Cristo Pantocrator

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Quarta Centúria sobre o Amor

Esta é a última centúria sobre os "400 Escritos sobre o Amor", escrito pelo grandessíssimo São Máximo, o Confessor. Espero depois de traduzi-la ter dado cabo de uma tarefa sublime, não digna de minha pessoa, mas se bem feita, apenas por Auxílio, Socorro, Graça e Mérito Daquele que é o único Autor das coisas verdadeiramente belas.
Máximo, como falamos, ocupa espaço magistral na Filocalia, e nosso interesse é divulgar toda a sua obra. Espero que a beleza de suas palavras tão singelas, didáticas e diretas, sirvam para a edificação, libertação e felicidade de quem as lê.

Quatrocentos Escritos Sobre o Amor
Parte final.
Quarta Centúria
São Máximo, o Confessor
Tradução da versão inglesa (Op. Cit, pags 100 a 113).

1) Primeiro o intelecto se maravilha quando reflete na absoluta infinidade  de Deus, mar sem limites que tanto se almeja. Então ele é surpreendido de como Deus trouxe coisas à existência a partir do nada. E como "Sua magnificência é sem limite" (Salmo 145: 3) e "Seus desígnios são inescrutáveis" (Isaías 40:28).

2) Como pode o intelecto não se maravilhar quando ele contempla o imenso e mais do que surpreendente mar de bondade? Ora, como não ficar surpreendido quando ele reflete  em como e de que fonte o que existe veio à existência, tanto a natureza dotada com inteligência e intelecto, e os quatro elementos que compõem o mundo físico, ainda que nenhuma matéria pré existisse à geração deles? Qual tipo de potencialidade era aquela que, uma vez atualizada, trouxe estas coisas ao ser? Mas tudo isso não é aceito por aqueles que seguem os filósofos pagãos gregos, ignorantes que eram da bondade onipotente e sua sabedoria efetiva e conhecimento, transcendendo o intelecto humano.

3)Deus é Criador desde toda a eternidade, e Ele cria quando Ele quer, em Sua infinita bondade, através de seu Logos e Espírito coessencial. Não se levanta a objeção: "Por que ele cria em um momento particular uma vez que ele é bom desde toda a eternidade?" Pois eu respondo que a sabedoria inescrutável da essência infinita não vem em paralelo com o conhecimento humano.

4) Quando o Criador quis, Ele deu o ser e manifestou aquele conhecimento das coisas criadas que já existiam nEle desde toda a eternidade. Pois no caso do Deus Onipotente é ridículo duvidar que Ele não possa dar o ser a qualquer coisa assim que o queira.

5) Tente aprender porque Deus cria; pois isto é conhecimento verdadeiro. Mas não tente aprender como Ele criou ou porque Ele fez assim há relativamente pouco tempo; pois que isso não tem paralelo com nossa inteligência. Das divinas realidades algumas podem ser apreendidas pelos homens e outras não podem. Uma especulação desenfreada, como disse um de nossos santos, pode nos levar de cabeça ao precipício.

6) Alguns dizem que a ordem criada coexistiu com Deus desde toda a eternidade, mas isto é impossível. Pois como pode que coisas limitadas coexistam com Ele que é completamente infinito? Ou como eles seriam realmente criações se fossem coeternos ao Criador? Esta noção é extraída dos filósofos gregos pagãos, que afirmam que Deus não é de modo algum criador do ser mas apenas das qualidades. Nós, porém, que sabemos que Deus é onipotente, dizemos que Ele é o criador não apenas das qualidades mas também do ser das coisas criadas. Se isto é assim, as coisas criadas não coexistiram com Deus desde toda a eternidade.

7) A divindade e as realidades divinas são em alguns aspectos cognoscíveis e em alguns outros incognoscíveis. Eles são cognoscíveis na contemplação do que pertence à essência de Deus e incognoscíveis no que diz respeito à essência própria.

8) Não olheis para as condições e propriedades da essência simples e infinita da Santíssima Trindade; de outro modo você a fará composta como os seres criados - uma coisa ridícula e blasfema a se fazer no caso de Deus.

9) Apenas o Ser infinito, todo poderoso e criador de todas as coisas, é simples, único, incondicional, pacífico e estável. Toda criatura que possua ser e acidente, é composta e sempre está necessitando da Divina Providência, pois não é livre para mudar.

10) Tanto a natureza sensível e inteligível, ao ser trazida para a existência por Deus, recebeu poderes para deter os seres criados. A natureza inteligível recebeu poderes da intelecção e a natureza sensível poderes da percepção sensível.

11) Deus é apenas participado. A Criação ao mesmo tempo participa e comunica: participa no ser e bem-estar, mas comunica apenas bem-estar. No entanto, a natureza corpórea comunica isto em um sentido e a natureza incorpórea em outro.

12) A natureza incorpórea comunica bem-estar por falar, por agir, e por ser contemplada; a natureza corpórea apenas por ser contemplada.

13) Seja ou não uma natureza dotada de inteligência e intelecto, para ela existir eternamente depende-se da vontade do Criador cuja criação é boa; mas se tal natureza é boa ou má, depende apenas de sua própria vontade.

14) O mau não pode ser imputado à essência do ser criado, mas à sua motivação errônea e estúpida.

15) Uma motivação de alma é corretamente ordenada quando seu poder desejante é subordinado ao autocontrole, quando seu poder apetitivo rejeita o ódio e  abre caminho para o amor, e quando seu poder de inteligência, através da contemplação espiritual e da oração, avança em direção a Deus.

16) Se em tempo de julgamento um homem não sofre pacientemente suas aflições mas desliga-se do amor de seus irmãos espirituais, ele ainda não possui o amor perfeito ou um conhecimento profundo da divina providência.

