Cristo Pantocrator

domingo, 16 de dezembro de 2012

Sobre a Oração do Senhor

Esse texto também é de São Máximo Confessor, e fala acerca da oração de Jesus, o Pai Nosso. Tipo de meditação recorrente ao longo da tradição cristã, sendo bastante conhecida a análise feita por Santo Agostinho dessa mesma oração.
A edição que usei é a mesma das 400 Centúrias sobre o amor. As páginas são de 285 a 305.


Sobre a oração do Senhor

Uma breve interpretação endereçada a um devoto cristão

Eu, Senhor, ao ter recebido suas cartas inspiradoras, o recebi em sua própria pessoa. De fato, você sempre esteve presente em espírito e não pode possivelmente estar ausente. Mas, seguindo o exemplo de Deus, você, em sua bondade, também aproveitou a oportunidade dada a você por Deus para se comunicar com os seus servos.  Eu tenho grandemente admirado sua humilhação de si mesmo, tenho atenuado meu medo por ti com afeição, e por eles formei um amor baseado no respeito e boa vontade. Ambos combinados com o medo e desprovidos de afeição, devem se verter em ódio, ou afeição desprovida de medo, se verte em excessiva familiaridade. Neste caso, o amor se torna uma lei íntima de ternura, assimilando tudo e tornando-o semelhante a ele, dominando o ódio pela boa vontade e a excessiva familiaridade com o respeito.

Davi, o salmista disse, "O temor do Senhor é puro e permanece para sempre" (Salmo 19:9), porque ele sabe que de todas as coisas o temor é a mais capaz de preservar o amor divino. Tal medo, ele percebe ser muito diferente do medo de ser punido por um crime. Este segundo tipo de medo é inclusive derrubado e destruído pelo amor, como João Evangelista deixa claro quando escreve, "O amor lança fora o temor" (I João 4:18). Mas o temor do qual Davi se refere é expressão natural da lei da verdadeira ternura; e é por este temor que os santos sempre mantém intacto o papel e prática do amor, tanto por Deus quanto pelo próximo.

Assim, conforme eu disse, também moderei meu temor por ti, Senhor, com afeição e tenho mantido esta lei do amor até agora. Até aqui tenho sido impedido de escrever, através do respeito, porque não desejo abrir a porta da excessiva familiaridade; mas agora eu fui impelido a escrever através da boa vontade, para que a minha falta de escrita não seja interpretada como ódio. E assim, como requerido, eu escrevo, não o que eu penso - pois, como a Escritura diz, "os pensamentos dos homens são patéticos" (Sabedoria 9:14) - mas o que Deus quer e concede pela Graça para que o bem possa chegar, pois "O Conselho do Senhor permanece para sempre" diz Davi, "e os pensamentos de Seu coração de geração em geração" (Salmo 33:11). Talvez o conselho de Deus Pai para o qual Davi aqui se refere seja o insondável despojamento do Filho Unigênito que ocasionou a deificação de nossa natureza e pela qual ele estabeleceu um limite para as eras; e talvez os pensamentos de Seu Coração sejam o princípio da providência e julgamento pelo qual Ele sabiamente ordena nossa vida presente e futura como se elas fossem gerações separadas, atribuindo a cada uma seu modo de atividade apropriada.

Se o propósito do divino conselho é a deificação de nossa natureza, e o objetivo dos pensamentos divinos é fornecer os pré requisitos de nossa vida, segue que devemos tanto conhecer e levar a efeito a poderosa Oração do Senhor, e escrever sobre ela em um sentido próprio. E já que o senhor ao escrever para mim seu servo foi inspirado por Deus a mencionar em particular esta oração, este é necessariamente também o assunto de minhas palavras; portanto eu suplico ao Senhor, que nos ensinou esta oração, para abrir meu intelecto para que o mesmo possa compreender os mistérios contidos nela, e dar-me palavras similares para a tarefa de elucidar o que eu compreendi. Pois como que oculta no interior de uma pequena bússola, esta oração contém a proposta e objetivo principal dos quais já falamos; ou, de preferência, ela abertamente proclama esta proposta e objetivo para aqueles cujos intelectos são fortes o bastante para percebê-los. A Oração inclui as petições por tudo o que o Divino Logos efetuou por meio de Seu auto-esvaziamento na encarnação, e ela nos ensina a nos esforçar por obter aquelas bençãos das quais apenas obtemos pelo Deus provedor, o Pai, mediante a natural mediação de Seu Filho no Espírito Santo. Pois o Senhor Jesus é o mediador entre Deus e os homens, como o divino apóstolo fala (cf. 1 Tim. 2:5), já que Ele torna manifesto o Pai desconhecido por meio da carne, e dá àqueles que foram reconciliados a Ele o acesso ao Pai por meio do Espírito Santo (cf. Efésioa 2:18). Foi em nome deles e para a salvação deles que sem mudança fez-Se homem, e é agora o autor e professor de tantos e tão imensos mistérios ainda além de nosso entendimento.

Destes mistérios que Ele concedeu aos homens em Sua generosidade sem limites, sete são de significação mais geral; e por meio deles um poder oculto repousa na Oração do Senhor. Estes sete são a teologia, a adoção como filhos pela Graça, a igualdade com os anjos, a participação na vida eterna, a restauração da natureza humana quando ela é reconciliada a si mesma sem apego, a abolição da lei do pecado, e a destruição da tirania que nos mantém em seu poder através do engano do maligno.

Examinaremos a verdade do que dissemos. Teologia é ensinada pelo Logos encarnado de Deus, já que Ele revela em Si Mesmo o Pai e o Espírito Santo. Pois o todo do Pai e o todo do Espírito Santo estavam presentes essencialmente e perfeitamente no todo do Filho Encarnado. Eles mesmos não se tornaram encarnados, mas o Pai aprovou e o Espírito cooperou quando o Próprio Filho efetuou Sua encarnação. Na encarnação o Logos preservou Seu intelecto e Sua vida intactos: exceto pelo Pai e o Espírito Ele não estava compreendido em essência por qualquer outro ser que seja, mas em Seu amor pelos homens estava unido hipostaticamente com a carne.

O Logos concede adoção em nós quando Ele nos garante nascimento e deificação que transcendem a natureza, pela Graça do Alto através do Espírito. A guarda e preservação daqueles que assim nasceram em Deus depende da determinação deles na aceitação sincera da Graça que lhes foi concedida, por meio da prática dos mandamentos e no cultivo da beleza dada a eles pela graça. Mais ainda, esvaziando-se das paixões que os afastam do divino com a mesma intensidade com que Ele mesmo esvaziando-se de Sua própria Glória Sublime, de Logos Divino tornou-se verdadeiramente homem.

