Cristo Pantocrator

domingo, 6 de dezembro de 2015

Segunda Centúria

Continuação do post anterior...
São Máximo, o Confessor




Segunda centúria:
1) Cristo mencionou o cálice antes do batismo (cf. Mateus 20:22) porque a virtude existe por causa da verdade e não a verdade por causa da virtude. Assim, aquele que pratica a virtude por causa da verdade não é ferido pelas setas da autoestima; mas aquele que persegue a verdade por causa das virtudes abriga em si presunção que gera autoestima.

2) Verdade é conhecimento divino, e virtude é luta pela verdade da parte daqueles que a desejam. Um homem que suporta os labores da virtude por causa do conhecimento não tem vã glória, porque ele sabe que a verdade não pode ser apreendida naturalmente através de esforços humanos. Pois não está na natureza das coisas que o que é primordial seja circunscrito pelo que é secundário. No entanto, um homem que espera alcançar o conhecimento por meio da luta que ele trava por causa da virtude invariavelmente sofre de autoestima, porque imagina que ele ganhou a vitória antes de ter suado por ela. Ele não sabe que  ascese existe por causa da coroa, mas a coroa não existe por causa da ascese. Pois por natureza todo método espiritual cessa para ser praticado uma vez que a proposta  ou conhecimento pelos quais ele foi pretendido foram alcançados.

3) Aquele que procura apenas uma forma de conhecimento exterior, isto é, o conhecimento que é meramente teorético, e persegue a semelhança da virtude, ou seja, uma moralidade meramente teórica, se ensoberbece, tem uma sabedoria judaica, com apenas a imagem da verdade.

4) Aquele que não compreendeu a Lei apenas pelos sentidos, ou seja, exteriormente, mas noeticamente penetra todo o símbolo visível e minuciosamente assimila o princípio divino que está oculto em cada parte dEla, encontra Deus na Lei. Pois ele corretamente usa seu intelecto para tatear entre as formas materiais da Lei na esperança de encontrar em algum lugar em seu corpo a pérola ou princípio que escapa completamente aos sentidos (cf. Mateus 13: 45-46).

5) Novamente, aquele que não limita a sua percepção à natureza das coisas visíveis àquilo que os seus sentidos apenas podem observar, mas procura sabiamente com seu intelecto a essência que jaz em toda a criatura, também encontra Deus; pois da magnificência manifesta dos entes criados, ele aprende quem é a Causa de seu ser.

6) Discriminação é a característica distintiva daquele que investiga. Ele que examina os símbolos da Lei de um modo espiritual, e que contempla a natureza visível dos seres criados com inteligência, discriminará na Escritura entre a letra e o espírito, na criação entre as essências internas e a aparência externa, e nele mesmo entre o intelecto e os sentidos; na Escritura ele escolherá o Espírito, na criação a essência interna ou Logos, e nele mesmo o Intelecto. Se então ele une estes indissolúveis uns aos outros, ele terá encontrado Deus: ele reconhecerá, na medida do possível, o Deus que é Intelecto, Logos e Espírito. Neste sentido, ele será libertado de todas as coisas que enganam os homens e os seduzem a inumeráveis erros - libertar-se-á da letra, a aparência externa das coisas, e dos sentidos, de tudo aquilo que apresenta distinções quantitativas e negam a unidade. Mas se um homem vive à Lei pela letra, se guia pela aparência externa das coisas sensíveis, e para tudo se serve apenas de seus sentidos, ele é 'tão míope quanto cego' (2 Pedro 1:9), doente de sua própria ignorância da Causa dos seres criados.

7) O apóstolo nos dá a seguinte definição de fé: 'A Fé é o fundamento das coisas que esperamos e dá provas do que não se vê' (Hebreus 11:1). Pode-se também justamente defini-la como uma benção enraizada ou um verdadeiro conhecimento que revela bençãos inexprimíveis.

8) Fé é um poder ou relação que traz união imediata, perfeita e sobrenatural do crente com Deus em quem ele crê.

9) Já que o homem é composto de corpo e alma, ele é movido por duas leis, aquela da carne e a do Espírito (cf. Romanos 7:23). As leis da carne operam em virtude dos sentidos; as leis do Espírito operam em virtude do intelecto. A primeira lei, que opera em virtude dos sentidos, automaticamente cega aquele que aproxima-se à matéria; a segunda lei, operando em virtude do intelecto, traz união direta com Deus. Supondo que há alguém em seu coração (cf. Marcos 11: 23) - que é um desapegado, ou melhor, um deificado através de sua união com Deus pela fé: então é quase natural que tal pessoa diga à montanha, "Vá a outro lugar" e ela irá (cf. Mateus 17:20). A montanha indica aqui a vontade e a lei da carne, que é pesada e difícil de deslocar, e de fato, tão longe quanto compete aos nossos poderes naturais, ela é totalmente imóvel e inabalável.

