentos (veja as primeiras postagens deste blog e as 8 doenças de que falou São João Cassiano), nós nos tornamos desapegados, justos, bons e sábios, tendo Deus em nós mesmos - como o próprio Cristo nos falou (cf. João 14; 21-23) - através da guarda dos mandamentos em ordem, do primeiro ao último. Eu falarei abaixo sobre como os mandamentos devem ser praticados.

Uma vez que mencionamos o conhecimento das virtudes, nós também falaremos sobre as paixões. Conhecimento vem como a luz do sol. O homem tolo através da falta de fé ou da preguiça deliberadamente fecha seus olhos - isto é, sua faculdade de escolha - e uma vez que consigna o conhecimento ao esquecimento por conta de sua indolência ele falha ao pô-lo em prática. pois tolice gera indolência, que gera inércia e logo esquecimento. Esquecimento conduz ao amor próprio - o amor de si mesmo e dos próprios pensamentos - que é o equivalente ao amor do prazer e do louvor. Do amor de si vem a avareza, a raiz de todos os males (cf. Timóteo 6;10), pois ela nos enreda nos assuntos do mundo e neste sentido conduz a completa falta de consciência acerca dos bens de Deus e de nossas faltas. E assim os oito vícios tomam residência em nós; glutonaria, que conduz à falta de castidade, que gera avareza, que dá nascimento à ira quando deixamos de obter o que nós queremos - isto é, falhamos em ter nosso próprio caminho. Isto produz dejeção, e dejeção engendra primeiro apatia e então autoestima; e autoestima conduz ao orgulho. Destas oito paixões vêm todo mal, paixão e pecado. aqueles consumidos por elas são levados ao desespero e posteriormente à destruição; eles caem longe de Deus e se tornam como demônios, como já foi dito.

O homem se vê numa encruzilhada entre retidão e pecado e ele escolhe o caminho que o agrada. Mas após o caminho que ele escolheu seguir, vêm os seus guias, ou anjos e santos ou então demônios e pecadores, que o conduzirão para o fim, mesmo que ele não tenha nenhuma desejo de ir até lá. os bons guias o conduzirão para Deus e o reino dos Céus, os maus guias o conduzirão para o mau e a punição vindoura. Mas nada nem ninguém é  culpado por nossa destruição, senão nossa própria livre vontade. Pois Deus é Deus de salvação, conferindo-nos, além de ser e bem estar, o conhecimento e força que nós não podemos ter a não ser pela Graça de Deus. Nem mesmo o demônio pode destruir um homem, compelindo-o a escolher erradamente, ou reduzindo-o à impotência ou à ignorância forçada, ou a qualquer outra coisa: ele pode apenas sugerir o mal ao homem.


Assim, aquele que age corretamente deve atribuir a graça de agir assim a Deus, pois juntamente com o nosso ser, Ele nos deu todo o resto. Mas a pessoa que optou pelo caminho do mal, e atualmente faz o mal, deve culpar apenas a si mesmo, pois ninguém pode forçá-lo a cometê-lo, uma vez que Deus o criou com livre vontade. Uma vez que ele merecerá o louvor de Deus por ter escolhido o caminho da bondade; pois ele age assim não a partir de qualquer necessidade de sua natureza, como é o caso com coisas animadas e inanimadas que participam passivamente em bondade, mas como convém a um ser que Deus honrou com os dons da inteligência. Nós mesmos deliberadamente e intencionalmente escolhemos o mal, sendo treinados nele por sua descoberta. Deus, que é bom além de toda bondade, não nos força, para não sermos forçados e ainda desobedecer e sermos ainda mais culpados. nem tira Ele de nós a liberdade que em Sua bondade Ele nos concedeu.