O Logos fez os homens iguais aos anjos. Não apenas Ele "reconciliou pelo sangue de Sua Cruz ... coisas na terra e no Céu" (Colossenses 1:20), e reduziu à impotência os poderes hostis que ocupam a região intermediária entre céu e terra, unificando os poderes celestes e terrestres num singular encontro para a distribuição de Seus divinos dons, com a humanidade alegremente unida com os poderes do alto em louvor unânime da Glória de Deus; mas também, depois de cumprir o propósito realizado em nosso nome, quando Ele foi levado com o corpo que Ele tinha assumido, Ele uniu céu e terra em Si mesmo, juntou o que é sensível com o que é inteligível, e revelou a criação como um todo singular cujos extremos estão unidos tanto pela virtude quanto pelo conhecimento da Causa Primeira deles. Penso que Ele mostrou através do que Ele cumpriu misticamente, que o Logos une o que está separado e que a alienação do Logos divide o que é unido. Aprendamos, então, a continuar o esforço mesmo após a prática das virtudes, de modo que pelo Logos possamos ser unidos aos anjos não apenas por meio das virtudes, mas ao próprio Deus, em conhecimento espiritual mediante afastamento das coisas criadas.

O Logos nos capacita a participar da vida divina ao se fazer Ele mesmo nossa comida, de um modo inteligível a Si mesmo e àqueles que receberam dele uma percepção noética deste tipo. É por provar esta comida que eles se tornam verdadeiramente conscientes de que o Senhor é pleno de virtude (cf. Salmo 34:8). Pois Ele transmuta em divindade aqueles que O comem, proporcionando-lhes Deificação, já que Ele é o pão da Vida e do poder, tanto no nome quanto na realidade.

Ele restaura a natureza humana em si mesma. Primeiro, Ele se tornou homem e manteve Sua vontade livre de paixões e de rebeldia contra a natureza, de modo que Ele não vacilou nem um pouco de seu próprio movimento natural, mesmo com relação àqueles que o crucificaram; pelo contrário, Ele escolheu a morte por causa deles, ao invés da vida, demonstrando desse modo o caráter voluntário de sua paixão, enraizada em seu Amor pela humanidade. Em Segundo Lugar, tendo pregado na Cruz o registro de nossos pecados (cf. Col. 2:14), Ele aboliu a inimizade que levou a natureza a travar uma guerra implacável contra si mesma e tendo convocado os que estavam fora e próximos - isto é, aqueles sob a Lei e aqueles fora dela - e tendo quebrado a parede obstrutiva que dividia os homens - explicando a Lei dos mandamentos a partir de seus ensinamentos a estas duas categorias de humanidade - Ele formou os dois em um novo homem, fazendo a paz e reconciliando-nos através de si mesmo ao Pai e ao outro (cf. Efésios 2:14-16): nossa vontade não é mais oposta ao princípio de natureza, mas nós aderimos a ela sem desvio em qualquer vontade ou natureza.

O Logos purifica a natureza humana da lei do pecado não permitindo que a sua Encarnação para nossa salvação seja precedida de prazeres sensuais. Pois sua concepção tomou lugar miraculosamente sem semente, e seu nascimento supranatural sem a perda da virgindade de sua mãe. Isso significa dizer que, quando Deus nasceu de Sua mãe, pelo Seu nascimento Ele mostrou por meio da virgindade dela a superação da natureza; e naqueles que estavam desejando que Ele libertasse o todo da natureza humana da regra opressiva da lei que a domina, na medida em que eles imitam Sua morte voluntária ao mortificar os aspectos terrenos deles mesmos (cf. Colossenses 3:5). Pois o mistério da salvação pertence àqueles que o escolheram, não aqueles que são compelidos pela força.

O Logos destrói a tirania do mal, que nos domina através do engano, por triunfantemente armar-se contra ele, a carne corrompida de Adão. Neste sentido Ele mostra que o que foi uma vez capturado e feito matéria de morte agora captura o capturador: por uma morte natural destrói-se a vida do capturador tornando-se um veneno para ele, fazendo-o vomitar todas aquelas coisas que ele era capaz de fazer porque estava sob o poder da morte. Mas para a humanidade torna-se vida, como o fermento na massa impulsionando toda a natureza a crescer como massa na ressurreição da vida (cf. I Coríntios 5:6-7). Foi para conferir esta vida que o Logos que era Deus feito homem - coisa verdadeiramente inédita - aceitou de bom grado a morte da carne.

A oração do Senhor, como eu disse, contém uma petição para cada uma destas coisas. Primeiro, ela fala do Pai, Seu nome, e seu Reino. Segundo, ela nos mostra que a pessoa que reza é por Graça Filho deste Pai. Solicita que aqueles que estão tanto no céu quanto na terra possam ser unidos em uma única vontade. Fala-nos para pedir pelo pão diário. Estabelece que os homens devam ser reconciliados uns com os outros e une nossa natureza consigo mesma quando perdoamos e somos perdoados, pois então ela não se divide em pedaços, separando a vontade do propósito. Ensina-nos a rezar para não entrar em tentação, uma vez que é esta a lei do pecado. E exorta-nos a pedir que sejamos livres do mal. Pois o autor e doador das bençãos divinas não podia ser nosso professor, provendo as palavras da oração como preceitos de vida para aqueles discípulos que NEle creram e ao mesmo tempo seguir o caminho que Ele ensinou na carne. Através destas palavras Ele revelou os tesouros ocultos da sabedoria e do conhecimento (cf. Colossenses 2:3) que em forma pura existem NEle; e para todos aqueles que oferecem esta oração Ele estimula o desejo de gozar de tais tesouros.