10) A capacidade para a estupidez está tão enraizada na natureza humana por meio dos sentidos, que a maioria realmente pensa que o homem não é nada além de carne, que apenas possui faculdades sensíveis as quais ele pode gozar nesta vida presente.

11) "Tudo é possível aquele que crê", dizem as Escrituras (Marcos 9:23) e sem dúvida - isto quer dizer para a pessoa que não está dominada pelo vínculo da alma com o corpo através dos sentidos, e não se separa de sua união com Deus cuja fé O traz por meio do intelecto. O que quer que aliene o intelecto do mundo e da carne, é perfeito para o avanço espiritual, para nos aproximarmos de Deus. Isto é o que deve ser entendido e implicado ao se dizer, 'Tudo é possível aquele que crê'.

12) Fé é um conhecimento que não pode ser racionalmente demonstrado. Se tal conhecimento não pode ser racionalmente demonstrado, então a fé é uma relação sobrenatural através da qual, de uma maneira incognoscível e indemonstrável, estamos unidos a Deus em uma união que está além da intelecção.

13) Quando o intelecto está em união direta a Deus, a qualidade em virtude da qual ele apreende ou é apreendido está completamente inativa. Na medida em que ele ativa esta qualidade por apreender alguma coisa que segue a Deus, ele sente dúvida e divide a união além da intelecção. Contanto que o intelecto goze desta união com Deus, ele irá além da natureza e tornar-se-á Deus por participação, e terá transportado a lei de sua natureza como se transportasse uma montanha imóvel.

14) Aquele que começou a seguir um caminho santo de vida, e recebeu instrução sobre como agir corretamente, devota-se totalmente à prática das virtudes em obediência e fé, nutrindo a si mesmo, como se na carne, ou seja, em seu aspecto manifesto, o treinamento moral. Os princípios internos dos mandamentos que constituem o conhecimento perfeito dependem da fé abandonada a Deus, mas não conseguem abraçar a magnitude da fé.

15) O homem perfeito, que passou para além da categoria dos iniciantes e também dos que estão avançando, não é ignorante dos princípios internos das ações que ele realiza ao cumprir os mandamentos. Pelo contrário, ele bebe primeiro espiritualmente daqueles princípios e então por meio de suas ações alimenta todo o corpo de virtudes. Neste sentido, ele transpõe para o plano do conhecimento espiritual as ações que ele realizou no plano sensível.

16) O senhor disse: 'Buscai primeiro o Reino de Deus e a Sua justiça' (Mateus 6:33), isto é, procure o conhecimento da verdade antes de todas as coisas, e consequentemente procure treinar-se nos métodos apropriados de atingi-la. Ao dizer isto, ele mostrou claramente que os crentes devem apenas procurar o conhecimento divino e a virtude que o adorna com ações correspondentes.

17) Muitas são as coisas que o crente tem necessidade para obter o conhecimento de Deus e a virtude: livrar-se das paixões, paciência para aceitar as provações, os princípios internos das virtudes, a prática do método da guerra espiritual, desenraizamento da alma de suas predileções da carne, a quebra da união entre os sentidos e os objetos criados; e, em suma, há incontáveis outras coisas que nos ajudam a rejeitar o pecado e a ignorância e a obter o conhecimento e a virtude. Foi certamente por causa disso que o Senhor disse, "O que quer que peçais na oração, com fé, recebereis" (Mateus 21:22) estabelecendo simplesmente que o devoto deve procurar e pedir com entendimento e fé por todas as coisas, e por estas apenas, que conduzem à virtude e ao conhecimento de Deus. Pois todas estas coisas são proveitosas e inquestionavelmente o Senhor dá aqueles que o pedem.



18) Assim, aquele que apenas por causa da fé - isto quer dizer, por causa da união direta com Deus - procura todas as coisas que contribuem para esta união inquestionavelmente as receberá. Aquele que procura ou as coisas que mencionamos ou outras coisas sem este motivo não os receberá. Pois não tem fé, e como um descrente usa as coisas divinas para impulsionar a própria glória.

19) Aquele que expurga sua vontade da corrupção do pecado destrói a atividade corruptora que causa a corrupção. Pois quando o livre arbítrio está livre da corrupção, ele previne a natureza de ser corrompida por forças hostis e a mantém incorrupta através da graça providencial do Espírito nela.

