Cristo Pantocrator

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Discurso Ascético, São Nilo do Egito

O texto abaixo possui cinquenta páginas e vai exigir, certamente, cinquenta dias de trabalho ou mais.
No entanto, creio que o melhor é ir postando-o aos poucos, e o atualizando a cada dia que passa, de maneira que o leitor possa ir absorvendo e saboreando essa jóia preciosa da ascese cristã.

Nosso mundo cheio de vaidades e vão em plenitude, não sabe apreciar a beleza da literatura ascética. Encantam-se com a Índia, mas se esquecem que a Índia é a pátria por excelência da ascese. Assim, desenvolvem uma visão folclórica da Índia e creem que praticar Yoga por uma hora por semana, ou mesmo por dia, pode lhes ensinar a verdade do abandono em Deus, a verdade da ascensão ascética. Quando na verdade a ascese exige um esforço de ter Deus em mente sem descanso, em cada respiração que se faça, em cada ação. Estamos nas mãos de Deus: só o asceta compreende isso.

Também o cristianismo teve seus grandes ascetas. O texto que leremos agora é de São Nilo do Egito. Creio que poucos o lerão. A internet não é o lugar da profundidade é sim do banal e a beleza brota da não obviedade. Mas a internet é o lugar da divulgação das idéias e é por bem que alguém possa conhecer essa obra e lê-la no português. Assim, eu me entrego à Providência Divina pois Deus proverá algum leitor, nem que seja apenas eu mesma. Não podemos nos ater nos resultados, quando procuramos a santidade. Porque a santidade não é obra nossa, é obra divina. Deste modo, cabe-nos apenas procurar na humildade servir ao Senhor com alegria, na certeza de que Deus vê e conhece cada um de nossos esforços, ainda que míseros. Isso já é uma grande recompensa, pois Ele luta ao meu lado quando me vejo no deserto.

A tradição deste texto será da versão inglesa da Philokalia, que por sua vez traduziu o texto de uma versão latina. A tradução que me sirvo é Philokalia, The Complete Text, New York, Farber and Farber, 1979, páginas 200 a 250.

São Nilo do Egito, o asceta, foi abade de um mosteiro perto de Ankara, nas primeiras décadas do quinto século, e parece ter morrido perto do ano 430. Ele foi, possivelmente, discípulo de São João Crisóstomo. De acordo com a tradicional biografia de Nilo - tida como autêntica por St. Nikodemos, mas agora considerada lendária - ele era originalmente de Constantinopla, e depois de ter servido como prefeito da cidade durante o reino de Theodosios o Grande (379-95) ele se tornou um eremita perto do Sinai.

O discurso ascético de Nilo contém uma seção valiosa na relação entre o pai espiritual e seus discípulos. Em outros de seus escritos, embora não neste trabalho, São Nilo se refere à invocação ao nome de Jesus. Juntamente com São Diádoco, seu contemporâneo mais jovem, Nilo é o escritor mais antigo a se referir explicitamente à oração de Jesus.


Discurso Ascético

Muitos gregos e não pouco judeus tentaram filosofar; mas apenas os discípulos de Cristo perseguiram a verdadeira sabedoria, porque apenas eles possuíam a sabedoria como mestre, mostrando-os por seus exemplos o sentido da vida que eles deviam seguir. Ora, os gregos, como atores em um palco, colocaram falsas máscaras; eles foram filósofos apenas de nome, já que lhes faltou a verdadeira filosofia. Eles mostraram sua vocação filosófica por seu manto, barba e pessoal, mas foram indulgentes com o corpo e mantiveram seus desejos como amantes. Eles eram escravos da glutonaria e da lascívia, aceitando isto como algo de natural. Eles eram sujeitos à ira e excitados pela glória, e engoliam fartos banquetes como se fossem cães. Eles não perceberam que o filósofo tem de ser acima de tudo um homem livre, e não um escravo das paixões que podem ser compradas ou vendidas. Um homem de vida correta pode ser escravo de outros e ainda não sofrer qualquer prejuízo; mas ser escravo das paixões e prazeres põe um homem em desgraça e o expõe ao ridículo.

Alguns dos gregos imaginaram-se estar engajados na metafísica, mas negligenciaram a prática das virtudes completamente. Alguns eram contempladores das estrelas, explicando o inexplicável e procurando conhecer o tamanho dos céus, as dimensões do sol e o movimento das estrelas. Algumas vezes eles tentaram teologizar, embora neste caso a verdade esteja além do alcance do homem e a especulação seja perigosa; ainda que em seu modo de vida eles fossem mais degradados do que os suínos chafurdando na lama. E quando algum deles tentou aplicar seus princípios em prática, eles se tornaram piores do que quando apenas teorizavam, pois eles venderam seus esforços para a glória e o louvor. Frequentemente seu único objetivo era aparecer e eles suportaram dificuldades apenas para ganhar o aplauso barato.  Aliás, o que pode ser mais estúpido do que manter o silêncio continuamente, viver de vegetais, cobrir-se com farrapos de pelo e gastar um dia inteiro em um barril se não se espera nenhuma recompensa após a morte? Se a recompensa da virtude está restrita à vida presente, então quem está envolvido numa competição onde não há prêmios sendo oferecidos luta toda a vida para nenhum retorno para tanto esforço e suor.

Alguns dos Judeus, por outro lado, que tiveram estima pela filosofia - os Recabitas, descendentes de Jonadab (Jerusalém 35:6) - de fato encorajaram seus discípulos a seguir um modo de vida apropriado. Eles sempre viveram em tendas; seu estilo era frugal e a provisão para seus necessidades corpóreas era moderada. Enquanto devotaram plena atenção às práticas das virtudes, eles também uniram a isso grande atenção à contemplação, como seu nome 'Essênio' indica. Em suma, eles perseguiram a meta da filosofia enquanto rejeitaram as coisas que conflituavam com seu chamado. Mas o que eles lucraram com seu empenho ascético, desde que negaram o Cristo, que age como o juiz e dá a recompensa? Assim eles, também não lucraram com seu trabalho, despencando do verdadeiro objetivo da filosofia.