17) O objetivo da divina providência é unir por meio da verdadeira fé e do amor espiritual aqueles separados em vários sentidos pelo vício. De fato, o Salvador suportou Seus sofrimentos de modo que 'deve-se reunir na unidade os filhos de Deus' (João 11:52). Assim, aquele que não suporta resolutamente suas tribulações, aguentando aflições, e pacientemente sustentando dificuldades, extravia-se do caminho do amor divino e da proposta da providência.

18) "Se o amor é longânimo e doce" (1 Cor. 13:4), um homem que é tímido em face de suas aflições e que logo se comporta perversamente contra aqueles que o ofendem, deixa de amá-los, seguramente falha da proposta da divina providência.

19) Observe-se, verás que o vício que o separa de seu irmão jaz em você e não nele. Seja reconciliado com ele sem demora, a fim de que você não falhe no mandamento do amor.

20) Não guarde o mandamento do amor com desacato, pois por ele você se torna filho de Deus. Mas se você o transgride, você se tornará filho da Geena.

21) O que nos separa do amor dos amigos é invejar ou ser invejado, causando ou recebendo prejuízo, insultar ou ser insultado, e pensamentos suspeitos. Se você nunca tivesse feito ou experimentado algo deste tipo jamais se separaria do amor de um amigo.

22) Um irmão foi a ocasião de algum julgamento feito por ti e seu ressentimento levou-e ao ódio? Não deixe-se vencer por este ódio, mas conquiste-o pelo amor. Você terá sucesso nisso orando a Deus sinceramente pelo seu irmão e por aceitar suas desculpas; ou ainda conciliando o com um pedido de desculpas a si mesmo, reconhecendo-se como responsável pelo julgamento e esperando pacientemente até que esta nuvem passe.

23)  Um homem longânimo é aquele que espera pacientemente pelo seu julgamento para finalizar tudo e espera que sua perseverança será recompensada.

24) "Um homem longânimo abunda em entendimento" (Provérbios 14:29), porque ele suporta tudo até o fim e, enquanto aguarda esse fim, pacientemente carrega essa angústia. O fim, como diz São Paulo, é vida eterna (cf. Romanos 6:22). "E a vida eterna é esta: que possam conhecer a Ti o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (João 17:3).

25) Não descarte levemente o amor espiritual: para os homens não há outra rota de salvação.

26) Porque nos dias atuais um assalto do demônio fez surgir um ódio entre vós, não julguei aquele irmão perverso que ontem vós reconhecíeis como espiritual e virtuoso; mas como o amor longânimo habita na bondade o que vós percebeste ontem expelirá o ódio de hoje de vossa alma.

27) Não condeneis hoje o homem perverso que ontem louvaste como virtuoso e reconheceste como bom, mudando do amor ao ódio, porque ele te criticou; mas mesmo cheio de mágoa, vê-o com os olhos de antes, e assim te recobrirá o mesmo amor salvador.

28) Quando conversar com outros irmãos não adultere o louvor habitual de um irmão ao subrepticiamente censurá-lo por conta de algum ressentimento oculto contra ele. Pelo contrário, na companhia dos outros dê-lhe um elogio sem mistura e reze por ele sinceramente como se estivesse rezando por si mesmo; então você se libertará rapidamente de seu ódio destrutivo.

29) Não diga, "Eu não odeio meu irmão", quando você simplesmente eclipsa o pensamento dele em sua mente. Ouvi a Moisés que disse, "Não odeie seu irmão em sua mente; mas repreenda-o e você não cometerá pecado contra ele" (Levítico 19:17).

30) Se um irmão acontece de ser tentado e continua a lhe insultar, não se desvie de seu estado de amor, ainda que o próprio demônio venha para perturbar a sua mente. Você não se desviará deste estado quando abusado você abençoar; quando caluniado, você elogiar; quando enganado, você mantiver seu afeto. Este é o sentido da filosofia de Cristo: se você não a segue não compartilhará de Sua companhia.
 31) Não pense que aqueles que lhe trazem relatórios cheios de ressentimento e lhe fazem odiar seu irmão estão carinhosamente dispostos para com você, ainda que pareçam falar a verdade. Pelo contrário, volte-se contra eles como se se tratasse de cobras venenosas, pois assim você prevenirá tanto a si quanto eles de proferir calúnias e livra sua própria alma da perversão.

32) Não irrite seu irmão ao falar com ele equivocadamente; de outro modo você pode receber o mesmo tratamento dele e assim expulsar tanto o seu amor quanto o dele. De preferência, repreenda-o com amor e carinhosamente, removendo assim os fundamentos do ressentimento e liberte-o assim como também você da irritação e da angústia.

33) Examine sua consciência escrupulosamente, no caso de saber se não é por sua culpa que seu irmão ainda está hostil. Não trapaceie sua consciência, pois ela conhece seus segredos, e na hora de sua morte ela lhe acusará e no momento da oração ela lhe servirá como pedra de tropeço.

34) Em tempos de relacionamentos pacíficos não lembre-se do que foi dito por um irmão quando ele tinha sentimentos maus contra você, ainda que coisas ofensivas tenham lhe sido dirigidas na cara, ou de outra pessoa sobre você e que você tenha por conseguinte ouvido. De outro modo, você dará guarida a pensamentos de rancor e voltará  para você o ódio destrutivo de seu irmão.

35) A alma deiforme não pode nutrir ódio contra um homem e ainda assim estar em paz com Deus, o doador dos mandamentos. "Pois", Ele diz, "se não perdoares os homens suas faltas, não lhes Perdoará o Pai do Céu" (cf. Mateus 6: 14-15). Se seu irmão não deseja viver em paz com você, não guarde, no entanto, ódio contra ele, orando por ele sinceramente e não abusando dele.

36) A perfeita paz dos anjos jaz no amor deles por Deus e uns pelos outros. Isto também é o caso com todos os santos desde o início dos tempos. mais verdadeiramente é dito que "nestes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas" (Mateus 22;40).

37) Para de se agradar e você não odiará seu irmão; pare de se amar e você amará a Deus.