É por esta razão, eu penso, que a Escritura chama este ensinamento de "oração", já que ela contém petições para os dons que Deus dá aos homens pela graça. Nossos pais divinamente inspirados explicaram a oração em um sentido similar, dizendo que a oração é uma petição pela qual Deus naturalmente dá aos homens na maneira apropriada a Ele, enquanto uma promessa (voto), conversivamente, é uma promessa de que os homens que veneram a Deus sinceramente resolvem oferecer a Ele. Os pais citam muitos textos das Escrituras para ilustrar esta distinção tais como "Fazei votos ao Senhor nosso Deus e cumpri-os" (Salmo 76: 11), e "Eu pagarei o que a Ti votei" (Jonas 2:10), que se referem aos votos. Sobre o tema da oração, eles citam por exemplo alguns textos como este: "Ana orou ao Senhor dizendo: O Senhor dos exércitos, se o Senhor queres de fato ouvir a Tua serva e dar-me uma criança" (cf. 1 Samuel 1:11),  "Ezequias, rei de Judá, e o profeta Isaías o filho de Amós oraram ao Senhor" (cf. 2 Crônicas 32:20), e "Portanto orareis assim: Pai Nosso que estás no Céu" (Mateus 6:9), como o Senhor disse aos discípulos. Consequentemente, um voto é uma decisão de manter o mandamento, confirmado por uma promessa na parte da pessoa que fez o voto; e uma oração é uma petição por aquele que manteve o mandamento que pode ser transformado pelo mandamento que ele manteve. Ou, de preferência, um voto é uma luta por virtude que Deus acolhe mais prontamente sempre que é oferecido a Ele; e orar é o preço da virtude que Deus dá alegremente quando a luta é vencida.

Já que então a oração é a petição pelas bençãos dadas pelo Logos Encarnado, façamos dele nosso mestre na Oração. E quando tivermos contemplado o sentido de cada frase tão cuidadosamente quanto possível, vamos apresentá-la com confiança; pois o Próprio Logos nos dá, de uma maneira que é melhor para nós, a capacidade para entender o que ele diz.

"Pai Nosso que estás nos céus, santificado seja o Vosso nome; venha a Nós o Vosso Reino" (Mateus 6:9-10). Convém que desde o início o Senhor ensine àqueles que rezam a começar pela teologia, e deve iniciá-los no modo de existência dEle que é por essência a Causa criadora de todas as coisas. Pois estas palavras abertas da oração contém uma revelação do Pai, do nome do Pai, e do reino do Pai, de modo que desde o início possamos ser ensinados a reverenciar, invocar e adorar a Trindade na unidade. Pois o nome de Deus Pai existe em forma substancial como do Filho Unigênito. Novamente, o Reino de Deus Pai existe em forma substancial como Espírito Santo: o que Mateus chama "Reino" neste contexto um dos outros Evangelistas chama em outro lugar de "Espírito Santo", dizendo, "Que teu Espírito Santo venha e nos purifique". (Lucas 11:2). Pois o nome do Pai não é alguma coisa que Ele adquiriu, não é o reino uma dignidade atribuída a Ele: Ele não teve início, de modo que em um certo momento Ele começasse a ser Pai ou Rei, mas Ele é eterno e é eternamente Pai e Rei. Em nenhum sentido, consequentemente, ele começou a existir ou começou a ser Pai ou Rei. E se Ele existe eternamente, não apenas Ele é eternamente Pai e Rei mas também o Filho e o Espírito Santo coexistem nEle eternamente em forma substancial, tendo seu Ser dEle e por natureza inerindo a Ele além de qualquer causa ou princípio: Eles não são sucessivos a Ele, nem vieram eles a existência após Ele de maneira contingente. A relação de co-inerência  entre as Pessoas abraça as três ao mesmo tempo, não permitindo que uma das três seja reconhecida como primeira ou emanação das outras.

No início desta oração, então, nós honramos a coessencial e supra-essencial Trindade como a causa criadora de nossa vinda à existência. Em segundo lugar, nós somos instruídos a proclamar a graça de nossa adoção, já que nos descobrimos dignos de nos endereçar ao Criador por natureza como nosso Pai pela graça. Assim, venerando este título causado pela graça, nós nos esforçamos para estampar nosso Criador como nosso Pai, mostrando-nos ser Suas crianças por esta adoção, que é por natureza Filho do Pai.

Nós reverenciamos ou santificamos o nome do nosso Pai pela graça quando nós mortificamos nosso desejo por coisas materiais e nos purificamos das paixões corruptoras. Pois santificação é verdadeiramente a completa mortificação e a cessação do desejo nos sentidos. Quando nós alcançamos isso, nós amenizamos a rude turbulência de nossos próprios prazeres apetitivos, pois o desejo que a desperta a persuade a lutar por seus próprios prazeres agora que ela foi debelada pela santidade. Pois a ira, sendo por natureza a protagonista do desejo, pára por sua própria vontade, uma vez que vê seu desejo morto.

Para repudiar ira e desejo devemos invocar a regra do Reino de Deus o Pai que com as palavras "Venha a nós o Vosso Reino" (Mateus 6:10), isto é, "Possa vir o Espírito Santo"; pois ao por de lado estas coisas, nós nos fazemos agora templo de Deus através do Espírito Santo pelo ensinamento e prática da gentileza. "Que me leva a descansar", diz a Escritura, "mas aquele que é manso e humilde, teme as minhas palavras" (cf. Isaías 66:2). É claro disto que o Reino de Deus pertence aos mansos e humildes. Pois "bem aventurados os mansos, pois herdarão a terra" (Mateus 5:55). Não é a terra física,  que ocupa o universo, que Deus promete como herança àqueles que o amam - não, pelo menos, se Ele está falando verdadeiramente quando diz, "Na ressurreição eles nem se casam nem se dão em casamento, mas são como anjos no céu" (Mateus 22:30) e "Venha, você a quem meu Pai abençoou, herde o Reino preparado para você desde a fundação do mundo" (Mateus 25: 34), e novamente, em outra parte, alguém que se esforçar com boa vontade, "Entrará na alegria de nosso Deus" (Mateus 25:21). E após o Senhor, São Paulo diz: "A trompeta soará e primeiro os que morreram em Cristo ressuscitarão incorruptos; então nós que estivermos vivos seremos arrebatados com eles nas nuvens para encontrar o Senhor no ar; e assim nós estaremos com o Senhor para sempre". (I Tessalonicenses 4: 16-17).