Pois a filosofia é um estado de integridade moral combinado com uma doutrina do verdadeiro conhecimento acerca da realidade. Tanto os Judeus quanto os Gregos falharam nisso, pois eles rejeitaram a sabedoria que vem do Céu e tentaram filosofar sem Cristo, que apenas revelou a verdadeira filosofia com sua vida e seus ensinamentos. Pois pela pureza de sua vida ele foi o primeiro a estabelecer o sentido da verdadeira filosofia. Ele sempre cumpriu com os anseios de sua alma acima das paixões do corpo, e por fim, quando Sua morte foi requerida pelo Seu desígnio para a salvação do homem, Ele abandonou mesmo sua própria alma. Nisto ele ensinou-nos que o verdadeiro filósofo deve renunciar a todos os prazeres da vida, sendo mestre das dores e da paixão, e dando pouca atenção ao corpo: ele não deve supervalorizar nem mesmo sua alma, mas deve literalmente abandoná-la quando a santidade exige.

Os apóstolos receberam este sentido de vida de Cristo e fizeram dele seu próprio, renunciando o mundo em resposta ao chamado Dele, desconsiderando a pátria, os parentes e as posses. uma vez adotado um áspero e extenuante modo de vida, enfrentando todo tipo de adversidade, aflição, tormentos,   afligidos , atormentados, assediados, nus , faltando até para as necessidades; e finalmente eles encontraram a morte corpórea, imitando seu Mestre fielmente em todas as coisas. Assim, por suas ações eles deixaram uma verdadeira imagem do mais elevado estilo de vida.

Apesar de que todos os Cristãos devessem ter modelado suas próprias vidas a esta imagem, em muitos casos ou faltou a vontade para agir assim ou então fizeram míseros esforços. Houve, porém, poucos que tiveram força para elevar-se acima do tumulto do mundo e para fugir da agitação das cidades. Tendo escapado desta turbulência, eles abraçaram a vida monástica e reproduziram neles mesmos o padrão da virtude apostólica. Eles preferiram a pobreza voluntária às posses, por causa disso libertaram-se das distrações; e assim ao controlar as paixões, eles se satisfizeram suas necessidades corporais com comida que era literalmente  valiosa e simplesmente preparada e muito melhor do que qualquer banquete de rico. Roupas macias e desnecessárias eles rejeitaram como uma invenção da luxúria humana, e eles usavam apenas roupas simples como necessárias para o corpo. Parecia-lhes uma traição à filosofia voltar sua atenção das coisas celestes para os interesses terrestres, mais apropriados aos animais. Eles ignoraram o mundo, estando acima das paixões humanas.

Eles não procuraram ganho excessivo explorando os demais; nem lançaram ações judiciais uns contra os outros, pois cada um tinha sua própria consciência como juiz imparcial. Não havia um rico enquanto o outro estava destituído do necessário, nem estava um empanturrado de comida enquanto o outro gemia de fome. A generosidade daqueles que eram bons com os que não tinham, este desejo de partilha, eliminava qualquer anomalia e estabelecia a igualdade e a justiça - mesmo assim a desigualdade ainda existia, produzida não pela luta insana por status social, mas pelo desejo magnânimo de viver de maneira mais humilde do que os demais. Inveja, malícia, arrogância e altivez estavam banidas, juntamente com tudo o que leva à discórdia. Alguns estavam impermeáveis ou mortos para as paixões grosseiras; eles tinham repudiado tão firmemente todos os traços delas desde o início que agora, por meio do asceticismo diário e perseverança, eles adquiriam estabilidade inerente e nem sequer tinham fantasias deles nos sonhos. Em suma, eles eram luzes brilhando na escuridão; eles eram estrelas fixas iluminando a noite escura da vida; eles eram como paredes inabaláveis pelas tempestades. Eles mostraram a cada um quão simples é escapar ileso das provocações das paixões.

Mas este estrito e angélico modo de vida sofreu o destino de um retrato muitas vezes recopiado por mãos descuidadas, até que gradualmente toda a semelhança com o original se perdeu. Embora estejamos crucificados para o mundo, embora tenhamos renunciando a esta vida transitória e às limitações puramente humanas, aspirando ao estado dos anjos por compartilhar sua impassibilidade, ainda assim nós fomos relapsos e retrocedemos. Por conta de nossos interesses materiais e ganância vergonhosa, nós  anulamos a ponte ao verdadeiro asceticismo; e por nossa negligência nós desacreditamos aqueles que por sua genuína santidade verdadeiramente merecem ser honrados. Ao vestir o hábito
monástico , nós temos de por a mão no arado; ainda olhamos para trás, esquecendo e até mesmo rejeitando fortemente nossos deveres, e assim não nos tornamos "aptos para o Reino dos Céus. (Lucas 9:62).

Destarte, nós não buscamos mais a clareza e simplicidade da vida. A quietude não tem mais valor para nós, ela que nos ajuda a nos libertar da contaminação do passado. Preferimos uma série de coisas inúteis que nos distraem do nosso verdadeiro objetivo. Rivalizar este objetivo com os bens materiais nos faz esquecer o conselho do Senhor, que nos exige não pensar nas coisas terrenas, mas procurar apenas o Reino dos Céus. Fazendo deliberadamente o oposto, nós desconsideramos o mandamento do Senhor, confiando-nos em nós mesmos e não em Sua proteção. Pois Ele diz: "olhai para as aves do céu: não semeiam nem colhem, nem ajuntam em celeiros, contudo, o Pai celestial as alimenta" (Mateus 6:26); e novamente: "Considerai os lírios do campo, como eles crescem; eles não trabalham ou tecem" (Mateus 6: 28). Quando Ele enviou os Apóstolos para declarar a boa nova aos seus companheiros, Ele mesmo os proibiu de levar a carteira, bolsa e falou-lhes para ficarem felizes com sua promessa: "O trabalhador é digno de sua comida." (Mateus 10:10). Esta promessa é para confiarmos mais no Senhor do que nos nossos próprios recursos.

A despeito de tudo isso nós vamos acumulando tanta terra quanto podemos, compramos rebanhos de ovelhas, bois finos e gordos jumentos - a ovelha para o suprimento de lã, os bois para arar e prover comida para nós e forragens para eles e para outros animais, os jumentos para o transporte a terras estrangeiras em busca de bens e luxos que faltam em nosso país. Nós também escolhemos as profissões que dão maior retorno, mesmo que elas absorvam toda a nossa atenção e não nos deixem nenhum tempo para a rememoração de Deus. É como se acusássemos Deus de ser incapaz de prover-nos, ou nós mesmos de sermos incapazes de cumprir plenamente seu chamado. Mesmo que não admitamos isso abertamente, nossas ações nos condenam; pois nós mostramos aprovação aos caminhos mundanos ao nos engajarmos na mesma perseguição, e talvez trabalhando com eles de modo ainda mais duro do que geralmente se faz.