20) Já que os princípios da natureza e da graça não são um único e o mesmo, não deveríamos nos surpreender se certos santos algumas vezes resistem às paixões e algumas vezes sucumbem a elas; pois nós sabemos que o milagre da resistência é devido à Graça, enquanto as paixões pertencem à Natureza.

21) Aquele que mantém em sua mente o caminho dos santos ao imitá-los, não apenas chacoalha a paralisia mortal das paixões como recupera a vida das virtudes.

22) Deus, que antes de todas as eras definiu os limites da vida de cada homem, do modo que Ele quis, conduz todo homem, se justo ou injusto, para o desfecho final que ele merece.

23) Como estabelecido, a tempestade escura que sucedeu a São Paulo (Atos 28: 1-4) é o peso das provações involuntárias e das tentações. A ilha é o estado firme e inabalável da esperança divina. O fogo é o estado do conhecimento espiritual. Os gravetos são a natureza das coisas visíveis. Paulo os sacudiu com suas mãos, que é a capacidade exploratória do intelecto durante a contemplação. Ele alimentou o estado de conhecimento espiritual com as imagens conceituais derivadas da natureza das coisas visíveis, pois o estado do conhecimento espiritual cura o abatimento produzido pela tempestade das provações e tentações. A víbora é o poder destrutivo e astuto ocultado secretamente na natureza das coisas sensíveis. Ela morde a mão, isto é, a atividade noética exploratória da contemplação, mas sem prejudicar o intelecto visionário; e isto, à luz do conhecimento espiritual, como se com fogo, ele destruísse por sua vez o poder destrutivo que nasce de uma contemplação das coisas sensíveis e que se une à atividade do intelecto. 

24) São Paulo foi um 'cheiro de vida para a vida' (2 Coríntios 2:16) porque ele inspirou a fé por seu próprio exemplo de experiência da fragrância das virtudes ao colocá-las em prática, ou porque como um pregador ele conduziu àqueles que foram convertidos pela palavra da Graça da vida dos sentidos para a vida do Espírito. 'O cheiro da morte conduz à morte' (ibid) dá um sentido de sua futura condenação para aqueles que vão da morte pela ignorância para a morte pela descrença. Ou, alternativamente, o 'cheio da vida conduz à vida' se refere àqueles que avançaram na vida da prática ascética para a prática contemplativa, e o 'cheiro da morte, conduz à morte' se refere àqueles que passaram da mortificação do que é terreno em suas naturezas (cf. Colossenses 3:5) para a abençoada mortificação das imagens e fantasias conceituais apaixonadas. 

25) A alma tem três poderes: a inteligência, o poder abrasador e o desejo. Com nossa inteligência nós dirigimos nossa busca; com nosso desejo ansiamos a bondade celestial que é o objeto de nossa busca; e com o poder abrasador nós lutamos para obter nosso objeto. Com estes poderes, aqueles que amam a Deus aderem ao poder divino da virtude e do conhecimento espiritual. Procurando com o primeiro poder, desejando com o segundo e lutando pelo terceiro, recebe-se a nutrição incorruptível, enriquecendo o intelecto com o conhecimento espiritual dos entes criados.

26) Quando o Logos de Deus tornou-se homem, Ele preencheu a natureza humana novamente com o conhecimento espiritual que havia perdido; e preparando-a novamente contra a mutabilidade, Ele a deificiou, não em sua natureza essencial, mas em sua qualidade. Ele a marcou completamente com seu próprio Espírito, e adicionou vinho à água para que desse à água a qualidade do vinho. Pois El tornou-se verdadeiramente homem pela graça e Ele fez de nós deuses. 

27) Quando Deus criou a natureza humana, ao mesmo tempo que Ele lhe concedeu livre arbítrio Ele uniu ao livre arbítrio a capacidade de executar os deveres que lhe são impostos. Por esta capacidade quero dizer o impulso implantado na natureza humana no nível tanto do ser quanto da vontade livre: no nível do ser, o homem tem o poder de alcançar as virtudes; no nível do livre arbítrio, ele pode usar este poder corretamente. 

28) Nós temos como critério natural as leis da natureza. Isto nos ensina que, antes que nós possamos adquirir a sabedoria que jaz em todas as coisas, devamos através da iniciação mística procurar pelo seu Mestre.