Aquele que quer agir corretamente, rogue a Deus em oração, e conhecimento e poder lhe serão dados. Neste sentido será evidente que a Graça concedida por Deus foi dada justamente; pois foi dada pela oração, ainda que pudesse ter sido dada sem ela. Nenhum louvor, porém, é devido ao homem que aceita o ar por meio do qual vive, sabendo que sem ele sua vida seria impossível; preferencialmente ele mesmo deve graças ao seu Criador, que lhe deu nariz e a saúde para respirar e viver. Similarmente, ele também deve agradecer a Deus por causa de Sua graça o fato de que Ele criou nossa oração, nosso conhecimento, nossa força, nossa virtude, todas as nossas circunstâncias e nós mesmos. E não apenas Ele fez isso tudo, mas Ele sem cessar faz o que quer que Ele possa para vencer nossa fraqueza e aquela de nossos inimigos, os demônios.

Mesmo o demônio, tendo perdido o conhecimento de Deus, e assim inevitavelmente tornando-se ignorante em sua ingratidão e orgulho, não pode ele mesmo saber o que fazer. Pelo contrário, ele vê o que Deus faz para nos salvar e maliciosamente aprende disto e inventa coisas similares para a nossa destruição. Pois ele odeia Deus, e sendo incapaz de lutar com Ele diretamente, ele luta contra nós que somos a imagem de Deus, pensando em vingar-se de Deus deste modo; e, como diz São João Crisóstomo, ele nos encontra obedientes para sua vontade. Por exemplo, ele vê como Deus criou Eva como ajudante de Adão, e assim ele alista a cooperação dela para causar desobediência e transgressão. Ou, novamente, Deus deu um mandamento de modo a manter Adão consciente dos grandes presentes que recebeu e agradecer seu benfeitor por eles; mas o demônio fez destes mandamentos o ponto de partida da desobediência e da morte.  A despeito dos profetas, ele promove falsos profetas; a despeito dos apóstolos, falsos apóstolos; a despeito da lei, ausência de lei; a despeito das virtudes, vícios; a despeito dos mandamentos, transgressão; a despeito da justiça, tolas heresias.

Em adição a isto, quando o diabo viu descender de Cristo os santos mártires e os pais reverenciados, aparecendo em Si mesmo ou por meio de anjos ou de alguma outra forma inefável, ele começou a fabricar ilusões numerosas, a fim de destruir as pessoas. É por conta disso que os pais em seu discernimento, escreveram que não devemos prestar qualquer atenção a tais manifestações diabólicas, se elas procedem de imagens, ou luz, ou fogo, ou alguma outra forma enganosa. pois o demônio pode nos enganar no sono ou pelos sentidos. Se aceitamos tais ilusões, ele faz o intelecto, em sua ignorância total e vaidade, perceber várias formas ou cores para que assim pensemos ser isto uma manifestação de Deus ou de um anjo. Frequentemente no sono, ou quando nossos sentidos estão acordados, ele nos mostra demônios que são aparentemente derrotados. Em suma, ele faz o que pode para nos destruir por nos fazer sucumbir a estas ilusões.

A despeito de tudo isso, o demônio cairá em sua proposta se nós aplicarmos o conselho dos santos padres: durante o tempo da oração, nós devemos manter nosso intelecto livre de forma, figura e cor e não dar acesso a qualquer coisa que seja, se luz, fogo ou qualquer outra coisa mais; e que nós devemos fazer tudo o que pudermos para confinar nossa mente somente nas palavras que estamos dizendo, já que aquele que ora apenas com a boca lança palavras ao vento e não a Deus. Pois, diferente dos homens, Deus é atento ao intelecto e não às palavras ditas. Nós devemos venerar, é dito, 'em espírito e em verdade' (João 4;24) e novamente, "Eu prefiro falar cinco palavras cujo significado eu entenda do que dez mil palavras em uma língua estranha" (1 Cor. 14: 19).