38) Uma vez que tenha decidido a compartilhar a sua vida com seus irmãos espirituais, renuncie aos seus desejos desde o começo. A menos que faça isso, você será capaz de viver pacificamente ou com Deus ou com os irmãos.

39) Aquele que obteve o perfeito amor e ordenou toda a sua vida de acordo com ele, é a pessoa que diz "Senhor Jesus" no Espírito Santo (cf. I Cor. 12:3)

40) O amor por Deus sempre aspira dar asas ao intelecto em sua comunhão com Deus; o amor ao próximo sempre nos leva a ter bons pensamentos sobre ele.

41) O homem que ainda ama a fama vã, ou está ainda atado a algum objeto material, se aborrece naturalmente com as pessoas por conta de coisas transitórias, ou guarda rancor ou ódio contra elas, ou é ainda escravo de pensamentos vergonhosos. Tais coisas são muito estranhas a alma que ama a Deus.

42) Se você não tem ideia de qualquer palavra vergonhosa ou ação em sua mente, não guarde rancor contra alguém que lhe injuriou ou caluniou e, enquanto ora, mantenha sempre seu intelecto livre de matéria e forma, pois assim esteja certo de que você terá obtido a pela medida do desapego e do amor perfeito.

43) Não é pequena luta ser liberto da autoestima. Tal liberdade é para ser obtida pela prática inerente das virtudes e por uma oração mais frequente; e o sinal que você tiver obtido é que não guardará mais rancor contra quem quer que tenha abusado ou abuse de você.

44) Se você quer ser uma pessoa justa, prescreva a cada parte de si mesmo - para sua alma e seu corpo - o que está de acordo com sua compleição. Para a parte intelectual prescreva a leitura espiritual, contemplação e oração; para a parte apetitiva, amor espiritual, o oposto do ódio; para o  aspecto desejante, moderação e autocontrole; para a parte carnal, comida e bebida, pois apenas estes são necessários (cf. I Tim. 6:8)

45) O intelecto funciona de acordo com a natureza quando ele mantém as paixões sob controle, contempla as essências inerentes dos seres criados e permanece com Deus.

46) Assim como saúde e doença se relacionam ao corpo dos seres viventes, luz e escuridão aos olhos, assim também virtude e vício se relacionam á alma, e conhecimento e ignorância ao intelecto.

47) Os mandamentos, as doutrinas, a fé: estes são os três objetos da filosofia Cristã. os mandamentos separam o intelecto das paixões; as doutrinas o conduzem para o conhecimento espiritual dos seres criados; e a fé para a contemplação da santíssima Trindade.

48) Alguns daqueles que perseguem a via espiritual apenas repelem os pensamentos apaixonados; outros extirpam as próprias paixões. Tais pensamentos são repelidos pela salmodia, ou pela oração, ou pela elevação da mente para Deus, ou por ocupar a atenção de alguém de algum sentido parecido a isto. As paixões são extirpadas pelo distanciamento apropriado daquelas coisas pelas quais elas nasceram.

49) As paixões são despertadas em nós, por exemplo, através de mulheres, riquezas, famas e assim por diante. Nós podemos alcançar distanciamento com relação a mulheres quando nos retirarmos do mundo, pois assim perdemos o vigor do corpo e obtemos autocontrole. Nós podemos alcançar distanciamento quando o interesse pela riqueza é superado por uma mente frugal com respeito a todas as coisas. Nós podemos ser indiferentes à fama por praticar as virtudes no coração, de um modo visível apenas a Deus. E nós podemos agir de maneira similar com respeito a outras coisas. Uma pessoa que alcançou tal distanciamento nunca odiará quem quer que seja.

50) Aquele que renunciou tais coisas como casamento, posses e outras ocupações mundanas é exteriormente um monge, mas pode não sê-lo ainda interiormente. Apenas quem renunciou as imagens conceituais apaixonadas destas coisas se faz monge em si mesmo, e no seu intelecto. É fácil ser um monge por ser-se exteriormente; mas não é pequena a batalha espiritual requerida para se verter em um monge interiormente.

51) Quem nesta geração está completamente liberto das imagens conceituais apaixonadas,  lhe sendo concedido o dom da oração pura, ininterrupta e espiritual? Ora, esta é a marca interior do monge.

52) Muitas paixões estão ocultas em nossas almas; elas podem ser trazidas à luz apenas quando os objetos que as despertam se fazem presentes.

53) Um homem pode aproveitar o desapego e não ser perturbado por paixões quando os objetos que as despertam estão ausentes. Mas, uma vez que os objetos se fazem presentes, as paixões rapidamente distarem seu intelecto.

54) Não imagine que você goza de perfeito desapego quando os objetos que despertam suas paixões não estão presentes. Se quando estão presentes você permanece imóvel tanto pelo objeto quanto pelo pensamento subsequente dele, esteja certo que você entrou no reino do desapego. Mas mesmo assim, não seja super confiante; pois virtude quando se torna um hábito mata as paixões, mas quando é negligenciada as paixões retornam à vida novamente.

55) Aquele que ama a Cristo é obrigado a imitá-Lo o melhor que consegue. Cristo, por exemplo, estava sempre conferindo bençãos ao povo; Ele era longânimo quando eles eram ingratos e blasfemos contra Ele; e quando eles O castigaram e O entregaram à morte, Ele suportou tudo, não imputando mal a quem quer que fosse. Estes são os três atos que manifestam amor ao próximo. Se se é incapaz deles, a pessoa que diz amar a Cristo ou ter atingido o Reino engana-se a si mesmo. Pois "Pois nem todo aquele que diz Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus; mas aquele que faz a vontade do Meu Pai" (Mateus 7:21); e novamente, "Aquele que Me ama, guardará os Meus mandamentos" (cf. João 14: 15, 23).

56) A proposta completa dos mandamentos do Salvador é libertar o intelecto da dissipação e ódio, e conduzi-lo ao amor dEle e de seu próximo. Deste amor brota a luz do santo conhecimento ativo.