Asim, como muitos outros, nós olhamos para a via ascética como meio de ganho, e seguimos 'desinteressadamente' a vida abençoada meramente para rejeitar o trabalho duro mediante uma piedade fingida, e para ganhar maiores chances de se entregar a prazeres ilusórios. A gente descaradamente insulta aqueles que vivem uma forma de vida simples, e às vezes até nossos superiores, como se pensássemos que a vida espiritual fosse questão de ambição, não de humildade e mansidão. Como resultado, ao invés de sermos respeitados, somos vistos como uma multidão inútil, envolvidos em compra e venda como os homens da rua. Nada nos diferencia dos demais e nos distinguimos do restante simplesmente pelo hábito que vestimos, não pelo nosso modo de vida. Nós rejeitamos todos os esforços ascéticos, mas loucamente desejamos uma reputação de ascetas. Nós degradamos a verdade com este teatro.

Hoje, uma pessoa usa o hábito monástico sem lavar as manchas de sua alma ou sem apagar as marcas que um passado de pecado estamparam em sua mente; de fato, ele pode  ainda ter prazer lascivo nas fantasias que estes pecados sugerem. Ele não treinou seu caráter para se ajustar à sua vocação, nem ele compreendeu a proposta da divina filosofia. Ele desenvolveu uma arrogância farisaica se enchendo de vaidade por suas vestes. Ele vai portar uma série de ferramentas das quais desconhece o uso. Em virtude de sua veste exterior ele alega ter um conhecimento que na realidade ele não provou mesmo com a ponta da língua. Ele é um recife, não um porto; um sepulcro caiado, não um templo; um lobo, não uma ovelha; a ruína dos que se enganam por sua aparência.

Incapaz de permanecer no rigor da vida de seu mosteiro, tal monge foge e se avoluma na cidade como se estivesse numa festa de foliões. Então quando sentem fome, eles começam a enganar os outros exibindo piedade, e eles estão prontos a fazer qualquer coisa para satisfazer suas necessidades; pois nada é mais constrangedor e inventivo do que as necessidades do corpo, especialmente quando se está doente. Suas técnicas ganham mais e mais astúcia e habilidade. Eles se penduram na casa dos ricos como parasitas, e como escravos eles se apresentam a eles nas ruas, empurrando as pessoas para fora do caminho deles, e abrindo-lhes passagem. Tudo isso eles fazem para assegurar a sua refeição, não tendo aprendido o controle da glutonaria. Nem obedecem a Moisés, que exigia carregar uma pá no cinto para abrir um buraco e cobrir seus excrementos (Deuteronômio 23: 13). Eles não percebem que a indulgência com a gula só leva à mais fome, e que eles deviam satisfazer as necessidades do corpo apenas com a comida que está à mão, sufocando seus apetites vergonhosos e desgovernados.

Isto é porque o nome de Deus é blasfemado, e o sentido ascético de vida, a despeito de inspirar os homens,  enche-os de desgosto. As realizações dos genuínos ascetas são descartadas como artifício. As cidades estão cheias de vagabundos, e as pessoas ficam incomodadas em casa, vendo tantos monges à porta de suas casas mais descaradamente do que de mendigos. Muitos têm sido admitidos na casa das pessoas, onde por pouco tempo ele fingem ser piedosos, dolosamente ocultando seus planos perversos; então eles roubam seus hospedeiros e fogem, trazendo descrédito para toda a vida monástica. Ainda que os monges tenham ensinado o autocontrole, agora eles são banidos da cidade como uma influência corrupta, e são evitados como leprosos. As pessoas preferem confiar em ladrões e assaltantes mais do que naqueles que seguem a vida monástica, pensando que  é mais fácil de se proteger dos simples criminosos do que dos trapaceiros.

Tais monges  nem começaram a vida ascética, muito menos aprenderam o valor da quietude. Talvez eles tenham vindo à vida monástica por causa de alguma pressão, não realizando o que está envolvido nela;  assim eles a consideram como uma forma de ganhar a vida. Esta atitude pode mudar para algo mais espiritual apenas se eles pararem de bater de porta em porta, envergonhando o hábito monástico e restringindo sua ganância bruta, estando dispostos a impor um freio muito necessário ao corpo. Mas, por serem autoindulgentes eles não percebem como a vida mole gera constantemente novos e extravagantes desejos.

É difícil tratar aqueles que sofrem de doenças crônicas. Pois como você pode explicar o valor da saúde à pessoas que nunca gozaram dela, mas que têm estado doentes desde o nascimento? Como este é o seu estado costumeiro, eles o reconhecem como uma desgraça natural e mesmo como completamente normal. É inútil dar conselhos àqueles que não têm intenção em segui-los, mas continuam no caminho ladeira abaixo. Em particular, aqueles com um desejo de ganho de qualquer tipo, ainda que vergonhoso, são completamente surdos para qualquer conselho.  

Quanto a nós, que afirmamos ter renunciado à vida mundana e seus desejos para seguir a senda da santidade e que professamos seguir Cristo, para que nos complicar uma vez mais com as distrações mundanas? Por que retornar a construir erradamente o que nos acertadamente já desabamos? Por que compartilhar na loucura daqueles que são desleais à sua vocação? Por que, ao perseguir trivialidades vazias, nós acendemos os apetites de nossos pobres irmãos e os enchemos de ganância? O Senhor ordenou-nos vigiar aqueles que são facilmente enganados, não os incitando ao mal, e preferindo sua vantagem ao nosso prazer. Neste sentido, por não seguir nossos próprios impulsos, nós podemos ajudar muitos de nossos irmãos mais simplórios a serem mais cuidadosos e impor a eles um exemplo através de nossa atitude para com os assuntos mundanos.

Por que damos tanto valor às coisas materiais, sabendo que nos foi ensinado a desprezá-las? Por que nos apegamos ao dinheiro e às posses, e dispersamos nosso intelecto entre uma série de cuidados inúteis? Nossa preocupação com tais coisas nos distraem do que é mais importante e nos torna negligentes com o bem estar da alma, levando-nos à perdição. Pois nós que afirmamos ser filósofos e que nos orgulhamos de sermos superiores aos prazeres, somos vistos perseguir o ganho material com muito mais zelo que qualquer outro. Nada traz punição mais severa para nós que persuadirmos os outros a imitar nossos maus caminhos.