29) O poço de Jacob é a Escritura (cf. João 4: 5-15). A água é o conhecimento espiritual que advém com a Escritura. A profundidade do poço é o significado, que apenas pode ser obtido com grande dificuldade, dos sentidos obscuros da Escritura. O balde é o aprendizado obtido dos escritos da palavra de Deus, que o Senhor não precisava possuir por ser o próprio Logos; e assim Ele não deu aos crentes o conhecimento que vem do estudo e do aprendizado, mas garantiu àqueles que julgava dignos a água perene da sabedoria que jorra da fonte da graça espiritual e que nunca seca. Pois o balde, isto é o aprendizado, pode apenas abarcar um pequeno montante de conhecimento e deixa para trás tudo o que não pode abarcar, ainda que se esforce. Mas o conhecimento que advém pela graça, sem estudo, contém toda a sabedoria que o homem pode alcançar, jorrando de diferentes sentidos de acordo com as suas necessidades.

30) Há uma diferença grande e inexprimível entre a árvore da vida e aquela que não é a árvore da vida. Isto é óbvio simplesmente pelo fato de que uma é chamada árvore da vida enquanto a outra é chamada árvore do conhecimento do bem e mal (Genesis 2: 9). Inquestionavelmente, a árvore da vida é produtora da vida; a árvore que não é chamada de árvore da vida não é produtora da vida e obviamente produz a morte. Pois apenas a morte é oposta à vida.

31) A árvore da vida, quando entendida como simbolizando sabedoria, difere grandemente da árvore do conhecimento do bem e mal, na medida em que a última nem simboliza sabedoria nem é dita dá-lo. Sabedoria é caracterizada pelo intelecto e inteligência, o estado que se opõe à sabedoria é a falta de inteligência e a sensação.

32) Já que o homem veio a ser composto de alma noética e corpo senciente, uma interpretação pode ser que a árvore da vida é a alma intelectual, que é o trono da sabedoria. A árvore do conhecimento do bem e mal seria então o poder das sensações corpóreas, que é claramente o trono dos impulsos impensados. O homem recebeu o mandamento divino de não se envolver ativamente e experiencialmente com estes impulsos; mas ele não manteve o mandamento.

33) Ambas as árvores na Escritura simbolizam o intelecto e os sentidos. Assim o intelecto tem o poder de discriminar entre o espiritual e o sensível, entre o eterno e o transitório. Ou de preferência, como poder discriminatório da alma, o intelecto persuade a alma a abrir caminho para o primeiro e transcender o segundo. Os sentidos têm o poder de discriminar entre o prazer e a dor no corpo. Ou antes, com um poder existente num corpo dotado de alma e percepção sensorial, eles persuadem o corpo a abraçar o prazer e rejeitar a dor. 

34) Se um homem exercita apenas o discernimento sensorial entre prazer e dor no corpo, assim transgredindo o mandamento divino, ele come do fruto do bem e do mal, isto é, ele sucumbe aos impulsos impensados que pertencem aos sentidos; pois ele possui apenas o poder do corpo de discernimento, que o conduz a abraçar o prazer como uma coisa boa e a rejeitar a dor como algo ruim. Mas se ele exercita apenas aquele discernimento noético que distingue entre o eterno e o transitório, fazendo-o conservar o divino mandamento, ele come da árvore da vida, isto é, da sabedoria que pertence ao intelecto; pois assim ele exercita apenas o poder de discernimento associado à alma, que o faz unido apenas à glória do que é eterno como o que é  realmente bom, e rejeitar a corrupção do que é transitório como algo ruim. 

35) A bondade na medida em que é envolvida pelo intelecto, é uma predileção desapegada do espírito; o mal é uma união passional com os sentidos. A bondade, na medida em que está envolvida com os sentidos é uma atividade apaixonada do corpo sob o estímulo do prazer; o mal é um estado destituído de qualquer atividade. 

36) Aquele que convence sua consciência a considerar o mal que ele faz como um bem por natureza, toma a árvore da vida de um modo repreensível e rejeita sua faculdade moral; pois ele age como se o mal fosse por natureza imortal. Por consequência Deus, que implantou na consciência do homem um ódio natural ao mal, extirpa-o da árvore da vida, já que ele se tornou mal por vontade e intenção próprias. Deus age neste sentido quando um homem erra deste modo, pois o homem não pode persuadir sua própria consciência de que o que é completamente mal é bom por natureza.

37) A videira produz vinho, o vinho embriaga e a embriaguez é uma forma de êxtase maligno. Do mesmo modo a inteligência - que é o vinho - quando bem nutrida e cultivada pelas virtudes, gera o conhecimento espiritual; e tal conhecimento produz uma boa forma de êxtase que capacita o intelecto a transcender sua união com os sentidos. 

38) A prática do mal maliciosamente confunde as formas e aspectos das coisas sensíveis com nossas imagens conceituais delas. Por meio destas formas e aspectos são geradas paixões pelos aspectos externos das coisas visíveis; e nossa energia intelectual, sendo interrompida no nível que pertence à percepção sensível, não pode levar-se ao reino das realidades inteligíveis. Neste sentido o mal despoja a alma e arrasta-a para dentro do tumulto das paixões. 