57) Quando Deus conceder-lhe um grau de conhecimento espiritual não negligencie o amor e o autocontrole; pois são tais coisas que, uma vez que tenham purificado a alma do aspecto passional, sempre mantém aberta para você o sentido do autoconhecimento.

58) Desapego e humildade conduzem ao conhecimento espiritual. Sem eles não se verá o Senhor.

59) Já que o "conhecimento incha, mas o amor edifica" (I Cor. 8: 1), una amor ao conhecimento e você se libertará da arrogância e será um construtor espiritual, edificando tanto a si mesmo quanto aqueles que se aproximarem de você.

60) O amor edifica porque não inveja, ou sente qualquer amargura para com aqueles que são invejosos, ou ostensivamente revela o que provoca inveja; não julga que seu propósito tenha sido alcançado (cf. Filipenses 3:13), e sem hesitar confessa sua ignorância acerca daquilo que não conhece. Com isso, ele liberta o intelecto da arrogância e sempre equipa-o para avançar no conhecimento.

61) É natural para o conhecimento espiritual produzir vaidade e inveja, especialmente nos estágios iniciais. A vaidade vem de dentro, mas a inveja vem tanto de dentro quanto de fora - de dentro quando sentimos inveja daqueles que possuem conhecimento, de fora quando aqueles que amam o conhecimento sentem inveja de nós. O amor destrói todas estas três falhas: vaidade, porque o amor não incha; inveja de dentro, porque o amor não é invejoso; e inveja de fora, porque o amor é "longânimo e benigno" (1 Cor. 13:4). Uma pessoa com conhecimento espiritual deve, então, também adquirir amor, assim que ele pode sempre manter seu intelecto em um estado saudável.

62) Aquele que recebeu a graça do conhecimento espiritual e ainda guarda ressentimento, rancor ou ódio por alguém, é como alguém que dilacera seus olhos com espinhos e cardos. Disso o conhecimento deve ser acompanhado pelo amor.

63) Não devote todo o seu tempo ao seu corpo mas aplique a ele a medida de asceticismo apropriada para seu vigor, e então volte todo o sue intelecto para o que é interior. "Asceticismo corporal tem apenas um uso limitado, mas a verdadeira devoção é útil em todas as coisas" (1 Timóteo 4:8)

64) Aquele que sempre se concentra em sua vida interior torna-se comedido, longânimo, doce e humilde. Ele será sempre capaz de contemplar, teologizar e rezar. Isto foi o que São Paulo quis dizer quando falou: "Caminhai no Espírito" (Gálatas 5:16).

65) Aquele que é ignorante do caminho espiritual não fica em guarda contra as imagens conceituais apaixonadas, mas devota-se inteiramente à carne. Ele é ou um glutão, ou licencioso, ou cheio de ressentimento, ira e rancor. Como resultado ele obscurece seu intelecto ou então pratica um asceticismo severo que apenas obscurece sua mente.

66) A Escritura não proíbe qualquer coisa que Deus nos tenha dado para uso; mas ela condena imoderação e comportamento irrefletido. Por exemplo, ela não nos proíbe de comer, ou ter filhos, ou possuir bens materiais e administrá-los propriamente. Mas ela nos proíbe de ser glutão, de fornicar e assim por diante. Ela não nos proíbe pensar estas coisas - elas foram feitas para serem pensadas - mas proíbe-nos pensar nelas com paixão.

67) Algumas das coisas que nós fazemos por amor a Deus são feitas em obediência aos mandamentos; outras são feitas não em obediência aos mandamentos, por assim dizer, mas como oferecimento voluntário. Por exemplo, nos é requerido pelos mandamentos a amar a Deus e ao próximo, a amar nossos inimigos, a não cometer adultério, nem homicídio e assim por diante. E quando transgredimos tais mandamentos nós somos condenados. Mas não somos condenados a viver como virgens, abstermos nos do casamento, a renunciar posses, a retirar-se na solidão e assim por diante.  Estes são presentes da natureza, de modo que, se por fraqueza somos incapazes de cumprir com os mandamentos, nós podemos por estes bens livres agradar nosso Bendito Mestre.

68) Aquele que honra o celibato e a virgindade deve manter seus lombos cingidos e sua lâmpada acesa (cf. Lucas 12:35). Ele mantém seu lombo cingido através do autocontrole, e sua lâmpada acesa por meio da oração, contemplação e amor espiritual.

69) Alguns dos irmãos pensam que eles estão excluídos dos bens da graça do Espírito Santo. Porque negligenciaram na prática dos mandamentos não sabem que aquele que tem uma fé não adulterada em Cristo tem em si a soma total de todos os bens divinos. Já que por nossa preguiça estamos longe de ter um amor ativo por Ele - um amor que nos mostre os tesouros divinos em nós - nós naturalmente pensamos que estamos excluídos destes bens.

70) Se, como disse São Paulo, Cristo habita nosso coração pela fé (cf. Efésios 3:17), e todos os tesouros da sabedoria e o conhecimento espiritual estão ocultos NEle (cf. Col. 2:3), então todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento espiritual estão ocultos em nossos corações. Eles são revelados ao coração em proporção à nossa purificação por meio dos mandamentos.

71) Este é o tesouro oculto no campo de nosso coração (cf. Mateus 13:44), que você ainda não encontrou por causa de sua preguiça. Tivesse encontrado teria vendido tudo o que possui e comprado aquele campo. Mas agora que abandonou aquele campo, passou a devotar atenção para terra das proximidades, onde não há nada senão espinhos e cardos.

72) Esta é a razão para que o Salvador diga: "Bem Aventurados são os puro de coração, porque verão a Deus" (Mateus 5:8): pois Ele está escondido no coração daqueles que nEle creem. Eles O verão e as riquezas que estão nele, quando já purificadas pelo amor e autocontrole, e quanto maior sua pureza, mais eles verão.