 Já que estas coisas foram prometidas àqueles que amam o Senhor, o que um homem solicitado pela inteligência e desejoso de servi-la diria, de uma leitura literal das Escrituras apenas: que o céu e o reino preparado desde a fundação do mundo, e a alegria misticamente ocultada do Senhor, e a morada perpétua com o Senhor aproveitada pelos santos, são para ser identificados com o que é terreno? Neste texto (Mateus 5:5) eu penso que a palavra "terra" significa a resolução e força da estabilidade inerente, imovivelmente enraizada na bondade, que é característica das pessoas mansas. Esse estado de estabilidade existe eternamente com o Senhor e contém  uma alegria infalível, capacitando os mansos a obter o reino preparado desde o início, e tem sua estadia e dignidade no céu. Também permite os mansos a inerir ao princípio da virtude, como se a virtude fosse a terra que ocupa o universo. Pois as pessoas mansas abraçam uma posição intermédia entre honra e descrédito, e permanecem sem apego, nem inchadas pela honra, nem humilhadas pelo descrédito. Pois a inteligência é por natureza superior tanto ao louvor quanto à vergonha; e assim, quando se põe de lado o desejo sensual, não se é mais perturbado nem por um nem por outro, tendo ancorado todo o poder da alma na divina e inatacável liberdade. O Senhor, querendo transmitir esta liberdade aos seus discípulos, diz, "Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração; e você encontrará repouso para suas almas" (Mateus 11:29). Ele chama a regra do Reino Divino de "repouso" porque ele confere naqueles dignidade de uma senhoria livre de toda a servidão.

Se o poder indestrutível do puro reino é dado aos mansos e humildes, qual homem será tão completamente sem amor e sem disposição para a benção divina que não desejará o mais alto grau de humildade e mansidão de modo a assumir o selo do conhecimento divino, tanto quanto isso é possível aos homens, e carregar em si mesmo pela graça uma semelhança espiritual de Cristo, que é por natureza o Rei verdadeiramente grande? Nesta semelhança, diz São Paulo, "não há homem nem mulher" (Gálatas 3:28), isto é, não há nem ira nem desejo. Destes, a primeira tiranicamente perverte o julgamento e faz a mente trair a lei de natureza: enquanto o segundo despreza a única causa desapegada  e a natureza, que apenas é verdadeiramente  desejável, em favor do que é inferior, dando preferência à carne e não ao espírito, e considerando o prazer mais nas coisas visíveis do que na magnificência e glória das realidades inteligíveis. Neste sentido, com a lubricidade dos prazeres sensuais ele seduz o intelecto da divina percepção das realidades espirituais que é próprio a ele.

É nosso próprio papel fazer a inteligência ficar sozinha, despojada das virtudes desta afecção pelo corpo; pois esta afecção, mesmo quando totalmente desapaixonada, é ainda natural. O espírito, completamente triunfante sobre a natureza, tem de persuadir o intelecto a desistir da filosofia moral de modo a comungar com o Logos supraessencial através da contemplação direta e individida, a despeito do fato de que a filosofia moral ajude o intelecto a isolar-se indo para além das coisas que estão no fluxo do tempo. Pois quando o intelecto tornou-se livre de sua união aos objetos sensíveis, ele não fica sobrecarregado mais tempo com preocupações acerca da moralidade que é como um manto felpudo.

Elias claramente revela este mistério de forma tipológica através de suas ações (cf. 2 Reis 2:11-14). Pois quando ele foi transportado para o Céu, ele deu a Eliseu sua capa, isto é, a mortificação da carne que constitui a principal glória da conduta moral. Ele fez isso assim que Eliseu recebeu o apoio do Espírito em sua batalha contra os poderes hostis e triunfando sobre o fluxo e instabilidade da natureza, tipificado pelo Jordão; assim que, em outras palavras, ele não seria imerso na turbidez e lodo do apego material e, assim, impedido de cruzar a terra santa. Entretanto, o próprio Elias avançou livremente para Deus, não onerado pela união a qualquer criatura criada. Por ser o seu desejo não dividido e sua vontade não misturada, ele fez sua morada com Ele que é simples por natureza, conduzido que foi para lá pelas virtudes cardeais independentes, espiritualmente avançado como um cavalo de fogo.

Elias sabia que o discípulo de Cristo não deve possuir disposições desequilibradas, pois tal diversidade é prova de uma falta de unidade interior. Assim a paixão de desejo produz uma difusão de sangue em torno ao coração, e o poder apetitivo quando desperto faz com que o sangue ferva. Aquele que já vive, se move e tem seu Ser em Cristo (cf. Atos 17:28) anulou em si mesmo a produção do que é desequilibrado e desunido: como eu disse, ele não carrega em si, como macho e fêmea, as oposições dispostas de tais paixões. Neste sentido, a inteligência não é escravizada pelas paixões e sujeita à sua inconstância. Naturalmente dotada com a santidade da imagem divina, a inteligência impele a alma a conformar-se por sua própria escolha à divina semelhança. Neste sentido a alma é também capaz de participar no grande Reino que existe de maneira substantiva em Deus, o Pai de tudo, e torna-se uma morada translúcida do Espírito Santo, recebendo - se isso pode ser expresso deste modo - a inteira autoridade do conhecimento da natureza divina tanto quanto isto é possível. Tanto quanto prevalece esta autoridade, a produção do que é inferior automaticamente se encerra e apenas o que é superior é gerado; pois a alma que pela Graça deste chamado se assemelha a Deus mantém inviolada em si mesma a substância das bençãos que lhe foram atribuídas. Em almas tais como estas Cristo sempre deseja ser nascido de maneira mística, tornando-se encarnado naqueles que atingem a salvação, e fazendo da alma que lhe dá nascimento uma Virgem Mãe; pois tal alma, para falar brevemente, não condicionada por categorias como macho e fêmea que tipificam a natureza sujeita à geração e corrupção.

Não se choque ao me ver falar da corrupção que é inerente à geração. Pois quando alguém examinou justamente e desapegadamente a natureza do que vem ao ser e do que cessa de ser, claramente verá que a geração começa com a corrupção e termina com a corrupção. Cristo, e de modo semelhante o caminho de Cristo de vida e entendimento, como eu disse, são livres de tais paixões características da geração. Pelo menos este é o caso se São Paulo estava falando a verdade ao dizer que em Cristo Jesus não há nem "macho nem fêmea" (Gálatas 3:28), significando por estes termos as características e paixões da natureza sujeitas à geração e à corrupção. Pois em Cristo e no Seu modo de vida há apenas um entendimento deiforme imbuído com divino conhecimento, e uma disposição singular de disposição e proposta que escolhe apenas a virtude.