Não desprezem estas palavras. Ou você corrige sua má conduta, que traz desgraça para a divina filosofia, levando os demais à indiferença, ou então desiste completamente de ser um filósofo. Para o verdadeiro filósofo as verdadeiras possessões são supérfluas, já que ele se destaca a si mesmo como estando acima dos interesses do corpo para a segurança da pureza de sua alma. Se seu objetivo são os prazeres e riquezas materiais, porque pretende honrar a filosofia enquanto você age de modo que conflitua inteiramente com ela,  disfarçando sua conduta sob belas palavras?

Tão grande é a nossa preocupação com as coisas materiais que nós não sentimos nenhuma vergonha quando, quebrando o mandamento do Senhor, somos repreendidos até mesmo por aqueles que nos desprezam por ainda viverem no mundo; pois eles nos ensinam agora ao invés de nós os ensinarmos. Quando nós estamos discutindo, eles nos lembram que "o servo de Cristo não deve se envolver em contendas, mas ser manso com todos os homens" (2Tim. 2:24); quando estamos disputando sobre dinheiro e posses, eles citam-nos o texto "se alguém... tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa". (Mateus 5, 40).  Eles nos ridicularizam e nos zombam por causa da incongruência entre nossas ações e nossa vocação. De fato, é correto nos envolvermos com disputas de modo a proteger nossa propriedade? Suponha que alguém destrua a fronteira de nossa vinha e adicione à sua terra: alguém deixa seu animal solto na mesma; e outro desvia a água que supre nosso jardim. Nós devemos perder o autocontrole em tais situações e tonarmo-nos piores que loucos? Mas naquele caso nosso intelecto, que devia estar empenhado na contemplação das coisas criadas, vai agora voltar a sua atenção às ações judiciais, convergindo agora seu poder contemplativo para a astúcia mundana, assim como para defender uma quantidade de possessões desnecessárias.

Porque tentamos fazer com a propriedade dos outros a nossa própria, pendemos para baixo com grilhões materiais, e não prestando nenhuma atenção  à imprecação do profeta: "Ai daquele que multiplica o que não é seu, e daquele que carrega sobre si dívidas" (Habacuque 2:6). Aqueles que nos perseguem, diz Jeremias, "são mais rápidos do que as águias nos céus" (Lamentações 4: 19); mas nós pendemos para baixo com as coisas mundanas, nos movemos vagarosamente ao longo da estrada, por isso somos facilmente ultrapassados por nosso perseguidor, a cobiça, que Paulo nos ensinou a escapar (cf. Col. 3:5). Mesmo que não carreguemos muito, nós devemos ainda correr tão rápido quanto pudermos, ou então o inimigo irá nos ultrapassar.

Unir-se às coisas mundanas é um grave obstáculo para aqueles que lutam pela santidade, e frequentemente traz ruína tanto ao corpo quanto à alma. Pois o que destruiu Nabote, o Israelita? Não foi sua vinha a causa de sua morte, pois ela despertou a inveja de seu vizinho Acabe? (Reis 21: 1-16)? O que fez duas tribos e meia ficar fora da terra prometida? (Numeros 34: 15) O que dividiu Lot e Abraão? Não foi também suas manadas e rebanhos que causaram contínuas contendas entre os pastores e no final forçou-os a cada um tomar parte (Genesis 13: 5-11).

Assim posses despertam sentimentos de inveja contra seus proprietários, separam tais proprietários de homens por vezes mais valorosos do que eles próprios, divide famílias, fazem amigos odiarem uns aos outros. Posses, além disso, não têm lugar na vida futura e mesmo na vida presente não são de grande uso. Por que, então, nós abandonamos o serviço de Deus e nos devotamos inteiramente à trivialidades vazias? Pois é Deus que nos sustenta com tudo de que temos necessidade. Os esforços humanos inevitavelmente falham a menos que Deus nos ampare: enquanto Deus em Sua Providência concede toda sorte de benção sem qualquer assistência humana. Qual benefício foi obtido de tais esforços para aquele a quem Deus diz: "Semeaste por muito e colheste pouco, dissipei com um sopro o que querias ajuntar" (Ageu 1: 9) ? E o que falta ao justo, ainda que nem pense em suas necessidades? Não foram os israelitas alimentados por quarenta anos no deserto sem cultivar a terra? Eles sempre tinham o suficiente para comer, pois de um modo estranho e milagroso codornizes vieram do mar e o maná caiu do céu (cf Exodo 16), e de uma pedra seca, quando golpeada, jorrava água. (cf. Êxodo 17:6); e por todos os quarenta anos completos suas roupas e sapatos nunca foram trocados (cf. Deuteronômio 8:4). Qual terra foi lavrada ao lado do ribeiro de Kertih onde Elias se escondeu? Os corvos não lhe levavam comida? (cf. Reis 17:6)? E quando ele veio a Sarepta, não lhe deu a viúva, a despeito de suas necessidades desesperadas, pão, tirando da boca de suas próprias crianças (cf. Reis 17: 10-16)? Tudo isso mostra que nós devemos procurar a santidade, não roupa, comida ou bebida.

Por mais estranho que tudo isso possa parecer, nada disso é impossível. Um homem pode viver toda a vida sem comer se esse for o desejo de Deus. Pois como Elias teve força para completar uma jornada de quarenta dias com apenas uma refeição (Cf. Reis 19:8)? E como Moisés permaneceu na montanha com Deus por oito dias sem provar comida humana? Depois de quarenta dias ele desceu, enfureceu-se com a imagem do bezerro que os israelitas haviam feito, imediatamente ele quebrou as tábuas de pedra onde a Lei estava gravada e voltou à montanha, permanecendo lá por mais quarenta dias; e apenas então, após receber mais duas tábuas de pedra, ele retornou ao povo (cf. Exodo 24: 12-18; 31: 18; 34: 35). Como a mente humana pode explicar tal milagre? Como o corpo humano pode sobreviver sem repor suas energias perdidas diariamente? Este enigma é resolvido pelo Logos Divino quando diz: "O homem não vive somente de pão, mas de toda Palavra que procede da boca de Deus". (Mateus 4:4).