É agora que o demônio, tendo falhado em todos seus outros esquemas, nos tenta com pensamentos de desespero: ele tenta nos persuadir que no passado as coisas eram diferentes e que os homens por quem Deus realizou maravilhas para o fortalecimento da fé não eram como nós. Ele também nos fala que agora não há necessidade de tais esforços. Pois já não somos agora todos Cristãos batizados? "Aquele que crer e for batizado será salvo" (Marcos 16:16). Do que mais temos necessidade? Mas se nós sucumbirmos a esta tentação e permanecermos como nós somos, nós ficaremos completamente estéreis. Nós seremos Cristãos apenas de nome, não percebendo que aquele que creu e foi batizado deve manter todos os mandamentos de Cristo; e mesmo aquele que for capaz de realizar isso, ele deve dizer, "Eu sou um servo inútil" (Lucas 17:10), como o Senhor falou aos Seus apóstolos quando Ele os instruiu a realizar tudo o que Ele tinha previsto para eles.

Todo aquele que for batizado renuncia ao demônio dizendo, "Eu renuncio a satanás e todas as suas obras, e unir-me a Cristo e a todas as suas obras." Mas onde está sua renúncia, se você não abandona toda paixão e desiste de todo pecado que o demônio promove? Em vez disso, odiemos tais coisas com toda a nossa alma e mostremos nosso amor a Cristo através da guarda de seus mandamentos. E como nós guardaremos Seus mandamentos a menos que nós abandonemos nossa própria vontade e pensamento - a vontade e o pensamento, ou seja, aqueles que são opostos aos mandamentos de Deus?

Há frequentemente pessoas que, por causa do temperamento pessoal ou por hábito, de fato escolhem o que é bom em determinadas situações e odeiam o que é mau. E há também bons pensamentos, como atestam as Escrituras, apesar deles requererem o discernimento daqueles que possuem experiência; pois sem discernimento mesmo aqueles pensamentos que parecem bons não são de fato bons, ou chegam na hora errada, ou são desnecessários, ou indignos, ou não são adequadamente compreendidos.  Para tanto, a menos que a pergunta e aquele que se questiona sejam atentos não só às Escrituras, mas também à questão levantada, eles vão perder o sentido do que foi dito e o dano resultante será grave. Eu mesmo tenho encontrado isso freqüentemente, ao mesmo tempo com relação à pergunta e ao que é questionado; e depois de ter entendido o verdadeiro significado da passagem em discussão, fiquei espantado em aprender como as palavras podem ser as mesmas, mas o significado muito diferente.

Assim necessitamos discernir em todas as coisas se nós sabemos como agir e como fazer a vontade de Deus. Pois Deus, como criador de todas as coisas, conhece nossa natureza completamente e ordenou todas as coisas para nosso benefício; e Ele estabeleceu leis que estão de acordo com nossa natureza e não são estranhas a ela, ainda que não sejam capazes de conduzir à perfeição aqueles que voluntariamente aspiram a atingir Deus em um sentido que transcenda a natureza. Pois isto requer mais do que qualidades naturais de virgindade, pobreza voluntária, humildade - não apenas gratidão, que é natural. A humildade é mais do que natural já que o homem humilde busca toda virtude e ainda que não tenha dívidas, ele se reconhece como o maior devedor de todos. A pessoa grata, por outro lado, irá reconhecer apenas o débito que possui. Similarmente, o homem merecedor, que realiza seus atos de caridade mas se inspira em suas posses, permanece dentro dos limites da natureza, e não vai além dela como a pessoa que dá tudo o que possui. Novamente, o casamento é natural, enquanto a virgindade é mais do que uma graça natural. A pessoa que permanece nos limites da natureza é salva se ela abandona sua própria vontade e cumpre aquela de Deus; mas à pessoa que transcende estes limites, Deus dará a coroa da resistência e da glória, porque ele renunciou não apenas ao que é proibido pela lei mas também, com a ajuda de Deus, à sua própria natureza. Ele ama ao Deus supernatural com toda a sua alma e imita Seu desapego com toda sua força.