Mais ainda, em Cristo não há nem Grego nem Judeu (cf. Gálatas 3: 28). Significa isto uma divergência, ou melhor, contrariedade de visões sobre Deus. Os Gregos afirmam uma série de princípios dominantes e divide o princípio único fundamental em operações opostas e poderes, elaborando uma veneração politeísta cheia de contradições por causa da multidão de objetos venerados e ridícula por causa de seus muitos modos de veneração. Os judeus afirmam o princípio fundamental o qual, a despeito de ser único, é estreito, imperfeito e quase inexistente, já que ele é desprovido de consciência imanente e vida; e assim ele cai num mal tão ruim quanto aqueles em que caíram os Gregos por uma razão oposta, ou seja, a descrença no Deus verdadeiro. Pois ele limita o princípio fundamental a uma simples pessoa, que existe sem Logos e Espírito, e que meramente possui Logos e Espírito enquanto qualidades; pois ele não consegue perceber que tipo de Deus teria se privado das outras duas Pessoas, ou como ele poderia ser Deus se atribuísse a eles como acidentes por participação, tal como ocorre no caso dos seres criados. Nem Grego, nem judeu então, tem qualquer lugar completo em Cristo. NEle há apenas o princípio da verdadeira religião e a lei inabalável da teologia mística, que rejeita tanto a dilação da Divindade, como no politeísmo grego, e a contração da Divindade, como no monoteísmo judaico. Neste sentido a Divindade é plena de contradições internas, com os Gregos, por conta de sua pluralidade natural, nem é reconhecida como passível, com os Judeus, por conta de ser uma simples pessoa, desprovida de Logos e Espírito, possuindo Logos e Espírito apenas enquanto qualidades, sem ser ela mesma Inteligência, Logos e Espírito.

A teologia mística nos ensina, através da fé que foi adotada pela graça e trazida ao conhecimento da verdade, a reconhecer uma natureza e poder da Divindade, isto quer dizer, um Deus contemplado no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Isto nos ensina a conhecer Deus como um Intelecto singular não originado, auto-existente, o gerador de um Logos singular, auto-existente, não originado, e a fonte de uma vida eterna, auto-existente como o Espírito Santo: a Trindade em Unidade e a Unidade em Trindade. A Divindade não é uma coisa em outra coisa: a Trindade não está na Unidade como um acidente em uma substância ou vice-versa, pois Deus é sem qualidades.  A Divindade não é uma coisa em outra coisa: a Unidade não difere da Trindade por distinção de Natureza; a natureza é simples e singular ao mesmo tempo. Nem na Divindade há uma coisa dependente ou a priori a outra: a Trindade não é distinguida da Unidade, ou a Unidade da Trindade, por inferioridade de poder; nem é a Unidade distinguida da Trindade como alguma coisa comum e geral abstraída em uma maneira puramente conceitual dos particulares em que ela ocorre: ela é substantivamente uma essência auto-subsistente  e um poder verdadeiramente auto-consolidante. Nem na Divindade uma coisa vem a ser por outra: não há nela tal relação mediadora quanto aquela de causa e efeito, já que ela está unida e livre de relações. Nem na divindade é uma coisa derivada de outra: a Trindade não deriva da Unidade, já que ela é não gerada e auto-manifestada. Pelo contrário, a Unidade e a Trindade são tanto afirmadas e concebidas como verdadeiramente una e a mesma, a primeira denotando o princípio da essência e a segunda o modo da existência. O todo é a Unidade singular, não dividida pelas Pessoas; e o todo é também uma Trindade singular, cujas Pessoas não são confundidas pela Unidade. Assim politeísmo não é introduzido pela divisão da Unidade ou a descrença no Deus verdadeiro pela confusão das Pessoas.

Quando a doutrina Cristã rejeitou estes erros ela alcançou um genuíno esplendor. Por doutrina Cristã eu quero dizer os ensinamentos do Cristo, a nova proclamação da verdade em que não há nem macho nem fêmea, isto é, os sinais e paixões da natureza humana quando sujeitos a nascimento e decadência; nem Grego nem Judeu, isto é, visões contrárias da Divindade; nem circunciso ou incircunciso (cf. Col. 3:11), isto é, diferentes tipo de veneração apropriadas a diferentes visões, a primeira divinizando a natureza por causa das paixões e fixando a criatura contra o Criador, e a segunda por causa de seu mau uso dos símbolos da Lei difamando a criação visível e escandalizando o Criador como fonte do mal. Ambas constituem igualmente um insulto ao Divino e conduzem igualmente ao mal. Nem na doutrina cristã há o bárbaro ou cita, ou seja, a fragmentação deliberada dos seres humanos que se entregam a lei anti natural do abate mútuo; nem há escravos ou livres, isto é, a divisão fortuita desta natureza que conduz uma pessoa a desprezar outra ainda que ambas sejam por natureza iguais em dignidade, nem há àquilo que encoraje os homens a dominar outros tiranicamente, pois isto viola a imagem divina no homem. "Mas Cristo é tudo em todos" (Colossenses 3:11), moldando em espírito o reino não originado no qual mora algo além da natureza e da lei.

Este reino é caracterizado, como mostramos, pela humildade e mansidão de coração. Ele é a combinação destas duas qualidades que constituem a perfeição da pessoa criada de acordo com Cristo.  Pois toda pessoa humilde é invariavelmente mansa e toda pessoa mansa é invariavelmente humilde. Uma pessoa é humilde quando ela sabe que seu ser é um empréstimo para ela. Ela é mansa quando ela sabe como usar os poderes que lhe foram dados de um modo que concorde com a natureza, afastando completamente suas atividades dos sentidos e colocando-as a serviço da inteligência de modo a produzir virtudes. Neste sentido seu intelecto se move incessantemente para Deus e quando seus sentidos estão em atividade, nem por isso ela é perturbada por qualquer coisa que aflija o corpo, nem ela carimba sua alma com qualquer traço de angústia, que destrói seu estado de alegria criativa. Pois ela não reconhece o que é doloroso aos sentidos como desprovido de prazer: ela conhece um único prazer, o casamento da alma com o Logos. Ser desprovido deste casamento é o tormento final, estendido à natureza por todas as eras. Assim quando ela deixou o corpo e tudo quanto lhe pertence, ela está impelida à união com o divino; pois mesmo que ela fosse mestra do mundo inteiro, ela reconheceria apenas um único desastre real: falhar na obtenção pela graça da deificação pela qual ela espera.

"Purifiquemo-nos de toda poluição da carne e  do espírito" (2. Coríntios 7:1), de modo que quando extinguimos nosso desejo sensual, que é indecentemente lascivo e unido às paixões, nós poderemos santificar o nome divino. E com nossa inteligência liguemos nosso medo perturbado e frenético pelo prazer sensual, de modo que possamos receber o Reino de Deus Pai, que nos vem com mansidão.