Por que então empurramos para baixo o modo de vida monástico , do céu à terra, onerando-nos em ansiedades materiais? Por que não nos damos conta de que aqueles que "foram educados no escarlate" agora "abraçam o esterco" como fala o livro das Lamentações (4:5)? Pois quando nós somos renovados com pensamentos radiantes e calorosos, nós somos "educados no escarlate"; mas quando deixamos este estado e nos envolvemos com questões materiais, nós abraçamos o esterco. Por que abandonamos a esperança em Deus e nos colocamos sob nossa própria dependência, atribuindo os dons da Providência Divina como se se tratasse de obra de nossas mãos?  Jó considerou que seu maior pecado foi levar a mão à boca e beijá-la, mas ele não teve nenhum escrúpulo ao fazer isto. (Cf Jo 31: 27). Pois muitas pessoas estão acostumadas a beijar suas mãos, afirmando que elas trazem prosperidade. A Lei se refere a tais pessoas simbolicamente quando diz: 'O que quer que caminhe sob patas é impuro' e 'o que quer que caminhe sob quatro ou mais pés é sempre uma abominação' (cf Levítico 11: 27- 42). Agora a expressão 'caminhe sob suas patas' indica alguém que confia em suas próprias mãos e deposita toda a sua esperança nelas, enquanto que 'sob quatro ou mais pés' indica confiar nas coisas sensíveis e continuamente deixar-se seduzir o intelecto na preocupação delas; e ter 'muitos pés' significa agarrar-se aos bens materiais.

Esta é a razão pela qual o autor dos provérbios, falando figurativamente, não desejou o homem perfeito  tendo mesmo dois pés, mas apenas um, raramente envolvendo-se nas questões materiais; pois ele diz: 'Põe raramente seu pé na casa do vizinho, para que ele não se canse de ti e venha a te  odiar' (Provérbios 25:17). 'Vocês são meus amigos', diz o Senhor aos seus discípulos (João 15:14); e se nós tentamos não preocupar nossos irmãos com necessidades materiais, nós devíamos raramente aborrecer Cristo com tais questões; pois se nós continuamos preocupando nossos amigos eles virão a nos odiar. Qual será nosso destino e como escaparemos da condenação, se nós constantemente nos preocupamos com necessidades físicas, e nunca ficamos de pé ou endireitamos as pernas para assim nos desprendermos do chão? Pois nossas duas pernas carregam a massa total de nosso corpo, e se nos agachamos um pouco podemos saltar para cima; e nesse mesmo sentido nossa faculdade de discriminação, depois de parar de atender às necessidades do corpo, pode uma vez mais olhar para cima sem impedimentos, separando-se de todos os pensamentos mundanos.

Ficar de pé ereto, então, é a característica dos homens que não perdoam constantemente seus próprios impulsos baixos; é também característica dos poderes angélicos, porque eles não têm necessidade de coisas físicas e não sentem nenhuma saudade  delas. Isto é o que Ezequiel quis dizer quando ele disse: "Suas pernas eram direitas e seus pés eram velozes" (Ezequiel 1:7). Isso significa uma firmeza inflexível de suas perspectivas e rapidez no movimento rumo às coisas espirituais. Os homens, por outro lado, foi-lhes dado pernas que dobram: neste sentido eles podem se rebaixar algumas vezes para satisfazer as necessidades do corpo, mas em outras podem ascender para satisfazer às da alma. Por causa do parentesco da alma com os poderes celestes, nós devemos a maior parte do tempo dedicar às coisas do alto; com relação ao corpo, nós devemos voltar nossa atenção apenas na medida em que alguma necessidade física nos force a isto. Mas sempre rastejar ao chão na busca de prazer é contaminar e degradar alguém que poderia estar buscando a experiência do conhecimento espiritual.

Estritamente falando, nós devemos chamar alguém de impuro, não porque ele busca alimento, mas apenas se o faz constantemente; pois Deus permite aqueles que possuem um corpo a atender de tempos em tempos suas necessidades. Assim, Jonathan, quando lutando contra Naas o amonita, ganhou vitória sobre ele por se mover com pés e mãos (cf  1Samuel 14: 13), mas ele fez isso somente porque tinha de fazê-lo. Quando ao lutar contra a cobra que se arrasta sobre o ventre - pois é isto que o nome Naas significa - ele foi forçado por pouco tempo a caminhar do mesmo jeito sob mãos e pés; mas então, pondo-se de pé de modo usual, ele facilmente derrotou seu oponente.

A história de Isbosete também nos ensina a não sermos por demais ansiosos com as necessidades do corpo e a não confiar nos sentidos para proteger-nos. Ele era um rei que foi repousar em seus aposentos, deixando uma mulher como porteira. Quando chegaram os homens de Recabe, eles a encontraram debulhando trigo; assim, escapando de sua vista, eles entraram e mataram Isbosete enquanto ele dormia (cf. 2 Samuel 4:5-8). Agora quando os interesses corporais predominam, tudo no homem está adormecido: o intelecto, a alma e os sentidos. Pois a mulher à porta debulhando trigo indica o estado daquele cuja razão está estreitamente absorvida nas coisas físicas e tentando com esforço purificá-los. É óbvio que tal história na Escritura não é para ser tomada literalmente. Pois como pode um rei ter uma mulher como porteira, quando ele deveria provavelmente ser guardado por uma tropa de soldados e ter ao seu redor um grande número de assistentes? Ora, como ele poderia ser tão pobre ao ponto de usá-la também para debulhar o trigo? Ora, tais detalhes improváveis são incluídos na história por causa do seu significado profundo. Assim o intelecto em cada um de nós reside como um rei, enquanto a razão age como a porteira dos sentidos. Quando a razão se ocupa com as coisas corpóreas - e debulhar o trigo é algo ligado ao corpo - o inimigo entra desapercebido e mata o intelecto. Esta é razão pela qual Abraão não confiou a guarda da porta à mulher, sabendo que os sentidos são facilmente enganados, pois eles têm prazer na vista de coisas sensórias, e assim dividem o intelecto e o persuadem a compartilhar em deleites sensuais, ainda que isto seja claramente perigoso.   Mas o próprio Abraão sentou-se à porta (cf. Genesis 18:1), permitindo a livre entrada dos pensamentos divinos, e barrando os cuidados mundanos.