    Se somos ainda ignorantes não apenas de nós mesmos e do que fazemos, mas também do propósito do que é feito e da verdadeira finalidade de tudo, a divina Escritura e as palavras dos santos, mesmo os profetas e homens justos do antigo testamento, ou ainda os padres mais recentes, parecerão a nós contraditórios. Aqueles que desejam ser salvos parecem discordar uns dos outros. Mas na realidade este não é o caso.

Brevemente podemos dizer que na natureza das coisas, se alguém quer ser salvo, nenhuma pessoa e nenhum tempo, lugar ou ocupação podem impedi-lo. Nós não devemos, porém, agir contrariamente ao objetivo que ele tem em vista, mas devemos com discernimento referir todo pensamento ao propósito divino. As coisas não acontecem fora da necessidade: elas dependem da pessoa por meio de quem acontecem. Nós não pecamos contra nossa vontade, mas primeiro assentimos a um mau pensamento e então caímos na catividade. Então o próprio pensamento carrega o cativo à força e contra seus desejos ao pecado. O mesmo é verdadeiro com respeito aos pecados por meio da ignorância: eles surgem de pecados conscientemente cometidos. Pois a menos que um homem esteja bêbado pelo vinho ou pelo desejo, ele não está inconsciente do que ele está fazendo; mas a bebedeira obscurece o intelecto e o faz falhar, e ele acaba morrendo como resultado. Ainda que a morte não venha inexplicavelmente, ela foi inconscientemente induzida pela bebedeira para a qual nós conscientemente assentimos. Nós encontraremos muitos exemplos, especialmente em nossos pensamentos, onde passamos daquilo que temos controle para aquilo que está fora de nosso controle, e daquilo de que somos conscientes para o que é involuntário. Mas porque os primeiros nos parecem não atrativos ou desimportantes, nós caímos sem intenção e sem consciência nos segundos. No entanto, se desde o início quiséssemos guardar os mandamentos e permanecer como quando fomos batizados, nós não teríamos caído em tantos pecados e então não teríamos a necessidade de provações, tribulações e arrependimento.

Se assim desejarmos, no entanto, um dom de Deus segundo a Graça - o arrependimento - pode nos conduzir de volta à nossa beleza primeira. Mas se não nos arrependermos, inevitavelmente nós partiremos com os demônios inarrependíveis para a punição vindoura, mais por nossa livre escolha do que contra nossa vontade. "Porque Deus não nos criou para a ira, mas para a salvação" (cf. 1 Tessalonicenses 5:9), de modo que possamos aproveitar Suas bençãos, e consequentemente sermos gratos e agradecidos para com nosso Benfeitor. Mas a nossa incapacidade de conhecer seus dons nos faz indolentes, e a indolência produz esquecimento, e como resultado a ignorância se torna a senhora sobre nós.

Temos de fazer extenuantes esforços quando de início tentamos retornar de onde caímos. Pois ressentimos em abandonar nossos próprios desejos, e pensamos que podemos atender ao mesmo tempo aos desejos de Deus e aos nossos próprios - o que é impossível. O Próprio Nosso Senhor disse, "Eu vim para cumprir não com a Minha própria vontade, mas a Daquele que me enviou" (Cf. João 6:38), ainda que a vontade do Pai, do Filho e do Espírito Santo sejam uma única, já que constituem uma natureza singular inseparável. Mas Ele disse isso levando-nos em conta e com respeito à vontade da carne. Pois se a carne não é consumida e se um homem não é plenamente conduzido pelo Espírito de Deus, ele não fará a vontade de Deus a menos que ele seja forçado a isto. Mas quando a graça do Espírito rege o seu interior, então ele não tem mais vontade própria, mas o que ele faz está de acordo com a vontade de Deus.  Então ele está em paz. Homens como estes serão chamados Filhos de Deus (cf. Mateus 5:9), porque eles farão a vontade de Seu Pai, como fez o Filho de Deus que é também Deus.