39) O Logos de Deus é ao mesmo tempo tanto uma lâmpada quanto uma luz (Cf. Salmo 119: 105; Provérbio, 6: 23). Pois Ele ilumina aqueles pensamentos de fé que estão em concordância com a natureza, mas queima aqueles que são contrários à natureza; Ele dissipa a escuridão da vida sensorial para aqueles que se esforçam em direção ao cumprimento dos mandamentos para a vida que esperam, mas pune com o fogo do juízo aqueles que intencionalmente se apegam à noite escura da vida presente por conta de seu amor pela carne. 

40) É dito que aquele não se reintegrou primeiro em seu próprio ser ao rejeitar aquelas paixões que são contrários à natureza não será reintegrado com a Causa de seu ser - isto é, com Deus - para adquirir benção supranatural através da Graça. Pois aquele que verdadeiramente se une a Deus deve primeiramente separar a si mesmo mentalmente das coisas criadas.

41) A função da Lei escrita é livrar os homens das paixões; da lei natural é garantir a todos os homens direitos iguais de acordo com a justiça natural. O cumprimento da lei natural é atingir similitude a Deus, na medida em que isto é possível aos homens.

42) O intelecto tem por natureza a capacidade de receber um conhecimento espiritual de coisas corpóreas e coisas incorpóreas; mas apenas por graça recebe revelações da Santíssima Trindade. Enquanto acredita que a Trindade existe, o intelecto humano nunca pode presumir compreender o que a Trindade é em Sua essência, no sentido que é conhecido pelo Intelecto divino. A pessoa sem conhecimento espiritual é completamente ignorante do sentido em que o pecado é purificado pela virtude. 

43) Aquele que ama a falsidade é entregue para ser perturbado por ela, e assim sofrendo ele possa vir a conhecer o que ele está voluntariamente perseguindo, e pela experiência possa aprender que ele abraçou erradamente a morte ao invés da vida.

44) Deus tem conhecimento apenas do que é bom, porque Ele é em essência a natureza e o conhecimento do que é bom. Ele é ignorante do mal porque ele não tem capacidade para o mal. Apenas aquelas coisas pelas quais por natureza Ele possui a capacidade de Ser ele também possui o conhecimento essencial. 

45) O peito mencionado em Levítico (cf. Levítico 7: 30,34) indica a mais alta forma de contemplação. O ombro (cf. Levítico 7: 32, 34) significa o estado mental e a atividade concordante com a vida da prática ascética. Assim o peito e o ombro denotam respetivamente o conhecimento espiritual e a virtude. Pois o conhecimento espiritual conduz o intelecto diretamente ao próprio Deus, enquanto a virtude na vida da prática ascética separa-o de todo envolvimento em geração. No texto em questão, peito e ombro foram postos ao lado para os sacerdotes, que sozinhos possuem o Senhor como sua herança para sempre e não compartilham de coisas terrenas. 

46) Aqueles plenamente dotados pelo Espírito com o conhecimento espiritual são capazes, por meio da pregação e da instrução, de tornar o coração dos demais receptivos à verdadeira fé e devoção, retirando sua disposição e capacidade de suas preocupações com coisas corruptíveis e dirigindo-se para a atualização das bençãos supranaturais e incorruptíveis. É portanto apropriado que o peito das vítimas oferecidas em sacrifício a Deus _isto é, o coração daqueles que oferecem a si mesmos a Deus - e o ombro - isto é, sua vida de prática ascética - devam estar lado a lado na vida sacerdotal. 

47) Comparada com a justiça da era que vem, toda justiça terrena desempenha o papel de um espelho: ele contém a imagem das realidades arquetípicas, não as realidades elas mesmas como elas subsistem em sua verdadeira e universal natureza. E comparado com o conhecimento, todo conhecimento espiritual neste mundo é uma imagem indistinta: ela contém a reflexão da verdade mas não a verdade própria que foi destinada a ser revelada. (cf. I Cor. 13:12) 

48) Já que o que é divino consiste em virtude e conhecimento espiritual, o espelho desempenha os arquétipos da virtude e a imagem indistinta revela os arquétipos do conhecimento espiritual. 

49) Aquele que conformou sua vida à vontade de Deus através da prática das virtudes transpõe seu intelecto para o reino das realidades inteligíveis por meio da contemplação. Ao agir assim, ele se coloca além do alcance de tudo o que procura capturá-lo, e não é atraído através da imagem sensória para a morte que repousa nas paixões.  