Qual vantagem nós ganhamos em vida de toda nossa inútil labuta sobre as coisas do mundo? 'Não é todo o trabalho do homem para a salvação de sua boca?' (Eclesiastes 6:7)? Agora, de acordo com o Apóstolo (1Tim. 6:8) 'comida e vestimenta' é tudo de que necessita nossa carne humilde. Por que então, como Salomão pergunta, nós trabalhamos sem cessar 'correndo atrás do vento' (Eclesiastes 5:16)? Apesar de nossa ansiedade sobre as coisas do mundo nós impedimos a alma de aproveitar as bençãos divinas e nós outorgamos à carne maior cuidado e conforto do que lhe basta. Nós a nutrimos com o que é prejudicial e assim a tornamos nossa adversária, assim que não se trata  apenas de titubeios na batalha mas, por conta desse excesso de indulgência, ela luta vigorosamente contra a alma, procurando honra e reconhecimento. Quais são de fato as necessidades do corpo para que tenhamos o pretexto de perdoar uma sucessão sem fim de desejos? Simplesmente pão e água. Ora, a primavera não nos dá água de chuva em abundância e o pão não é conseguido facilmente por aqueles que têm mãos? Neste sentido nós podemos satisfazer as necessidades do corpo, desde que sofrendo pouca ou nenhuma distração. E nossas roupas requerem muitos cuidados? Novamente não - se nós rejeitamos uma estúpida conformação à moda, e consideramos apenas nossas necessidades especiais. Pois qual roupa de fio fino, qual linho ou púrpura ou seda vestiu o primeiro homem? O Criador não lhe ordenou a vestir um casaco de peles e comer ervas (cf. Gênesis 3:18, 21)? Tais foram os limites que Ele estabeleceu para as necessidades do corpo - quão distante da civilização vergonhosa dos dias de hoje.

Eu não estou argumentando aqui que Aquele que alimenta os pássaros do céu e veste os lírios do campo com imensa glória proverá certamente o mesmo para nós se buscarmos a santidade; pois aqueles que estão ainda muito distantes da fé real em Deus não podem ser persuadidos por tais argumentos. Mas quem, quando questionado, se recusará a dar o que é necessário para aquele que vive uma vida santa? Os bárbaros da Babilônia que tomaram Jerusalém pela força mostraram respeito pela santidade de Jeremias (cf. Jeremias 40:4-5), e forneceram a ele abundantemente tudo o que seu corpo necessitava, dando-lhe não apenas comida mas os vasos em que se costumava servir os hóspedes. Seguramente então, nossos próprios compatriotas, já que não são totalmente bárbaros, apreciarão a bondade e admirarão o que for santo, mostrando respeito por nossa vida ascética. Mesmo que eles não possam seguir este caminho da ascese devido à fraqueza de sua natureza, pelo menos eles o tomarão como um caminho venerável e honrado para quem o segue. O que motivou a sunamita a construir um quarto para Eliseu e colocar lá uma mesa, cama e castiçal (cf. 2 Reis 4:10)? Não foi a santidade de Eliseu? E o que fez a viúva, quando todo o país estava assolado pela fome, a colocar as necessidades do Profeta antes das suas próprias (cf. 1 Reis 17:10-16)? Ela não teria sido surpreendida pela sabedoria espiritual de Elias, e não teria privado a si mesma e ao filho do pouco que ainda possuíam, e dado a Elias. Ela esperava de qualquer jeito morrer logo, mas na sua generosidade para com o estranho, ela se preparou para ir ainda antes do que o previsto.

Homens tais como Elias e Eliseu se tornaram quem foram devido à sua coragem, perseverança e indiferença com relação às coisas desta vida. Eles praticaram a frugalidade; por estarem contentes com pouco eles alcançaram um estado em que nada queriam, e assim vieram a se parecer com anjos sem corpo. Como resultado, apesar de aparentemente insignificante e não notório, eles se tornaram maiores do que os legisladores da Terra; eles falaram com mais ousadia para monarcas coroados do que qualquer rei sobre suas próprias questões. Em quais armas ou força Elias confiou quando ele repreendeu Acabe dizendo: "Eu não tenho perturbado Israel, mas sim tu e a casa de teu pai" (1 Reis 18:18)?  Como Moisés estava apto a resistir ao Faraó quando ele não tinha nada senão sua santidade para lhe dar coragem? (cf. Êxodo 5) Quando o exército dos reis de Israel e Judá foram recolhidos para a guerra, como Eliseu ousou dizer a Jorão: "Como vive o Senhor dos Exércitos, diante de quem ponho-me de pé, seguramente se eu não estivesse na presença de Jeosafá, o rei de Judá, eu não olharia para ti, nem te veria" (2 Reis 3:14)? Ele não temia nem as tropas montadas, nem a fúria do rei, o que é provavelmente queimar-se sem uma boa razão em tempo de guerra, quando a mente está confusa e ansiosa. Pode qualquer rei conseguir o que só advém com a santidade? Qual manto real de púrpura dividiu um rio, como o manto de Elias? (2 Reis 2:8). E qual coroa real curou doenças, como fizeram os lenços dos apóstolos (cf Atos 19:12)? Um profeta solitário certa vez censurou um Rei por seus atos ilegais, quando o rei tinha todas as forças armadas com ele. Incensado por sua crítica, o rei esticou sua mão para repreender o profeta; ele não apenas falhou ao capturá-lo, como foi incapaz de trazer a mão de volta, pois ela havia murchado. Houve uma contenda entre a santidade e o poder do Rei; e a vitória foi dada à santidade. O profeta não lutou; foi a santidade que derrotou o inimigo. O combatente mesmo não fazia nada enquanto sua fé agia. Os aliados do rei ficaram como juízes da contenda; e a mão do rei tomada rapidamente mostrou que a santidade havia vencido.

Estes santos homens alcançaram tais coisas porque eles tinham resolvido viver apenas para a alma, afastando-se do corpo e seus desejos. O fato de não necessitar nada os fez superiores a todos os homens. Eles escolheram abandonar o corpo e libertar-se da vida na carne a ter de trair a causa da santidade e preferiram a santidade a ter de lisonjear os ricos quando necessitados de bens físicos. Mas, como para nós, quando nos falta algo, em vez de lutar corajosamente contra nossas dificuldades, bajulamos os ricos, como cachorrinhos abanando o rabo na esperança de ser lançado um osso ou algumas migalhas. Para conseguir o que queremos, nós os chamamos de benfeitores e protetores dos Cristãos, atribuindo-lhes todas as virtudes, mesmo que possam ser totalmente perversos. Nós não investigamos como viveram os santos, a despeito de supostamente ser nosso objetivo imitar sua santidade.