É impossível descobrir a vontade de Deus a menos que guardemos os mandamentos, consequentemente cortando toda vontade ou prazer pessoal e a menos que suportemos toda a dor que isto envolve. Como foi dito, prazer e dor nascem da loucura e eles dão origem a todo mal. Pois o homem tolo ama a si mesmo e não pode amar seu irmão ou Deus; ele não pode refrear os prazeres ou desejos que lhe dão satisfação, nem pode suportar a dor. Algumas vezes ele consegue o que ele quer, e então ele é preenchido com prazer e alegria; algumas vezes ele não consegue, e então ele é completamente dominado pela dor que isto engendra, e então ele é rejeitado, sentindo uma antevisão do inferno.

Do conhecimento, ou entendimento, nasce o autocontrole e o sofrimento paciente. Pois o homem do entendimento restringe sua própria vontade e suporta a dor que disso resulta; e, reconhecendo a si mesmo como indigno de alguma coisa agradável, ele está agradecido de seu Benfeitor, temendo por conta das numerosas bençãos que Deus lhe concedeu neste mundo, ele sofreria a punição no mundo por vir. Assim, através do autocontrole, ele pratica também as outras virtudes. Ele olha a si mesmo como estando em débito com Deus em relação a tudo, não encontrando nada com que ele possa pagar ao seu Benfeitor, e chegando a pensar que suas virtudes aumentam o débito. Pois ele recebe e nada tem a dar. Ele apenas pede que possa lhe ser permitido oferecer Graças a Deus. Ainda mesmo pelo fato de que Deus aceite seu agradecimento, assim ele pensa, ainda aumentará seu débito. Mas ele continua a dar graças, mesmo fazendo o que é bom e considerando a si mesmo como um grande devedor, em sua humildade julgando-se a si mesmo como estando abaixo de todos os homens, deleitando-se em Deus seu Benfeitor e tremendo mesmo quando se alegra (cf. Salmo 2:11).

À medida que se avança através da humildade para o conhecimento e amor divino, nós aceitamos sofrer como merecemos. De fato, ele pensa merecer mais sofrimento do que o que ele encontra; e ele está feliz que ele seja agraciado com alguma aflição neste mundo, pois por elas ele pode ser poupado da porção de punição que lhe foi reservado no mundo a ser. E por conta de tudo isso ele conhece sua própria fraqueza, e por isso ele não deve exultar, e porque ele foi descoberto digno de conhecer e suportar estas coisas pela Graça de Deus, ele é preenchido com uma forte saudade de Deus.

A humildade nasceu do conhecimento espiritual, e tal conhecimento nasceu de provações e tentações. Para a pessoa que conhece a si mesma é dado conhecimento de todas as coisas (Clemente de Alexandria, Pedagogo III), e aquele que se sujeita a Deus coloca tudo sob seu controle; e então todas as coisas são sujeitas a ele, pois ele é completamente humilde. De acordo com São Basílio e São Gregório de Nazianzo, aquele que conhece a si mesmo - que sabe que ele está a meio caminho entre a nobreza e a baixeza, já que ele tem uma alma capaz de conhecimento espiritual e um corpo mortal e terreno - nunca exulta ou se desespera. De preferência, com um sentimento de vergonha diante de sua alma, ele rejeita tudo o que é vergonhoso, e conhecendo sua fraqueza, ele encolhe todo sentimento de euforia.

Assim, aquele que conhece sua própria fraqueza depois de passar por muitas tentações e provações, que sofre com as paixões da alma e do corpo, entende o poder incomensurável de Deus e como Ele redime o humilde que clama a Ele por meio de oração persistente das profundezas de seu coração. Para tal pessoa a oração torna-se um deleite. Ele sabe que sem Deus ele não pode fazer nada (cj. João 15:5), e em seu medo de cair, ele se esforça para se unir a Deus, e ele fica espantado como ele considera como Deus tem o resgatado de tantas tentações e paixões. Ele dá graças ao seu Salvador, e para sua ação de graças ele acrescenta humildade e amor; e ele não ousa julgar quem quer que seja, sabendo que como Deus o ajudou, assim Ele pode ajudar a todos os homens quando Ele o desejar, como diz São Máximo. Ele sabe também que se uma pessoa percebe sua fraqueza, ele pode ser capaz de lutar e vencer muitas paixões; pois em tal caso Deus rapidamente vem em sua assistência para que sua alma não seja destruída. E por muitas outras razões também a pessoa que reconhece sua própria fraqueza não cai. Ninguém pode atingir este reconhecimento a menos que antes sofra muitas tentações de alma e corpo, e ganhe experiência por sofrê-las pacientemente e assim superá-las com a ajuda de Deus.