Ao finalizar isto, nós podemos ir para a próxima fase da oração dizendo: "Assim na terra como no céu" (Mateus 6:10). Aquele que venera Deus misticamente apenas com a faculdade da inteligência, mantendo-a livre dos desejos sensuais e do medo, cumpre a vontade divina na terra como as ordens dos anjos a cumprem no céu. Ele tornou-se em todas as coisas um co-venerador e um cidadão do céu com os anjos, conforme a afirmação de São Paulo, "nossa cidadania está no céu" (Filipenses 3:20). Entre os anjos o desejo não enfraquece a intensidade do intelecto através de prazeres sensuais, nem a raiva os faz delirar e atacar indecentemente seus companheiros, criaturas como ele: há apenas a inteligência naturalmente conduzindo seres inteligentes para a fonte da inteligência, o Próprio Logos. Deus se regozija apenas em inteligência e é isto o que Ele exige de nós, Seus servos. Ele revela isto quando diz a Davi: "O que tenho no Céu e desejo na terra além de ti?" (Salmo 73: 25). Nada é oferecido a Deus nos céus pelos anjos exceto a veneração inteligente; e é isto que Deus também pede de nós quando Ele nos ensina a dizer em nossas orações, "Seja feita a Vossa Vontade assim na terra como no céu" (Mateus 6:10).

Então nossa inteligência será movida a procurar Deus, nosso desejo será desperto em saudade DEle, e nosso poder apetitivo lutará para manter a guarda de nosso amor a Ele. Ou, mais precisamente, todo nosso intelecto estará direcionado para Deus, tensionado por nosso poder apetitivo como por algum nervo, incendiado com saudade pelo desejo mais ardente de todos. Pois se nós imitamos os anjos celestiais deste modo, nós nos encontraremos sempre venerando a Deus, agindo na terra como os anjos no céu. Pois como os anjos, nosso intelecto não será atraído por qualquer coisa menos que Deus.

Se nós vivermos o caminho que nós prometemos, nós receberemos como pão cotidiano que tonifica nutrindo  nossa alma e ajudando na manutenção do bom estado no qual fomos abençoados o Próprio Logo; pois isto foi o que Ele disse, "Eu sou o Pão descido do céu e que dá vida ao mundo" (João 6: 33-35). Em proporção à nossa capacidade, o Logos se tornará tudo para nós que somos nutridos através da virtude e da sabedoria; e de acordo com Seu próprio julgamento Ele será incorporado diferentemente em cada recipiente de salvação enquanto vivemos ainda nesta era. Isto é indicado na frase da oração que diz, "O pão nosso cotidiano dai-nos hoje" (Mateus 6:11).

Eu acredito que a expressão "cotidiano" se refere à era presente. É como se disséssemos, depois de um entendimento mais claro do contexto da oração, "Já que estamos nesta vida presente mortal, dai-nos hoje nosso pão cotidiano que Vós preparaste originalmente para a natureza humana e que pode nos tonar imortais" (cf. Gênesis 2:9); pois neste sentido a comida do pão da vida e o conhecimento triunfarão sobre a morte que veio pelo pecado. A transgressão do mandamento divino impediu o primeiro homem de partilhar deste pão (cf. Gênesis 3:19). De fato, se ele tivesse tomado dessa comida divina, ele não teria estado sujeito à morte pelo pecado.

Aquele que ora para receber este pão cotidiano, porém, não o recebe todo automaticamente como é em si mesmo: ele o recebe de acordo com sua capacidade receptiva. Pois o Pão da Vida em seu amor se dá a todos os que o pedem, mas ele não se dá da mesma forma. Ele dá liberalmente para aqueles que fizeram grandes coisas, e mais modestamente para aqueles que obtiveram menos. Assim Ele concede a cada pessoa de acordo com a capacidade receptiva do intelecto dele ou dela.

O Próprio Salvador conduziu-me a esta interpretação da frase que estamos considerando, porque Ele ordena Seus discípulos explicitamente a não tomar qualquer pensamento sobre alimento sensível, quando diz, "Não vos preocupeis com vossa vida, o que comereis, ou o que bebereis, ou sobre o vosso corpo, o que vestireis. Pois são os pagãos que procuram estas coisas. Mas buscai primeiro o Reino de Deus e a Sua justiça, e todas estas coisas lhe serão dadas em acréscimo" (Mateus 6:25, 32, 33). Como então poderia Ele nos ensinar a orar por aquilo que Ele nos proíbe de procurar? Obviamente Ele não nos ordena a fazer qualquer coisa deste tipo: nós deveríamos pedir na oração apenas por coisas que estamos obrigados a procurar. Se nosso Salvador nos ordenou a procurar apenas o Reino de Deus e sua justiça, então seguramente Ele pretendia àqueles que desejam dons divinos para pedir este Reino em suas orações. Neste sentido, ao mostrar quais petições são abençoadas por Sua Graça, Ele une as intenções daqueles que pedem de acordo com a Vontade Daquele que dá a graça.

Se, porém, nós também aproveitarmos esta cláusula para significar que devamos rezar pelo pão diário que sustenta nossa vida presente, sejamos cuidadosos para não ultrapassar os limites da oração, assumindo presunçosamente que viveremos muitos ciclos de vida e nos esquecendo de que somos mortais e que nossa vida passa tal como sombra; mas libertos da angústia oremos pelo pão suficiente para um dia, mostrando assim que como filósofos cristãos nós fazemos da vida uma preparação para a morte. Nosso propósito é antecipar a natureza, para que mesmo antes da morte chegar, extirpemos da alma a ansiedade acerca das coisas corpóreas. Neste sentido a alma não transferirá seu apetite natural às coisas materiais, apegando-se ao que é corruptível, e não aprenderá a ganância que nos priva de uma rica possessão de bençãos divinas.