Naamã, o comandante do exército sírio, veio a Eliseu com muitos presentes. E o que fez o profeta? Ele saiu para encontrá-lo? Será que ele correu em sua direção? Não, ele mandou um rapaz descobrir porque Naamã tinha chegado, e nem mesmo admiti-lo em sua presença. Isso foi para prevenir alguém de pensar que o profeta tinha curado Naamã em retribuição aos presentes que ele trouxera. (2 Reis 5:8-16). Esta história não quer nos ensinar a ser arrogantes, mostra sim que nós não devemos bajular, por conta de nossas necessidades, é nossa vocação desprezar aqueles que valorizam muito estas coisas.

Por que abandonar a busca da sabedoria espiritual, e se engajar na agricultura e comércio? O que podemos fazer melhor do que confiar nossas angústias a Deus, para que assim Ele possa nos ajudar com a agricultura? O solo é semeado e as sementes são semeadas pelos esforços humanos; então Deus envia a chuva, regando as sementes no ventre da terra e permitindo-lhes desenvolver raízes. Ele faz o sol nascer, aquecendo o solo, e com esse calor Ele estimula o crescimento das plantas. Ele envia um vento moderado para seu desenvolvimento. Quando os brotos começam a despontar, Deus lhes envia uma brisa leve, para que as plantas não se aqueçam demais com correntes quentes de ar. E então, com ventos constantes, ele amadurece o leite dos grãos dentro das cascas. No tempo da  debulha ele fornece calor e na colheita brisas adequadas. Se um destes fatores falta, toda a nossa labuta é desperdiçada; nossos esforços não alcançam nada quando eles não são selados pelos dons de Deus. Frequentemente, mesmo quando todos estes fatores estão presentes, uma tempestade violenta e inoportuna estraga os grãos quando é batido ou amontoado. Algumas vezes, novamente, é destruído por vermes no celeiro: como se estivesse em nossa mesa e subitamente fosse arrancado de nossas bocas. Qual é, então, a utilidade de confiar em nossos próprios esforços, já que Deus controla o leme e dirige todas as coisas como Ele deseja?

Nos acostumamos a dizer que na doença o corpo precisa de alguma assistência. Mas não é bem melhor morrer a ter de fazer algo que não condiz com nossa vocação? Em qualquer caso, se Deus desejar que continuemos vivos, Ele nos dará força suficiente para suportar o fardo da doença e nos recompensará por nossa coragem; ou ainda, Ele encontrará algum jeito de aliviar a dor, pois a Fonte de Sabedoria nunca nos deixa sem remédio.

O que necessitamos acima de tudo é retornar para a vida abençoada seguida pelos primeiros monges. Este modo de vida pode ser alcançado facilmente por todos aqueles que assim o desejarem. E assim, se qualquer sofrimento se aproxima, ele não será infrutífero; pois há este consolo que é o de corrigir nossas faltas e capacitar-nos a fazer mais progressos. Tal sofrimento também confere grande benefício àqueles que embarcaram na via espiritual mas acabaram abandonando-a, pois ele permite o retorno a esta via mais uma vez.

Rejeitemos a permanência em cidades e vilas; o melhor é que seus habitantes venham nos visitar. Procuremos o deserto e deixemos para trás as pessoas que agora nos evitam. Pois a Escritura louva aqueles que "deixam a cidade e habitam o rochedo" (Cf. Jeremias 48:28). João Batista viveu no deserto e a população das cidades vinham ter com ele. Homens ornados em seda se apressavam em ver aquele que usava um cinto de couro; aqueles que habitavam casas com tetos dourados escolheram suportar provações ao ar livre; e preferiam deitar na areia a dormir em camas adornadas com jóias. Tudo isso eles suportaram, ainda que fosse contrário ao seu modo habitual de vida; pois ao desejar ver João, o Batista, em sua maravilha e santidade, acabavam por não notar as dificuldades e desconfortos. Pois a santidade é mais honrada que a saúde; e a vida de quietude ganha maior fama do que a grande fortuna. Quantos homens ricos existiram naquele tempo, orgulhosos de sua glória, e estão hoje totalmente esquecidos; ao passo que a vida miraculosa deste habitante do deserto é aclamada até os dias de hoje, e sua memória é grandemente reverenciada por todos. Pois o renome da santidade é eterno, e sua intrínseca virtude proclama seu valor.

Vamos desistir de nossos rebanhos e manadas, e assim tornarmo-nos verdadeiros pastores. Abandonemos  o sórdido comércio, para assim adquirir a 'pérola de grande preço' (Mateus 13:46). Paremos de lavrar a terra que 'produz espinhos e abrolhos' (Genesis 3:18) e assim nos tornarmos cultivadores e mantenedores do paraíso. Daremos tudo e escolheremos a vida de quietude, e silenciaremos aqueles que agora nos reprovam por possuirmos posses. O melhor caminho para embaraçar nossos críticos é discretamente nos corrigir as faltas pelas quais eles nos insultam; pois tal mudança envergonhará os que nos censuram.

Há outra coisa que é em minha opinião verdadeiramente desgraçada e, pela qual com justa razão somos ridicularizados por todos. Quando alguém acabou de entrar para a vida monástica e simplesmente aprendeu as práticas do asceticismo em seu aspecto exterior - como e quando os monges rezam, o que eles comem e como se vestem - ele se coloca a ensinar aos outros a respeito de coisas que ele mesmo não tem maestria. Ele anda com um bando de discípulos, apesar dele mesmo necessitar de instrução; ele pensa que é fácil ser um guia espiritual, não se dando conta de que o cuidado da alma alheia é todos os ofícios o mais difícil. Pois os homens devem primeiro ser purificados das velhas impurezas, e então com atenção concentrada aprender algo sobre a santidade. Mas quando uma pessoa imagina que não há nada além da prática ascética exterior (aquela do corpo), como ele corrigirá o caráter de seus pupilos? Como ele remodelará aqueles escravizados por hábitos ruins? Como ele ajudará os que são atacados pelas paixões, quando ele não sabe nada sobre a guerra espiritual? Como ele curará as feridas daqueles que ele receber quando de suas lutas, uma vez que ele mesmo permanece ferido e em necessidade de ajuda?

O mestre em qualquer arte requer tempo e muitas instrução; pode a arte das artes ser ministrada sem ser antes aprendida? Ninguém sem experiência vai se meter na agricultura; nem qualquer um que nunca tivesse tomado aulas de medicina se atreveria a praticá-la. O primeiro seria condenado por ter tornado a terra boa estéril e infestada de ervas daninhas; o segundo por ter piorado o estado do doente ao invés de melhorá-lo. A única arte que o não instruído ousa praticar, por pensar ser a mais simples de todas, é aquela da via espiritual. O que é difícil a maioria toma por fácil; e o que Paulo dizia não ter ainda aprendido (Cf. Filipenses 3:12), eles afirmam conhecer por completo, apesar de não reconhecerem nem isto: que são totalmente ignorantes.