Tal homem não ousa agir de acordo com suas próprias volições ou seguir suas próprias ideias sem primeiro questionar aqueles com experiência. Pois o que ganha uma pessoa ao escolher fazer ou pensar  algo que não contribua para sua vida corporal ou para a salvação de sua alma? E se ele não conhece o que deseja abandonar e o que ele poderia por de lado, deixe-o testar cada ação e cada pensamento, e mantendo-os em exame, perceber como tais pensamentos o afetam. Se algo lhe traz prazer mas ao resisti-lo lhe trazem dor, então essa coisa é ruim e deve ser rejeitada antes que se enraíze; de outro modo ele achará difícil vencê-la mais tarde, quando ele perceber que tal coisa o prejudica. Isto se aplica a toda ação e pensamento que não nos ajuda a nos manter vivos e de acordo com a vontade de Deus. Pois um hábito de longa data toma a força da própria natureza; mas se você não der força a ele, ele se enfraquece e é gradualmente destruído. Se um hábito é bom ou mau, o tempo o alimenta, como a madeira alimenta o fogo. Assim, na medida que pudermos, devemos cultivar e praticar o que é bom, de modo que se torne um hábito estabelecido que opera automaticamente e sem esforço, quando necessário. Foi por meio de vitórias nas pequenas coisas que os padres ganharam suas grandes batalhas.

 Pois se um homem se recusa a satisfazer até as necessidades básicas do corpo e rejeita-as a fim de passar essa vida de forma estreita e apertada, como ele pode ser vítima do amor pelas posses? Amor pelas posses consiste não meramente em possuir muitas coisas, mas também em apegar-se a elas, ou no seu mau uso, ou no seu uso excessivo. Pois muitos santos da antiguidade, como Abraão, Jó, Davi e muitos outros, tinham muitas posses, mas eles não estavam apegados a elas: eles a consideravam como presentes de Deus e procuraram agradá-Lo ainda mais através do uso delas. Entretanto o Senhor, estando além da perfeição e sendo a própria sabedoria, ataca na raiz; pois Ele insta aqueles que O seguem através da imitação suprema da virtude a renunciar não apenas aos bens e posses materiais, mas mesmo à sua própria alma (cf. Lucas 14:26), isto é, aos seus próprios pensamentos e vontade.

Porque eles sabiam isto, os padres fugiram do mundo, vendo-o como um obstáculo à perfeição; e não apenas do mundo mas também de sua própria vontade pela mesma razão. Nenhum deles jamais fez o que propriamente queria. Alguns viveram em obediência corporal, assim que no lugar de Cristo teriam um pai espiritual os guiando em cada pensamento. Outros, fugindo totalmente da sociedade humana, viveram no deserto e tiveram o próprio Deus como seu professor, por quem escolheram viver uma morte voluntária. Outros seguiram o "caminho real", levando a vida em silêncio ao lado de um ou dois companheiros: estes tinham um ou outro como conselheiro para se fazer a vontade de Deus. E aqueles que, depois de se submeterm ao pai espiritual, fossem então apontados por eles para tomar cuidado de outros irmãos, realizavam suas tarefas como se ainda estivessem em obediência, mantendo as tradições de seus pais espirituais. Assim, todos os esforços eram abençoados por Deus.