50) A pessoa que com o claro olho da fé contempla a Beleza literalmente obedece o comando de deixar seu país e sua parentela e a casa de seu pai (cf. Gênesis 12: 1), e ele abandona a carne, os sentidos e as coisas sensíveis, junto com os apegos apaixonados e as inclinações. Em tempos de tentação e conflito ele age acima da Natureza, assim como Abraão preferiu Deus a Isaac. (cf. Gênesis 22: 1-14). 

51) Contanto que você não persiga a virtude ou estude a Santa Escritura por amor à Glória, como um disfarce de ganância (cf. Teesalonicenses 2:5) ou por amor à adulação e popularidade, ou por auto exibicionismo, mas faça, pense e diga coisas por amor a Deus, então você está caminhando com conhecimento espiritual e no sentido da verdade. Se, porém, você tiver preparado o caminho do Senhor, e não tiver seguido seus retos caminhos, Ele não habitará em você. (Isaías 40:3. LXX; Marcos 1:3).

52)  Se você jejua e rejeita um modo de vida que excita as paixões, e em geral faça qualquer coisa que o liberte do mal, então você 'preparou o caminho do Senhor'. Mas se você faz coisas por autoestima, ou ganância, ou por amor da adulação, ou por algum motivo similar, e não com um desejo de realizar a Vontade de Deus, então você não trilhou seus retos caminhos. Você realizou o labor de preparar o caminho, mas não deixou que Deus os trilhasse.

53) "Todo vale será preenchido" - e não "todo" sem qualificação, ou o "vale de todos", pois o texto não se refere ao vale daqueles que não prepararam o caminho do Senhor e trilharam seus retos caminhos. Por vale entende-se a carne ou alma daqueles que prepararam o caminho do Senhor e seguiram Seus retos caminhos do modo como eu expliquei. Quando tal vale foi preenchido com conhecimento espiritual e virtude pelo Logos Divino que, presente nos Seus Mandamentos, caminha em suas veredas, então todos os espíritos de conhecimento falso e mau serão humilhados; pois o Logos os lança ao inferno e os sujeita. Ele subverte este poder astuto que se levanta contra a natureza humana; Ele a eleva para as mais altas montanhas e colinas que ele usa para preencher estes vales. Pois a rejeição das paixões que são contrárias à natureza, e a recepção das virtudes que estão de acordo com a natureza, enchem o vale, ou seja a alma e humilha o senhorio dos espíritos malignos. (Isaías 40:4 LXX).

54) Os "lugares ásperos" - isto é, os ataques de armadilhas e tentações sofridos contra a nossa vontade - devem ser amolecidos, acima de tudo quando o nous, alegrando-se e rejubilando-se na fraqueza, aflição e calamidade, através de sofrimentos não procurados, priva de todo o seu senhorio as paixões que deliberadamente indultamos. Pois por "lugares ásperos" a Escritura quer dizer aquelas experiências de armadilhas não procuradas e tentações que se tornam lugares suaves quando suportadas com paciência e gratidão. (Cf. Isaías 40:4. LXX).

55) Aquele que anseia pela vida verdadeira sabe que todo sofrimento, se procurado ou não, traz morte aos prazeres sensuais, a fonte da morte; e assim ele alegremente aceita os severos ataques das armadilhas e tentações sofridos contra a sua vontade. Por suportá-los pacientemente, ele torna as aflições suaves e sem entraves, conduzindo inerrante quem devotamente persegue a trilha divina para o "preço do mais alto chamado" (Filipenses 3:14). Pois o prazer sensual é a mãe da morte e a morte de tal prazer é sofrimento, se livremente escolhido ou não.

56) Todo aquele que, então, através do autodomínio elimina o prazer sensual, que é intrincado, retorcido e entrelaçado em muitos aspectos com todo objeto sensível, endireita o torto. E aquele que com paciência suporta e derrota os duros ataques implacáveis do sofrimento, torna os caminhos áridos, suaves. Assim, quando uma pessoa lutou bem e verdadeiramente derrotou o prazer sensual com desejo por virtude, superou a dor com amor pelo conhecimento espiritual, e através de virtude e conhecimento preservou bravamente até o fim da divina guerra, ele verá, de acordo com a Escritura, 'A Salvação de Deus'; e esta será sua recompensa por virtude e pelos esforços que fizeram para obtê-la. (Isaías 40: 4-5). 

57) O amor pela virtude de bom grado apaga o fogo dos prazeres sensuais. E se um homem dedicou seu nous ao conhecimento da verdade, ele não permitirá que os sofrimentos inevitáveis impeçam a aspiração incessante que o conduz a Deus. 