Eis ai a razão pela qual a vida monástica é tratada com menoscabo, e aqueles que a seguem serem zombados por todos. Pois quem não riria quando visse alguém que ontem se servia na taverna, posando hoje de mestre da virtude, cercado de pupilos? Ou quando vêem um homem que acabou de deixar uma vida de desonestidade cívica arrogando-se agora sobre todos com uma multidão de discípulos? Se esta pessoa tivesse noção clara do quão dolorosa é a luta requerida para guiar os demais na via espiritual, ela certamente abandonaria essa tarefa como além de suas forças. Mas porque eles permanecem ignorantes disso e conhecem a glória de ser guia dos demais, eles permanecem nessa insânia até chegar o momento em que dão de cabeça no poço. Eles pensam que é nada pular na fornalha ardente. Eles provocam riso naqueles que conhecem sua vida pretérita, e despertam a ira de Deus por sua temeridade. Porque Eli falhou ao corrigir suas crianças, e assim, nada pôde evitar a ira de Deus sobre ele - nem sua venerável idade avançada, nem seu passado de livre comunhão com Deus, nem a honra devida ao seu sacerdócio (cf. 1 Samuel 2:12, 29; 4:18). Como, então, eles escaparão de Sua ira, se suas antigas ações não agradam a Deus, se não entendem o funcionamento do pecado, nem como corrigi-lo, e querem embarcar nessa tarefa perigosa, sem qualquer experiência e motivados apenas pelo amor à glória?

Sobre o orgulho



Última parte do discurso de João Cassiano acerca dos oito vícios (glutonaria/gula, luxúria, avareza, ira, tristeza /inveja/melancolia, apatia/preguiça, autoestima /vaidade, orgulho).

Essa lista integra a autoestima/vaidade também como um pecado capital. Portanto, seriam oito pecados de raiz e não sete. Na tradição dos sufis também a covardia é um pecado de raiz. Seriam assim nove pecados fundamentais, ou nove paixões que destituem e destroem nossa personalidade, os quais estamos todos sujeitos, em maior ou menor grau. Desse modo, esse tratado ascético tem como meta uma cura espiritual, a partir do reconhecimento de que estamos doentes e incapazes de ver a realidade tal como ela é.

Sobre o orgulho
tradução da versão inglesa por Rochelle Cysne

Nossa oitava luta é contra o demônio do orgulho, o mais sinistro dos demônios, mais feroz do que todos os que foram discutidos até agora. Ele ataca o perfeito acima de tudo e procura destruir aqueles que chegaram ás alturas da santidade. Como uma praga mortal destrói não apenas um membro do corpo, mas o seu todo, assim o orgulho corrompe a alma, não uma parte dela. Cada uma das outras paixões que perturbam a alma ataca ou tenta superar a virtude singular que se lhe opõe, e assim obscurecer a alma apenas parcialmente. Mas a paixão do orgulho escurece a alma completamente e a leva para sua queda total.

A fim de entender mais plenamente o que quero dizer por isto, nós devemos olhar para o problema da seguinte forma. A gula tenta destruir o autocontrole; a luxúria, a moderação; a avareza, a pobreza voluntária; a ira, a gentileza; e outras formas de vício suas virtudes correspondentes. Mas quando o vício do orgulho se tornou o mestre de nossa alma miserável, ele age como um tirano cruel que ganhou o controle de uma grande cidade, e a destrói completamente, destruindo-a por suas bases. O anjo caído do céu por causa de seu orgulho é testemunho disso. Ele foi criado por Deus e adornado com toda virtude e toda sabedoria, mas ele não quis atribuir isso como Graça de Deus. Ele atribuiu isso à sua própria natureza e como resultado reconheceu-se igual a Deus. O profeta repreende essa afirmação quando ele diz: 'Você disse em seu coração: "eu sentarei numa alta montanha; eu colocarei meu trono sobre as nuvens e eu serei como o Supremo". Ainda que você seja um homem, e não Deus' (Isaías 14: 13-14). E novamente, outro profeta diz, 'Por que você se orgulha da sua maldade, oh homem poderoso?' e ele continua neste mesmo sentido (Salmo 51;1). Uma vez que estamos conscientes disto nós devemos temer e guardar nosso coração com extremo cuidado do espírito mortal do orgulho. Quando nós atingimos algum grau de santidade nós devemos sempre repetir para nós mesmos as palavras do Apóstolo: 'Não eu, mas a Graça de deus que está comigo' (I cor. 15:10), bem como o que foi dito pelo Senhor: 'Sem mim, nada podeis fazer' (João 15:5). Nós devemos também ter em mente o que o profeta disse: 'A menos que o senhor construa a casa, os que a constroem trabalham em vão ao construí-la' (salmo 127:1)., e finalmente: 'Não depende da vontade ou esforço do homem, mas da misericórdia de Deus' (Roma. 9:16).

Ainda que alguém seja diligente, sério e resoluto, ele não pode, contanto seja feito de carne e osso, se aproximar da perfeição apenas por meio da misericórdia e graça de Cristo. Tiago mesmo diz  que "todo dom excelente vem do alto" (Tiago 1: 17), enquanto o Apóstolo Paulo pergunta: "O que você tem que não lhe foi dado? Agora, se você o recebeu, porque se orgulha, como se não tivesse recebido?" (I Cor. 4:7). Qual direito tem, então, o homem de se orgulhar como se ele pudesse alcançar sua perfeição mediante apenas seus próprios esforços?

O ladrão que recebeu as chaves dos céus, ainda que não como reconhecimento da virtude, é uma verdadeira testemunha para o fato de que a salvação é nossa apenas por meio da Graça e Misericórdia de Deus. Todos os nossos santos padres sabiam disso e todos concordam em ensinar que a perfeição na santidade só pode ser alcançada por meio da humildade. Humildade, por sua vez, só pode ser alcançada pela fé, temor de Deus, gentileza e renúncia a todas as posses. É por meio disto que nós obtemos o perfeito amor, mediante a graça e a compaixão de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem seja dada a glória, pelos séculos dos séculos. Amém.

Pela sua dolorosa paixão, tenha misericórdia de nós e do mundo inteiro.