Assim, evitaremos o amor à matéria e nosso apego à matéria com todas as forças que tivermos, como se lavássemos poeira dos olhos; e estaremos satisfeitos simplesmente com o que sustenta nossa vida presente, não com o que a deleita. Oremos a Deus para isto, como ensináramos, de modo que possamos manter nossas almas privadas de escravidão e absolutamente livres do domínio de qualquer coisa visível amada devido ao cuidado que traz ao corpo. Mostraremos que comemos para a manutenção da vida, e não nos façamos culpados da vida por conta de comida. O primeiro caso é um sinal de inteligência e o segundo uma prova cabal de sua ausência. Sejamos exatos no modo em que observamos esta oração, mostrando assim por nossas ações que nós nos apegamos a um modo de vida solitário, e que usamos nossa vida presente para adquirir vida espiritual. Nós a usamos apenas na medida em que não recusamos a sustentar nosso corpo com pão e o mantemos na medida do possível em seu estado natural de boa saúde, nosso objetivo não sendo simplesmente viver, mas viver para Deus. Ao tornarmos nosso corpo inteligente e repleto de virtudes fazemos dele um mensageiro da alma, e a alma, uma vez que ela está firmemente estabelecida no bem, um arauto de Deus; e no plano natural nós restringimos nossa oração por este pão para apenas o dia de hoje, não ousando estender nossa petição para um segundo dia por causa DEle que nos deu a oração. Quando nós nos conformarmos assim ao sentido da oração, nós podemos proceder em pureza à próxima petição, dizendo, "Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores" (Mateus 6:12).

De acordo com a primeira interpretação proposta pela seção precedente da oração, a palavra "cotidiano" simboliza a era presente; e a pessoa que ora nesta era pelo pão incorruptível da sabedoria, o qual extirpamos pela transgressão original, se deleita em uma única coisa: atingir as bençãos divinas. É Deus que por natureza concede estas bençãos, mas é da livre vontade de quem as recebe salvaguardá-las. De modo similar, uma pessoa conhece apenas um pão: o fracasso para alcançar estas bençãos. É o mal que ocasiona esta falha, mas é a própria pessoa que o faz na atualidade, por causa de sua fraqueza de vontade com relação ao divino, e porque ele não se agarra ao precioso bem pelo qual ele ora. Mas se alguém não está interessado com alguma coisa no mundo visível, e consequentemente não é superado por qualquer aflição corporal, então tal pessoa verdadeiramente e desapaixonadamente perdoa aqueles que pecam contra ele; pois ninguém pode roubar-lhe o bem pelo qual aspira e que por natureza é inatacável.

Uma pessoa deste tipo faz-se a si mesmo padrão de virtude para Deus, se isto pode ser posto neste sentido; pois ao dizer "Perdoai nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores", ele exorta a Deus, que está além da imitação, a vir e imitá-lo; e ele implora a Deus a tratá-lo como ele mesmo trata seus próximos. Pois ele deseja ser perdoado por Deus como ele mesmo perdoou os débitos daqueles que pecaram contra ele; aqui, assim como apenas Deus desapaixonadamente perdoa Suas Criaturas, assim também tal pessoa deve ela mesma permanecer desapaixonada em face do que lhe acontece e perdoar aqueles que lhe ofendem. Ele não deve permitir a memória de coisas que o aflijam ser estampada em seu intelecto para que não acabe interiormente rompendo a natureza humana por separar-se de algum outro homem, ainda que ele seja um homem. Quando a vontade de um homem está em união com o princípio de natureza neste sentido, Deus e natureza são naturalmente reconciliados: mas, falhando-se tal união, nossa natureza permanece auto-dividia em sua vontade e não pode receber os dons do Próprio Deus.

Isto seguramente é porque Deus deseja-nos primeiro que sejamos reconciliados uns com os outros. Ele próprio não tem necessidade de aprender de nós como ser reconciliado com pecadores e renunciar a pena por uma infinidade de crimes atrozes; mas Ele deseja nos purificar de nossas paixões e nos mostrar que a medida da Graça conferida àqueles que são perdoados corresponde ao seu estado interior. É evidente que quando a vontade de um homem está em união com o princípio de natureza, não há estado de rebelião contra Deus. Já que o princípio de natureza é uma lei tanto natural quanto divina, e não há nada contrário ao Logos, quando a vontade de um homem funciona de acordo com este princípio, ela concorda com Deus em todas as coisas. Tal condição de vontade é um estado interno ativamente caracterizado pela graça do que é bom por natureza e por isso produtor de virtude.

Este, então, é o estado interior do homem que ora pelo pão gnóstico. Depois dele vem o homem que, constrangido pela natureza, procura o pão ordinário, mas suficiente para apenas uma jornada. Ele atingirá o mesmo estado interior que o primeiro quando ele tiver perdoado os débitos de seus devedores, já que ele sabe que ele é por natureza mortal. Mais ainda, por aceitar a incerteza do futuro e esperar cada dia pelo que é provido pela natureza, ele antecipa a natureza, escolhendo tornar-se morto para o mundo e obedecer ao texto, "Por amor a Ti somos mortos todo dia; somos como ovelhas destinadas ao matadouro". (Salmo 44:22 ; Romanos 8:36). Ele estabelece esta paz com todos de modo a ser liberto de todas as depravações da era presente quando ele sair para a vida eterna, e receber do Juiz e Salvador do universo uma justa recompensa pelo que ele fez nesta vida. Estes dois tipos de homens, logo, necessitam expor uma pura disposição para com aqueles que os ofenderam. Isto é verdade em geral; mas tem uma referência particular para as palavras que concluem a oração: "E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal" (Mateus 6:13).

A Escritura revela nestas palavras que aquele que não perdoou completamente aqueles que tropeçam, e não apresentou para Deus seu coração livre de queixa e iluminado com a luz da reconciliação com seu próximo, falhará em alcançar a Graça das bençãos pelas quais ora. De fato, ele será justamente entregue à tentação e ao mal, de modo que, tendo recolhido seus julgamentos dos demais, ele possa aprender a se purificar de seus próprios pecados. A Escritura aqui significa por tentação a lei do pecado, do qual o primeiro homem estava liberto quando criado. E por "mal" significa aqui o diabo, que tem misturado esta lei do pecado com a natureza humana, persuadindo enganosamente o homem a transferir o desejo de sua alma do que é permitido para o que é proibido, desviando-a para a transgressão do divino mandamento. O resultado disso é a perda da incorruptibilidade que foi dada pela Graça.