73) E isso é porque Ele também diz, "Vende tudo o que possui e dê esmolas" (Lucas 12: 33), "e você descobrirá que todas as coisas foram purificadas para você" (Lucas 11:41). Isto se aplica a aqueles que não mais gastam seu tempo no cuidado com o corpo, mas se esforça em purificar o intelecto (que o Senhor chama de "coração") do ódio e dissipação. Pois estes corrompem o intelecto e não permitem ver o Cristo, que nos habita pela graça do Santo Batismo.

74) Na Escritura as virtudes são chamadas 'caminhos'. A maior de todas as virtudes é o amor. Esta é a razão pela qual Paulo disse, "Agora vos mostrarei o melhor caminho de todos" (1 Cor. 12:31), aquele que nos convence a desprezar as coisas materiais e a valorizar nada transitório mais do que o que é eterno.

75) O amor de Deus é o oposto do desejo, pois ele persuade o intelecto a se controlar com relação aos prazeres sensuais. O amor ao nosso próximo é oposto à cólera, pois ele nos faz desprezar fama e riqueza. Estas são as duas moedas que Nosso Salvador deu ao hoteleiro (cf. Lucas 10:35), e que ele deveria tomar cuidado de você. Mas não seja irrefletido e se associe com ladrões; de outro modo você será espancado novamente e não deixado simplesmente inconsciente, senão morto.

76) Purifique seu intelecto da ira, rancor e de pensamentos vergonhosos, e você será capaz de perceber a morada de Cristo.

77) Quem lhe iluminou com fé na Santa, Coessencial e Adorável Trindade? Ou quem lhe fez conhecer a entrega encarnada da Santíssima Trindade? Quem lhe ensinou sobre a essência inerente dos seres incorpóreos, ou sobre a origem e consumação do mundo visível, ou sobre a ressurreição dos mortos e a vida eterna, ou sobre a glória do Reino dos Céus e o terrível julgamento? Não foi a Graça de Cristo que lhe habita, que é o penhor do Espírito Santo? O que é maior do que esta graça? O que é mais nobre do que esta sabedoria e conhecimento? O que é mais sublime do que estas promessas? Mas, se nós somos preguiçosos e negligentes, e se nós não nos purificamos das paixões que nos contaminam, cegando nosso intelecto e impedindo-nos de ver a natureza destas realidades mais claramente do que o sol, nos envergonharemos a nós mesmos e não negaremos a Graça interior.

78) Deus, que tem prometido suas bençãos eternas (cf. Tit. 1: 2) e nos concedeu o penhor do Espírito em nossos corações (cf. 2 Cor. 1: 22), nos ordenou a prestar atenção em como viver, de modo que o homem interior possa ser liberto das paixões e comece aqui e agora a gozar destas bençãos.

79) Quando você for agraciado com as mais altas formas de contemplação das divinas realidades, dê sua máxima atenção ao amor e ao autocontrole, para que assim você possa manter o aspecto passível de sua alma imperturbável e preserve a luz de sua alma em um esplendor não reduzido.

80) Ponha rédeas no poder apetitivo da alma com amor, sacie seu desejo com autocontrole, dê asas à sua inteligência com oração, e a luz de seu intelecto nunca será obscurecida.

81) Desgraça, injúria, calúnia contra a fé de alguém ou uma maneira de vida, violência, golpes e assim por diante - estas são coisas que dissolvem o amor, se elas acontecem a nós mesmos, ou a algum de nossos parentes e amigos. Aquele que perde seu amor por causa destas coisas não entendeu ainda a proposta dos mandamentos de Cristo.

82) Esforce o quanto puder para amar todos os homens. Se você não pode fazer isso, pelo menos não odeie ninguém.  Mas nem isso está em seu poder, a menos que você despreze as coisas mundanas.

83) Alguém lhe vilipendiou? Não o odeie; odeie o vilipêndio e o demônio que o induziu a fazer isso. Se você odeia o vilipendiador, você odiou o homem e assim rompeu com o mandamento. O que ele fez em palavra, você fez em ação.  Para manter o mandamento, mostre as qualidades de amor e ajude-o de qualquer modo para que ele se livre do mal.

84) Cristo não quer que você sinta ódio, ressentimento, ira ou rancor contra alguém em qualquer sentido ou em consideração a coisas transitórias. Isto é inteiramente proclamado nos quatro Evangelhos.

85) Muitos de nós são falastrões, poucos são executores. Mas ninguém pode distorcer a Palavra de Deus por sua própria negligência. Nós devemos confessar nossa fraqueza e não esconder a verdade de Deus. De outro modo nos sentiremos culpados não apenas por quebrar os mandamentos mas também de falsificar a palavra de Deus.

86) Amor e autocontrole libertam a alma das paixões; leitura espiritual e contemplação libertam o intelecto da ignorância; e o estado de oração nos coloca na presença do próprio Deus.

87) Quando os demônios vêem que desprezamos as coisas deste mundo de modo que não odiamos os homens ao considerar tais coisas, e assim nos afastamos do amor, então eles incitam calúnias contra nós. Deste modo eles esperam que, incapazes de conter nosso ressentimento, eles nos provocarão ódio a quem nos calunia.

88) Nada é mais doloroso para a alma do que a calúnia, se dirigida contra a fé ou modo de vida de alguém. Ninguém pode ser indiferente a ela, a não ser aqueles que, como Suzana, possuem seus olhos fixos em Deus. Pois apenas Deus tem o poder de resgatar do perigo, como Ele a resgatou, para convencer os homens da verdade, como ele fez no caso dela, e para encorajar a alma com esperança.

89) Na medida em que você reza com toda a sua alma para a pessoa que a escandaliza, Deus fará a verdade conhecida para aqueles que foram escandalizados pelo caluniador.