58) Quando através do autocontrole você endireitou os caminhos tortuosos das paixões em que você deliberadamente indultou-se _ isto é, os impulsos dos prazeres sensuais _ e quando, por suportar pacientemente as aflições duras e dolorosas produzidas pelas armadilhas e tentações sofridas contra a sua vontade, você amaciou os caminhos áridos, então você poderá esperar ver a salvação de Deus, pois você se tornará puro de coração. Neste estado de pureza, através das virtudes e da santa contemplação, você conquistará a visão de Deus, de acordo com as palavras de Cristo: 'Bem aventurados os puros de coração, porque verão a Deus' (Mateus 5:8). E por causa dos sofrimentos suportados por amor à virtude você receberá o prêmio do desapego. Nada revela Deus mais plenamente do que a posse deste dom.

59) Na Escritura os corações capazes de receber os dons celestiais do santo conhecimento são chamados de cisternas (cf. 2 Crônicas 26:10). Eles têm sido lavrados pelos firmes princípios dos mandamentos; eles foram limpos da terra, da autoindulgência nas paixões e do apego natural às coisas sensíveis; e eles foram preenchidos com o conhecimento espiritual que purga as paixões e dá vida e sustentação às virtudes. 

60) O Senhor escava os corações daqueles que são dignos, limpa-os de seu sórdido material e arrogância, e torna-os profundos e largos de modo a receber a chuva divina de sabedoria e conhecimento. Ele faz isso para que possa banhar os rebanhos de Cristo, aqueles que necessitam de instruções morais por causa da imaturidade de suas almas.

61) A Escritura se refere à mais alta forma de contemplação espiritual da natureza como 'a terra do monte' (Deuteronômio 11:11). Seus cultivadores são aqueles que rejeitaram as imagens derivadas dos objetos sensíveis, e avançaram para a percepção das essências noéticas destes objetos através da aquisição das virtudes. 

62) Contanto que o intelecto lembre-se continuamente de Deus, ele buscará o Senhor através da contemplação, não superficialmente mas no temor do Senhor, isto é, pela prática dos mandamentos. Pois aquele que o procura através da contemplação sem cumprir com os mandamentos não O encontrou: ele não O buscou no temor do Senhor e assim o Senhor não o guiou para o sucesso. O Senhor guia para o sucesso todos que combinam a prática das virtudes com o conhecimento espiritual: Ele os ensina as qualidades dos mandamentos e revela-os a essência verdadeira inerente dos entes criados.

63) O conhecimento sublime sobre Deus se estabelece na alma como uma torre, fortificada com a prática dos mandamentos. Este é o significado do texto, 'Osias constrói torres em Jerusalém' (2 Crônicas 26:9). Um homem constrói torres em Jerusalém quando ele é abençoado com sucesso em sua busca pelo Senhor através da contemplação acompanhada de medo, isto é, observando os mandamentos; pois assim ele estabelecerá os princípios do conhecimento divino no estado não dividido e tranquilo de sua alma. 

64) Quando os princípios internos das coisas particulares se combinam com aqueles dos universais, eles trazem união ao que está dividido. Isto porque o princípio mais universal é o maior e mais profundo e ele abraça e unifica os princípios mais particulares. Os princípios particulares possuem afinidade com os universais. Mas há também um certo princípio espiritual que relaciona o nous aos sentidos, o céu à terra, os sensíveis ao inteligível, a natureza ao princípio da natureza, unindo-os uns aos outros.   

65) Se você tiver sido capaz de libertar seus sentidos das paixões e tiver apartado sua alma do apego aos sentidos, você terá sido bem sucedido em impedir que o demônio entre no intelecto por meio dos sentidos. E é para este fim que você deve construir torres no deserto (cf. 2 Crônicas 26:10). Pois deserto significa a contemplação natural; por "torres seguras" um entendimento verdadeiro da natureza das cosas criadas. Se você toma refúgio nestas torres, você não temerá os demônios que assaltam este deserto _ isto é, que se insinuam na natureza das coisas visíveis, enganando o intelecto através do sentidos e arrastando-o para dentro das trevas da ignorância. Se você adquire um verdadeiro entendimento de cada coisa, você não se assustará com os demônios que enganam os homens por meio da aparência externa dos objetos sensíveis. 

66) Todo intelecto que tenha o poder para contemplar é um semeador verdadeiro: contanto que ele tenha a lembrança de Deus para sustê-lo,  ele mantém as sementes da divina bondade livres do joio através de sua própria diligência e solicitude. Pois é dito, 'E com temor do Senhor ele buscou a Deus nos dias de Zacarias' (2 Crônicas 26:5, LXX). 'Zacarias' significa 'lembrança de Deus'. Rezemos sempre para que Deus mantenha esta rememoração salvadora a qual nos mantém vivos, para que nosso nous não corrompa nossa alma, enchendo-a de orgulho e encorajando-a a aspirar presunçosamente, como Uzias, o que está acima da natureza (cf. 2 Crônicas 26:16). 

