Cristo Pantocrator

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Sobre a avareza

Continuação do post anterior
Páginas 77 a 82
Tradução da versão inglesa de Rochelle Cysne

Sobre a avareza

Nossa terceira luta é contra o demônio da avareza, um demônio claramente estranho à nossa natureza, que apenas entra no monge quando lhe está faltando fé. As outras paixões, tais como ira e desejo, parecem ser ocasionadas pelo corpo e em algum sentido implantadas em nós desde o nascimento. Por isso eles são admitidos depois de algum tempo. A doença da avareza, ao contrário, pode com diligência e atenção ser interrompida literalmente, já que ela tem uma origem externa. Se negligenciada, porém, ela se torna mais difícil de ser eliminada e a mais destrutiva de todas as paixões, pois de acordo com o Apóstolo "a raiz de todos os pecados está no amor ao dinheiro". (I Tim. 6:10)

É assim que analisaremos tudo isto. O movimento ocorre nos órgãos sexuais não apenas de jovens crianças que não podem distinguir entre bem e mal, mas também nas mais pequeninas crianças que ainda estão amamentando. As últimas, apesar de praticamente ignorantes dos prazeres sexuais, manifestam, no entanto, tais movimentos naturais na carne. De modo similar, o poder incensivo existe nas crianças, como podemos constatar quando elas se voltam contra quem as machuca. Eu digo isso não para acusar a natureza de ser a causa do pecado - Deus nos livre! - mas para mostrar que o poder incensivo e o desejo, mesmo se implantados no homem pelo Criador para bons propósitos, parecem alterar-se devido à nossa negligência de algo natural para algo não natural. O movimento nos órgãos sexuais nos foi dado pelo Criador para a procriação e a perpetuação da espécie, não para a fornicação; enquanto o poder incensivo foi plantado em nós para nossa salvação, de modo que possamos manifestá-lo contra a perversão, mas não que possamos agir como bestas selvagens para com nossos próximos. Mesmo que façamos mau uso destas paixões, a natureza em si mesma não é a fonte do pecado, nem devemos culpar o Criador. Um homem que dá a alguém uma faca para alguma necessidade e útil propósito não é culpado se o receptor a usa para cometer um assassinato.

Isto foi dito para esclarecer que a avareza é uma paixão de origem externa, não advém de nossa natureza, mas somente de um uso ruim e pervertido de nossa livre vontade. Quando esta doença encontra a alma morna e fraca na fé, ainda no princípio de seu caminho ascético, ela sugere para nós várias razões sensíveis e justificáveis para tomar de volta algo do qual tínhamos posse. Ela conjura na mente de um monge o retrato de sua velhice e doenças corporais, persuadindo-o de que as necessidades da vida garantidas no mosteiro são insuficientes para manter um homem são, ainda menos para manter um homem doente; que nos mosteiros os doentes, ainda que recebam atenção, são dificilmente cuidados como devem; e que, a menos que se tenha algum dinheiro guardado, ele irá morrer de uma morte miserável. E finalmente, convence-o de que ele não será capaz de permanecer por muito tempo no mosteiro pela grande carga de tarefas e rigor do abade. Quando com pensamentos como estes acaba por seduzir sua mente com a idéia de guardar qualquer quantia, ainda que pouca, e convence-o a aprender, mesmo que por desconhecimento do abade, algum ofício mediante o qual ele possa aumentar seus rendimentos. Então ele engana o pobre monge com esperanças ocultas, fazendo-o imaginar que ele ganhará por meio de seu ofício o conforto e a segurança que dele resultam. Então, completamente tomado pelo desejo de ganho, ele não percebe nenhuma das más paixões que o atacam: expressa fúria violenta quando fica aquém do ganho esperado. Como para as outras pessoas a barriga é um deus, para este é o dinheiro. E é por esta razão que o apóstolo, sabendo disso, chama a avareza não apenas a "raiz de todos os pecados", mas a "idolatria" enquanto tal.