Alternativamente, por tentação a Escritura quer dizer a predileção da alma pelas paixões da carne; e por "mal" o caminho atual em que esta tendência apaixonada é satisfeita. O Justo Juiz não liberta um homem da tentação e do mal se ele não perdoou os débitos de seus devedores. Enquanto ele reza meramente em palavras pela libertação, Deus lhe permite ser contaminado pela lei do pecado; e enquanto sua vontade é crua e teimosa, Ele o abandona ao domínio do mal; pois ele os abandonou às paixões infames (cf. Romanos 1:26), das quais o mal é o semeador, em preferência à natureza, da qual Deus é criador. Deus deixa-o livre para inclinar, se ele assim o deseja, para as paixões da carne e atualmente para satisfazer aquela inclinação. Valorizando paixões não substanciais mais sumamente do que a natureza, em seu interesse por estas paixões ele se torna ignorante dos princípios da natureza. Tivesse ele seguido aquele princípio, ele teria conhecido o que constitui a lei da natureza e o que a tirania das paixões - uma tirania causada não pela natureza, mas por escolha deliberada. Então ele teria aceitado a lei de natureza que é mantida por meio de atividades que são naturais; e ele teria expelido a tirania das paixões completamente de sua vontade. Ele teria obedecido a natureza com sua inteligência, pois a natureza em si mesma é pura e imaculada, irrepreensível, livre de ódio e de alienação, e ele teria feito de sua vontade uma vez mais uma companheira da natureza, totalmente desligada de tudo que não foi concedido pelo princípio de natureza. Neste sentido ele teria erradicado todo o ódio e toda a alienação a quem é por natureza semelhante a ele, e dizendo esta oração ele seria ouvido e receberia de Deus não uma simples Graça, mas uma dupla: perdão pelas ofensas já cometidas e proteção e libertação daquelas que estão no futuro. Pois ele não poderia entrar em tentação e cair no poder do mal por uma simples razão: sua prontidão em perdoar os pecados de seus próximos.

Assim, para retornar um pouco e comentar brevemente o que foi dito, se nós realmente desejamos ser libertos do mal e não entrarmos em tentação, nós devemos confiar em Deus e perdoar as dívidas de nossos devedores. "Pois se não perdoares os pecados das pessoas", diz a Escritura, "Vosso Pai celestial não perdoará os vossos" (mateus 6:15). Nós devemos fazer isto não apenas para receber perdão pelas ofensas que cometemos, mas também para derrotar a lei do pecado - porque então não poderíamos ser submetidos à experiência da tentação - e pisar no originador da lei do pecado, a serpente a quem rogamos a Deus que nos livre. Pois Cristo, que venceu este mundo (cf. João 16:33) é nosso líder. Ele nos arma com as leis dos mandamentos, e por nos capacitar a rejeitar as paixões, Ele nos une ao puro amor com a própria natureza. Sendo o pão da vida, da sabedoria, do conhecimento espiritual e da justiça, Ele desperta em nós um desejo insaciável por Ele. Se nós cumprirmos a vontade de Seu Pai, Ele nos faz co-adoradores com os anjos, e em nossa conduta nós os imitaremos como se estivéssemos no estado celestial. Então Ele nos conduzirá ainda mais além na suprema ascensão da verdade divina até o Pai das Luzes, e nos fará compartilhar da divina natureza (Cf. 2 Pedro 1;4) pela participação pela Graça no Espírito Santo. Em virtude desta participação nós somos chamados crianças de Deus e limpos de toda mancha, somos cercados por ele que é o autor desta graça e por natureza Filho do Pai, muito além da circuncisão. "A partir DEle, por meio DEle e  NEle nós temos e sempre teremos nosso ser, nosso mover e nosso viver" (cf. Atos 17:28).

Quando nós rezarmos, que nosso objetivo seja este mistério de deificação, que nos mostra o que éramos e, com o auto-esvaziamento do filho unigênito pela carne, Cristo nos faz agora; que nos mostra as profundezas para as quais nós fomos arrastados pelo peso dos pecados, e as alturas para as quais nós  somos arrebatados por Sua mão compassiva. Neste sentido nós viremos a ter maior amor por Ele que preparou esta salvação para nós com tal sabedoria. A oração consegue assim o seu cumprimento na prática, e nós proclamaremos manifestamente Deus como o nosso verdadeiro Pai pela graça. Nós mostraremos que o único mal, que é sempre tiranicamente a tentativa de obter controle sobre nossa natureza através de paixões vergonhosas, não é o pai de nossa vida, e que nós não queremos trocar a vida pela morte. Pois tanto Deus quanto o mal naturalmente transmitem suas qualidades para aqueles que deles se aproximam: Deus concede vida eterna para aqueles que O amam, enquanto o demônio, operando por meio de tentações que são sujeitas à nossa volição, causa a morte de seus seguidores.

Pois de acordo com as Escrituras há dois tipos de tentação, uma agradável e outra dolorosa. Uma é o resultado da escolha deliberada e a outra não é procurada. O primeiro tipo gera pecado. Nós fomos ordenados pelos ensinamentos do Senhor a rezar para que não caiamos nela, pois Ele diz, "E não nos deixeis cair em tentação" (Mateus 6:13) e "Vigiai e orai para não cairdes em tentação" (Mateus 26:41). O outro tipo de tentação pune pecado, castiga a disposição amante do pecado com sofrimentos que não foram procurados. Para a pessoa que permanece nesse tipo de tentação - que vem na forma de um julgamento - e que em particular não está atada ao mal, as palavras do apóstolo Tiago podem ser aplicadas: "Meus irmãos,  olhai com grande gozo quando vos encontrardes em várias tentações; porque o teste de vossa fé produzirá paciência; esta paciência moldará o caráter; e o caráter assim moldado conduzirá a bom termo" (Cf. Tiago 1: 2-4; Romanos 5:4). O único mal opera com sua malícia ao mesmo tempo através da tentação que é sujeita à nossa volição e daquela que não buscamos. Quando a primeira está em causa, por buscar a alma prazeres corporais e por se excitar nesta maneira, ele planeja divertir seu desejo e assim desviá-lo do amor divino. Quando a tentação não buscada está em causa, em seu desejo de destruir a natureza humana através da dor, ele astuciosamente tenta forçar a alma, enervada pelos sofrimentos, a caluniar e abusar do Criador.

Mas conhecendo os ardis do único mal, rezemos para nos livrar das tentações sujeitas à nossa volição, para que assim não desviemos nosso desejo do amor divino; e soframos bravamente as tentações que nos chegam sem que as busquemos, já que elas nos visitam com o consentimento de Deus e ao suportá-las nós mostramos que nós não colocamos a natureza antes do Criador da natureza. Possamos todos invocar o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo para sermos libertos dos deleites presentes e das aflições futuras do mal e assim participarmos na realidade de bençãos realizadas e já reveladas a nós em Cristo nosso Próprio Senhor, que junto ao Pai e ao Espírito Santo é louvado por toda a criação. Amém.