90) Apenas Deus é bom por Natureza e apenas aquele que imita Deus é bom em vontade e propósito. Pois é a intenção de tal pessoa unir sua fraqueza àquele que é bom por Natureza, de modo que possa também tornar-se bom. E assim, mesmo que injuriado, abençoe; perseguido, suporte; vilipendiado, rogue (cf. I Cor. 4: 12-13); levado à morte, rogue pelos maus. Ele faz isso tudo para não ser relapso na proposta do amor, que é o Próprio Deus.

91) Os mandamentos de Deus nos ensinam a usar coisas neutras inteligentemente. Tal uso purifica o estado de alma. Um estado de pureza gera discriminação; discriminação gera  desapego; e é do desapego que nasce o amor perfeito.

92) Se quando ocorre algum julgamento e você não consegue ignorar a culpa de um amigo, se real ou aparente, você ainda não conseguiu atingir o desapego. Pois quando as paixões que jazem no mais profundo da alma são agitadas, elas cegam a mente, impedindo-nos de ver a luz da verdade e de discriminar o bem do mal. Se você está em tal estado, você ainda não atingiu o amor perfeito, o amor que expele o medo do julgamento. (cf. João 4:18).

93) "Um amigo fiel é sem preço" (Eclesiástico 6: 15), já que ele reconhece os infortúnios de seu amigo como se fossem seus e sofre com ele compartilhando seu julgamento até a morte.

94) Amigos são muitos em tempos de prosperidade (cf. Provérbios 19:4). Em tempos de adversidade você terá dificuldade em encontrar mesmo um.

95) Deve-se amar com nossa alma a cada homem, mas deve-se colocar somente em Deus nossa esperança e servi-Lo com todas as nossas forças. Pois na medida em que Ele nos protege contra os prejuízos, todos nossos amigos nos tratam com respeito e todos os nossos inimigos ficam sem poder de nos injuriar. Mas, uma vez que Ele nos abandona, todos nossos amigos se voltam contra nós enquanto todos nossos inimigos prevalecem contra nós.

96) Há quatro caminhos em que Deus nos abandona. O primeiro é o caminho da divina dispensa, de modo que por meio de nosso aparente abandono outros que estão abandonados possam ser salvos. Nosso Senhor é um exemplo disso (cf. Mateus 27:46). O segundo é o caminho do julgamento e do teste, como no caso de Jó e José; por ele Jó se tornou um pilar da coragem e José do autocontrole (Gn. 39:8). O terceiro é o sentido da correção fraterna, como no caso de São Paulo, assim que por meio da humildade ele pôde preservar a superabundância da Graça (cf. 2 Cor. 12: 7). O quarto é o caminho da rejeição, como no caso dos Judeus, pois ao serem purificados possam ser conduzidos ao arrependimento. Todos estes são caminhos da salvação, cheio de divina benção e sabedoria.

97) Apenas aqueles que guardam escrupulosamente os mandamentos e são verdadeiros iniciados nos julgamentos divinos, não abandonam seus amigos quando Deus permite que esses amigos sejam testados. Aqueles que desprezam os mandamentos e que são ignorantes acerca do julgamento divino regozijam-se com seus amigos em tempos de prosperidade; mas quando em tempos de julgamento sofrem dificuldades, eles o abandonam e algumas vezes mesmo se colocam ao lado daqueles que o atacam.

98) Os amigos de Cristo amam a todos verdadeiramente mas não são eles próprios amados por todos; os amigos do mundo nem amam a todos nem são amados por todos. Os amigos de Cristo perseveram no amor até o fim; os amigos do mundo perseveram apenas na medida em que possam ter acesso a alguma coisa mundana.

99) "Um amigo fiel é uma forte defesa" (Eclesiástico 6:14); pois quando as coisas estão indo bem com você, ele é um bom conselheiro e um simpático colaborador, enquanto quando as coisas vão mal, ele é o mais confiável dos auxílios e o mais compassivo dos suportes.

100) Muitos disseram muito sobre o amor, mas você só irá encontrá-lo entre os discípulos de Cristo. Pois apenas ele possuem o verdadeiro Amor como mestre. "Ainda que eu tivesse o dom da profecia", diz São Paulo, "e conhecesse todos os mistérios e todo o conhecimento... e não tivesse amor, isso de nada me adiantaria" (I Cor. 13: 2-3). Aquele que possui amor possui o próprio Deus, pois "Deus é amor" (IJoão 4:8). Para Ele toda a glória dos séculos. Amém.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Discurso Ascético São Nilo, parte II

O texto de São Nilo é o campeão de visualizações neste blog, o que eu jamais esperei acontecer. Aliás, tenho postado todos os dias estes textos para verificar alguma melhoria espiritual e moral em mim. Postar, é, ao mesmo tempo, tentar ajudar alguém que esteja, como eu, em perigo.  Verifiquei que o blog teve acesso em vários países, como EUA, Alemanha, França, Paraguai, Malásia, Rússia. Isso, de alguma maneira me anima a continuar me ajudando (pois sou a maior afortunada e socorrida ao fazê-lo) e ao divulgar textos de tão rara beleza, tentar ajudar aqueles que, como eu, precisam trilhar com afinco e força a estrada íngreme e terna da santidade. A fim de dar continuidade à tradução deste magnífico texto, resolvi, arbitrariamente, dividi-lo em cinco partes. Digo arbitrariamente porque o texto é corrido e fica difícil estabelecer partes para ele. Quem quiser lê-lo inteiro, terá de retornar à postagem que fiz no dia 3 de outubro. A edição que eu usei foi a mesma que já citei na postagem do dia 3 de outubro, e a tradução ainda é do Inglês. Espero que esse texto os ajude a detectar charlatães, vigaristas, preguiçosos que se fazem de santos e sábios e a não cair em sua lábia e desejo de lucro em cima da boa fé das pessoas. Num mundo em que se valoriza tanto a liderança, é preciso verificar quem é de fato líder de algo. Isso só acontece quando um homem é capaz de, pelo autocontrole, ser líder de si mesmo.
A quem quiser, recomendo que busquem no Google a "Profecia de São Nilo".