Como é que esta doença pode perverter tanto o homem a ponto dele terminar como um idólatra? É porque ele passa a fixar seu intelecto no amor, não para com Deus, e sim do homem estampado na moeda. Um monge obscurecido por tais pensamentos e lançado a este abismo não pode ser mais obediente. Ele fica irritado e ressentido, e resmunga em toda tarefa. Tendo perdido seu senso de respeito, ele se comporta como um teimoso, um cavalo incontrolável. Ele não está satisfeito com a ração diária de comida e reclama que não pode viver em tais condições para sempre. Ele diz que nem a presença de Deus, nem a sua salvação são privilégios do mosteiro; e assim, ele conclui que ele perecerá se ele não deixá-lo. E assim excitado e encorajado em tais pensamentos perversos, ele secretamente arma planos de deixar o mosteiro. Em seguida, ele responde orgulhosa e duramente que não importa o que se lhe digam e ele não presta atenção se há algo no mosteiro que precisa de reparo, considerando-se a si mesmo estranho àquele lugar, e encontrando falhas com tudo o que acontece. Então ele procura encontrar justificativas de estar irado e injuriado, para que não pareça que ele esteja deixando o mosteiro por motivos frívolos, sem alguma causa justa. E ele não se exime de tentar seduzir alguém por meio de fofocas e conversa fiada a deixar o mosteiro com ele, desejando ter um cúmplice de sua ação pecaminosa.

Porque o monge avarento está tão aceso com desejo de bens privados que ele nunca será capaz de viver em paz no mosteiro ou na sujeição de uma regra. Quando, como um lobo, o demônio já o arrancou do rebanho e separou-o dos demais, ele se prepara para devorá-lo; ele o põe a trabalhar dia e noite em sua cela queixando-se de fazer nos horários fixos. Mas o demônio não o permite manter as orações e normas regulares de jejum e vigília, amarrando-o rapidamente na loucura da avareza, o demônio o persuade a devotar todos os seus esforços ao seu ofício.

Há três tipos destas doenças, todas são igualmente condenadas pelas Sagradas Escrituras e os ensinamentos dos Padres. A primeira induz aqueles que eram pobres a guardar e salvar os bens que não tinham no mundo. A segunda compele àqueles que renunciaram aos bens mundanos para oferecê-los a Deus, a ter arrependimentos e a buscá-los novamente. A terceira infeta o monge desde o início pela falta de fé e ardor, evitando assim seu desprendimento completo das coisas mundanas, produzindo nele um medo da pobreza e uma desconfiança na Providência Divina e conduzindo-o a quebrar as promessas que ele fez quando renunciou ao mundo.

Exemplos destas três formas de avareza são, como eu disse, condenadas pelas Sagradas Escrituras. Gehasi quis adquirir propriedade que não possuía previamente e consequentemente nunca recebeu a graça profética que seu mestre tinha a intenção de deixar para ele no lugar de uma herança. Por causa da maldição do profeta, ele herdou uma lepra incurável no lugar de uma benção (2 Reis 5:27).  E Judas, que desejou adquirir dinheiro que já tinha sido previamente abandonado pelos seguidores de Jesus, chegou a trair seu Mestre e perder seu lugar no círculo dos Apóstolos; e também pôs fim à sua própria vida mediante uma morte violenta (Mateus 27:5). Em terceiro lugar, Ananias e Safira foram condenados à morte pela palavra do Apóstolo quando tomaram de volta alguma coisa que haviam adquirido (Atos 5:1-10). Novamente, em Deuteronômio, Moisés está indiretamente exortando aqueles que prometeram renunciar o mundo e que insistem em manter seus bens devido ao medo e à falta de fé quando diz: "Qual é o homem medroso e de coração tímido? Vá e volte à sua casa, para que o coração de seus irmãos não seja como o seu coração". (Deut 20:8). Pode algo ser mais claro e mais certo do que este testemunho? Não devíamos nós que de deixamos o mundo aprender destes exemplos a renunciar a ele completamente e neste estágio enfrentar a batalha que nos espera? Nós devemos nos transformar em outras pessoas a partir da perfeição ensinada nos Evangelhos e não fazê-lo covardemente por conta  de uma motivação hesitante e débil.