67) Apenas a alma que foi liberta das paixões pode sem erro contemplar as coisas criadas. Porque sua virtude é perfeita, e porque seu conhecimento é espiritual e livre da materialidade, que a alma pode ser chamada de "Jerusalém". Este estado é atingido através da exclusão não apenas das paixões mas também das imagens sensíveis.

68) Sem fé, esperança e amor (cf. I Coríntios 13:13) não se pode abolir totalmente algo pecaminoso, nem pode ser obtida alguma coisa plenamente boa. A fé cerca o intelecto e pressiona-o rumo a Deus e o encoraja equipando-o com todo um arsenal de armas espirituais. A esperança é o seguro penhor do nous, que oferece divina ajuda, prometendo a destruição de poderes hostis. O amor torna difícil, ou melhor, impossível, que o nous se afaste do cuidado de Deus; e quando o nous está sob ataque, o amor impele-o a concentrar todo o seu poder natural no anseio pelo divino.

69) A fé encoraja o nous o cercando e o fortalece com a esperança de assisti-lo. A esperança traz diante de seus olhos esta ajuda prometida pela fé e o desvia dos ataques inimigos. O amor mata as provocações dos inimigos no interior do nous do devoto, eliminando-as totalmente com um profundo amor pelo divino. 

70) O primeiro e único efeito dos divinos dons de um conhecimento espiritual genuíno é produzir em nós pela fé a ressurreição de Deus. A fé necessita ser acompanhada pelo correto ordenamento de nossa vontade e propósito - isto é, pelo discernimento - que nos torna possível resistir bravamente às tentações e armadilhas, procuradas ou não. Assim a fé, expressando-se corretamente através do cumprimento dos mandamentos, é a primeira ressurreição em nós de Deus o qual fora morto em nós devido à nossa ignorância.


71) O retorno a Deus claramente implica a plena afirmação de esperança nEle, pois sem isto ninguém pode aceitar Deus de qualquer modo em todas as coisas. Pois é característico da esperança que traga as coisas futuras ante nós como se elas estivessem já presentes, e assim assegurar aqueles que são atacados pelos poderes hostis que Deus, em cujo nome e por cuja salvação os santos vão à batalha protege-os, não estando de modo algum ausente. Pois sem qualquer esperança, agradável ou desagradável, não se pode empreender um retorno ao divino.

72) Nada tanto quanto o amor une aqueles que foram cindidos e produz neles uma união efetiva de vontade e propósito. O amor é distinguido pela beleza de reconhecer o valor igual de todos os homens. O amor nasce num homem quando o poder de sua alma - isto é, sua inteligência, poder abrasador e desejo - estão concentrados e unificados em redor do divino. Aqueles que, pela graça, chegaram a reconhecer o igual valor de todos os homens aos olhos de Deus e que gravaram Sua Beleza em sua memória, possuem um anseio de amor por Deus inerradicável, pois tal amor está sempre carimbando esta Beleza em seu intelecto. 

73) Todo nous cingido com autoridade divina possui três poderes como seus conselheiros e ministros.  O primeiro é a inteligência. É a inteligência que dá nascimento à nossa fé, fundada no conhecimento espiritual, onde o nous aprende que Deus está sempre presente de modo indizível, e por meio disso ele apreende, com a ajuda da esperança, coisas futuras como se fossem presentes. Em segundo lugar, o desejo. É o desejo que gera o amor divino no nous, quando por sua própria vontade aspira à Divindade Pura, acasalando-se de uma maneira indissolúvel a esta aspiração. Em terceiro lugar, há o poder abrasador. E com este poder que o nous abre caminho à paz divina e concentra seu desejo no amor divino. Todo nous possui estes três poderes, e eles cooperam com ele de modo a purgar o mal, estabelecer e suster a santidade. 

74) Sem o poder da inteligência não há capacidade para o conhecimento espiritual; e sem conhecimento espiritual nós não podemos ter a fé que germina aquela esperança onde agarramos as coisas futuras como se elas estivessem já presentes. Sem o poder do desejo não há anseio, e assim nenhum amor, que é filho deste anseio; pois é próprio do desejo amar algo. E sem o poder abrasador, intensificando o desejo por união com o que é amado, não pode haver paz, pois a paz é verdadeiramente a possessão completa e imperturbável do que é desejado.