Discurso Ascético, São Nilo do Egito
Parte II

À primeira vista, parece que apenas os professores que nosso Senhor tinha em mente eram os fariseus quando Ele disse: "Ai de vós, escribas e Fariseus, hipócritas! Pois vós percorreis o mar e a terra para ganhar um prosélito, e quando ele é ganho, vós o fazeis duas vezes filho do inferno como vós mesmos". (Mateus 23:15). Mas em realidade, por censurar os Fariseus neste sentido, Ele estava advertindo aqueles que no futuro cairiam no mesmo erro; assim que, atendendo Suas palavras 'Ai de Vós...', do medo de sua condenação eles conteriam seu desejo impróprio de glória humana. Eles também recordariam o exemplo de Jó, e também o cuidado por seus discípulos que ele tinha como se fosse por suas crianças, e assim renunciariam a todo desejo de dar direção espiritual. Jó, desejando que seus filhos fossem libertos dos pecados em sua mente, ofereceu sacrifícios todos os dias em favor deles, conforme ele disse, "meus filhos pensaram o mal em seus corações contra Deus" (Jó 1:5). Mas estes homens não podem discernir nem mesmo pecados externos, porque sua inteligência é ainda obscurecida pela poeira da batalha que eles estão travando contra as paixões. Como, então, eles precipitadamente tomam sobre si mesmos a direção e cura dos outros, quando eles ainda não se curaram de suas paixões, e quando eles não podem conduzir os demais á vitória, já que eles não têm ainda obtido vitória para eles mesmos? Primeiro nós devemos lutar contra nossas próprias paixões, observando e mantendo em mente o curso da batalha; e então na base da experiência pessoal nós podemos aconselhar aos demais sobre este estado de guerra, e tornar a vitória deles mais fácil ao lhes descrever as táticas antecipadamente.

Há aqueles que ganham controle sobre as paixões por praticar grandes austeridades; mas, como acontece com as lutas noturnas, eles não sabem qual vitória ganharam, e não possuem nenhuma ideia clara das armadilhas lançadas pelos inimigos contra eles. Isto é indicado simbolicamente pelo que Josué fez: enquanto seu exército estava cruzando o Jordão à noite, ele ordenou seus homens a tomar pedras fora do rio, coloca-las no banco, e então cobri-las com cal e escrever nelas como eles passaram sobre o Jordão (cf. Josué 4: 2-9). Por este gesto ele quis dizer que pensamentos ocultos subjacentes ao nosso comportamento passional devem ser por à vista de todos e expostos ao ridículo e que não devemos nos importar de compartilhar este conhecimento com outros. Neste sentido, não só aquele que atravessou o rio sabe como ele fez, mas outros que desejem fazer o mesmo cruzarão mais facilmente porque eles foram instruídos, Por tal experiência o primeiro ensina aos demais.

Mas falta aos professores autonomeados experiência, e nem mesmo escutam o que os outros lhes fala. Confiando apenas em sua auto-segurança, eles ordenam seus irmãos a servi-los como escravos. Eles gloriam nisso uma coisa: ter muitos discípulos. Seu objetivo principal é assegurar que, quando eles vão a público, seu séquito de seguidores não seja menor do que de seus rivais. Eles se comportam como saltimbancos mais do que como educadores. Eles não se importam de sair dando ordens, ainda que onerosas, mas falham ao ensinar os outros por sua própria conduta. Assim eles tornam seu propósito claro a todos: eles se colocaram em uma posição de liderança, mas para promover seu próprio prazer.

Eles devem aprender de Abimeleque e Gideão que não são palavras mas ações que inspiram o povo a seguir um líder. Abimeleque tomou um ramo de árvore, colocou-o sobre os ombros, dizendo: 'O que me viste fazer, apressai-vos a fazer como eu' (Juízes 9:48). Gideão também compartilhou tarefas com seus homens e por seu próprio exemplo mostrou a eles o que fazer, dizendo: 'Olhe para  mim e faça o mesmo' (Juízes 7:17). Similarmente, o Apóstolo disse: 'Estas mãos me serviram para as minhas necessidades e daqueles que estavam comigo' (Atos 20:34), enquanto o próprio Senhor primeiro agiu e depois falou. Tudo isto prova que é mais convincente ensinar pelas ações do que pelas palavras.

Mas falsos mestres são cegos para tais exemplos, e arrogantemente falam aos homens o que fazer. Imaginando que eles conhecem alguma coisa sobre tais questões de segunda mão, eles são como os pastores inexperientes que foram censurados pelo profeta por carregar uma espada em seus braços: "A espada cairá de seu braço...e seu olho direito completamente se cegará" (Zacarias 11:17). Pois em sua tolice eles negligenciaram a ação correta, e assim eles extinguiram a luz da contemplação. Ainda, como pastores eles são desagradáveis e desumanos quando podem infligir castigo. Então seu conhecimento contemplativo é imediatamente destruído, e suas ações privadas de entendimento, denotam seu extravio; pois aqueles que não cingem a espada à sua coxa, mas carregam em seu braço, não podem nem ver, nem fazer nada. O 'cingir a espada à coxa' (Salmo 45: 3) significa usar o poder incisivo da inteligência para extirpar as próprias paixões enquanto que 'carregar em seu braço' significa estar pronto para punir os atos pecaminosos dos outros. Assim Naás, o Amonita, cujo nome significa 'cobra', ameaçou os israelitas presenteados com a visão contemplativa, que arrancaria seus olhos direitos (Cf Samuel 11:2), e assim, desprovê-los de qualquer entendimento correto que conduziria às ações probas. Ele sabia que quando um povo prossegue da contemplação à ação, seu entendimento correto capacita-os a fazer grande progresso. A ação é boa porque ele foi primeiro contemplado pelos olhos perspicazes do conhecimento espiritual.