Hoje em dia, porém, mesmo se estamos sob a obediência ou autoridade, não queremos abandonar nossa própria vontade, e assim, nenhum de nós faz qualquer progresso. Não obstante, é ainda possível escapar da sociedade humana e dos afazeres mundanos, e tomar o "caminho real" ao se viver uma vida de silêncio com um ou dois outros, estudando os mandamentos de Cristo e todas as Escrituras, dia e noite. Por este meio, ao ser testado em todas as coisas por consciência e aplicação, leitura e oração, talvez possamos atingir o primeiro mandamento, o temor de Deus, que vem através da fé e do estudo das Sagradas Escrituras; e através disso nós possamos alcançar tristeza interior, e asim chegar aos mandamentos de que São Paulo fala: fé, esperança e caridade (cf. I Coríntios 13;13). Pois aquele que tem fé no Senhor teme o castigo; e este medo incita-o a manter os mandamentos. A manutenção dos mandamentos o conduz a suportar as aflições; e suportar as aflições produz esperança em Deus. Tal esperança separa o intelecto de todo apego material, e a pessoa liberta de tais apegos possui amor por Deus. Quem seguir este caminho será salvo. 

Silêncio, que é a base da purificação da alma, faz a observância dos mandamentos relativamente sem dor. "Fuja", foi dito,"mantenha o silêncio, seja quieto, pois nisso jaz as raízes da impecabilidade". Novamente foi dito: "Fuja dos homens e serás salvo". Pois a sociedade humana não permite que o intelecto perceba suas próprias falhas ou artimanhas dos demônios, assim é preciso guardar-se contra eles. Nem, por outro lado, é permitido ao intelecto perceber a bondade e providência de Deus, de modo a auxiliá-lo no aconhecimento de Deus e na humildade.

A razão é que quem deseja viajar na rota estreita de Cristo - a rota do desapego e do conhecimento espiritual - e alegremente atingir a perfeição, não pode virar nem para a direita nem para a esquerda, mas em toda a sua vida, deve viajar diligentemente no caminho real. Ele deve orientar um curso médio entre excesso e insuficiência, já que ambos engendram prazer. Ele não deve obscurecer o intelecto com excessiva comida e convivialidade, fazendo-se cego com tais distrações; mas nem deve ele nublar sua mente com excesso de jejuns e vigílias. De preferência, ele deve cuidadosamente e pacientemente praticar as sete formas de disciplina corporal como se subisse uma escada, dominá-las de uma vez por todas e avançar para que o estado moral nas quais, como disse o Senhor (cf. Mateus 13: 11-12), pela Graça de Deus os diferentes estágios da contemplação espiritual são dados ao crente.

 Toda a Escritura é inspirada por Deus e é aproveitável (cf. 2 Timóteo 3: 16), e ninguém pode frustrar alguém que deseje ser salvo. Apenas Deus que nos fez tem o poder sobre nós, e Ele está pronto a ajudar e proteger de toda tentação aquele que clama a Ele e quer fazer Sua santa vontade. Sem Ele, nada podemos fazer (cf. João 15:5), nós não podemos sofrer nenhum mal involuntário a menos que Deus o permita de modo a nos castigar e salvar nossas almas. Mas o mal que cometemos é nossa própria responsabilidade e surge de nossa própria preguiça com o apoio dos demônios. Por outro lado, todo conhecimento, força e virtude são graças de Deus, como são todas as outras coisas. E através da Graça, Ele deu a todos os homens o poder de se tornarem filhos de Deus (cf. João 1: 12) na guarda dos divinos mandamentos. Ou, de preferência, estes mandamentos nos guardam, e são a graça de Deus, já que sem Sua graça nós não podemos guardá-los. Não temos nada a Lhe oferecer senão nossa fé, nossa resolução e, em suma, todos os verdadeiros dogmas que defendemos com firme fé através dos ensinamentos que ouvimos (cf. Romanos 10:7). Com tudo isso em mente, estabeleçamos nosso trabalho sem distração, como se fosse início das aulas na escola, e deste modo aprendamos cuidadosamente sobre as sete formas de disciplina as quais nos referimos. 

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