Alguns, impelidos pelo seu próprio engano e avareza, distorcem o significado das sentença bíblica, "é mais abençoado dar do que receber" (Atos 20:35). Eles fazem o mesmo com a palavra do Senhor quando Ele diz, "se queres ser perfeito, vai vende tudo o que tens, dá aos pobres, e encontrarás um tesouro nos Céus; depois vem e me segue" (Mateus 19:21).  Eles julgam que é mais abençoado ter controle sobre a riqueza pessoal e dar de presente àqueles que precisam, do que não ter nada. Eles devem saber, porém, que assim ele não renunciam ao mundo, nem alcançam a perfeição monástica na medida em que estão envergonhados de aceitar por amor a Cristo a pobreza dos Apóstolos e de sustentar a si e aos necessitados apenas por meio do suor de suas mãos (Atos 20:34); apenas neste sentido eles cumprirão a profissão monástica e serão
glorificados com os Apóstolos. tendo distribuído sua riqueza, lutarão então o bom combate com Paulo "com fome e sede... no frio e na nudez" (2Cor. 11:27). Se o Apóstolo tivesse pensado que a posse da própria riqueza era necessária à salvação ele não teria renunciando seu status oficial de cidadão romano (Atos 22:25). Nem aqueles em Jerusalém teriam vendido suas casas e campos e dado o dinheiro aos Apóstolos (Atos 4: 34-35), eles teriam sentido que era mais abençoado viver de suas próprias riquezas do que de seu próprio suor e das ofertas dos gentios.

O Apóstolo nos dá uma clara lição neste sentido quando ele escreve aos Romanos no início da passagem "Mas agora eu vou à Jerusalém ministrar aos santos" e termina "eles estavam satisfeitos de fazer isso, como devedores que são para com eles" (Romanos 15: 25-27). Ele próprio esteve em cadeias, na prisão ou em viagem fatigante, e assim frequentemente impedido de garantir para si mesmo provento com suas próprias mãos. Ele nos conta que aceitou que os irmãos da Macedônia suprissem suas necessidades ( 2Cor. 11:9) e escrevendo aos Filipenses disse: "Agora, vocês Filipenses sabem também que..quando parti da Macedônia nenhuma igreja exceto a de vocês ajudou-me com dar e receber. Pois em Tessalônia me enviaram ajuda, não uma senão duas vezes." (Filipenses 4: 15-16). Então estão certos os avarentos e são mais abençoados do que o próprio Apóstolo por satisfazerem suas necessidades com seus próprios recursos? Seguramente ninguém seria tão tolo a ponto de dizer isso.

Se você quer seguir os mandamentos do Evangelho e a prática de toda a Igreja quando ela foi fundada inicialmente pelos primeiros Apóstolos, você não deve seguir suas próprias noções ou dar um significado errado às coisas escritas retamente. Você deve descartar o coração fraco, a opinião sem fé e recuperar a estreiteza do Evangelho. Neste sentido nós devemos ser capazes de seguir também os passos dos Padres, aderindo à disciplina da vida cenobítica e verdadeiramente renunciando ao mundo.

É bom lembrar aqui as palavras de São Basílio, bispo de Cesaréia, na Capadócia. Ele relata uma vez ter dito ao senador, que renunciou ao mundo pela metade e que ainda mantinha alguma coisa de sua fortuna pessoal: "Você perdeu o senador e falhou ao fazer-se monge". Logo, nós devemos fazer todo esforço para extirpar de nosso coração esta raiz de todos os males, a avareza, na certeza de que, se a raiz permanece, os frutos brotarão livremente.

Esta extirpação é difícil de alcançar a menos que se viva em um mosteiro, pois no mosteiro deixamos de nos preocupar com nossos necessidades básicas. Com o destino de Ananias e Saphira em mente, nós devemos
dispensar o pensamento de manter para nós mesmos qualquer coisa de nossas posses. Similarmente, apavorado pelo exemplo de Gehazi que foi afligido com lepra incurável por conta de sua avareza, guarde-mo-nos de acumular dinheiro enquanto estivermos no mundo. E finalmente, lembrando a morte de Judas por enforcamento, sejamos cautelosos de adquirir novamente qualquer coisa da qual já havíamos renunciado. Em tudo isso nós devemos lembrar quão incerta é a hora de nossa morte, para que nosso Senhor não chegue inesperadamente, encontrando nossa consciência conspurcada pela avareza, e diga para nós o que Deus fala ao jovem rico no Evangelho: "Você tolo, esta noite sua alma será pedida: e o que temos preparado, para quem será?". (Lucas 12:20).

 Monge hesicasta do deserto.