A experiência mostra que a tarefa da guiar os outros deve ser empreendida por alguém que é equânime e não está em vista de nenhuma vantagem sobre os outros. Pois tal pessoa, tendo experimentado tranquilidade e contemplação, e iniciado em alguma medida a sentir paz interior, não escolherá enredar seu intelecto com cuidados corpóreos; ele não quererá se afastar do conhecimento e arrastá-lo para baixo do espiritual ao material. Este ponto está subjacente na bem conhecida parábola que Jotão disse aos homens de Siquém: "Certa vez as árvores  foram ungir um rei para elas; e elas disseram... à videira, "Venha e reina sobre nós". E a videira disse a eles: "Devo eu deixar minhas videiras, que alegram a Deus e aos homens, e ser promovida entre as árvores?". De modo similar, a figueira declinou por causa de sua doçura e a oliveira por causa de suas boas qualidades. Então o espinheiro, uma planta estéril cheia de espinhos, aceitou a soberania que eles lhe ofereceram, apesar de não possuir nenhuma boa qualidade como das árvores que estavam sujeitas a ele" (Juízes 9: 7-15). Agora nesta parábola as árvores que procuram um legislador não eram cultivadas, mas selvagens. A videira, a figueira e a oliveira recusaram-se a legislar sobre as outras árvores selvagens, preferindo carregar seus próprios frutos de preferência a ocupar uma posição de autoridade. Do mesmo modo, aqueles que percebem neles mesmos algum fruto de virtude e sentem seu benefício, recusam-se a assumir liderança mesmo quando são pressionados pelos outros, porque eles preferem este benefício a receber a honra dos homens.

O fardo que se abateu sobre as árvores na parábola também recai sobre as pessoas que agem de maneira similar. "Saia fogo do espinheiro", ele diz, "e devore as árvores da floresta; ou deixe-o sair das árvores e devore o espinheiro". Pois quando estas pessoas fazem um acordo prejudicial, inevitavelmente isso se torna perigoso não apenas para aqueles que se colocam sob a orientação de um mestre inexperiente, mas igualmente para o mestre que assume autoridade sobre discípulos desatentos. A inépcia do professor destrói os discípulos, e a negligência dos discípulos coloca em perigo o professor, especialmente quando, por causa de sua inépcia, eles crescem preguiçosos. Pois é dever do professor notar e corrigir todas as faltas de seus discípulos, e é dever do discípulo obedecer a todas as suas instruções. É uma coisa séria e perigosa para ambos cometer pecados e para  ele ser ignorado por eles.

Ninguém imaginará que ser um guia espiritual é uma licença para a facilidade e a auto-indulgência, pois nada é mais oneroso do que o cuidado das almas. Aqueles que cuidam de cavalos e outros animais os mantém sob controle e assim geralmente eles alcançam seus propósitos. Mas governar homens é difícil, por causa da variedade de suas características e astúcia deliberada. Qualquer pessoa que tenha de realizar esta tarefa deve se preparar para uma contenda severa. Ele deve tratar a falta de todos com grande paciência, e pacientemente ensiná-los coisas de que em sua ignorância eles não eram conscientes.

Esta é a razão de porque, no templo, os bois apoiassem a bacia para a lavagem (cf. I Reis 7:25); e porque o candelabro todo fosse coberto de ouro (cf. Êxodo 25:31). Agora o candelabro significa que quem pretende iluminar os outros deve ser ao mesmo tempo sólido e firmemente embasado, e não ser uma pessoa vazia ou oca; tudo nele que for supérfluo e não puder servir aos outros como um exemplo de santidade deve ser extirpado. E os bois suportando a base significa que aquele que realiza esta obra não deve rejeitar o que chega a ele, mas deve suportar os encargos e contaminação dos mais fracos que ele, desde que seja seguro a ele fazê-lo.


Pois ele está purificando as ações daqueles que vêm até ele, ele deve, em certa medida, partilhar de sua contaminação, como uma bacia de água, enquanto limpa as mãos daqueles que se lavam, recebe em si mesma a sua sujeira. Pois aquele que fala sobre as paixões e enxuga os demais limpando suas manchas não pode ele mesmo escapar sem contaminar-se, já que o ato de conversar com eles inevitavelmente contamina a mente de quem fala. E ainda que eles não descrevam os pecados com cores vívidas, por falar sobre eles, isto contamina a superfície do intelecto.

O diretor espiritual deve também possuir conhecimento de todos os dispositivos do inimigo, para que assim possa advertir aqueles sob seu encargo sobre as armadilhas para aqueles que estão inconscientes, capacitando-os assim para ganhar vitória sobre as dificuldades. Tal pessoa é rara e não facilmente encontrada. É verdadeiro o que São Paulo diz de si mesmo: "Nós não ignoramos os ardis do demônio" (2 Cor. 2:11); mas Jó pergunta em perplexidade: "Quem revelará a face de suas vestes? Quem entrará na sua couraça dobrada? E quem abrirá as portas de sua face?" (Jo 41: 13-14). O que significa algo como isto: Satan não tem face visível, por isso ele esconde sua astúcia sob muitas vestes. Ele enganosamente seduz os homens com sua aparência exterior, enquanto secretamente, à espreita, maquina sua destruição. E Jó, para mostrar que ele mesmo não é ignorante dos caminhos de Satan, fala claramente  sobre seus poderes sinistros, dizendo: "Seus olhos são como a estrela da manhã, mas suas partes interiores são víboras" (Jo 41:18). Tudo isto ele diz para expor a perversidade do demônio. Pois Satan seduz os homens ao simular a beleza da estrela da manhã, e quando os homens se aproximam, ele planeja matá-los com as víboras que estão dentro dele.

Há um provérbio que enfatiza os riscos envolvidos em empreender direção espiritual: "O que racha lenha está em perigo se o machado lhe escapa" (Eclesiastes 10: 9-10). Pois quando alguém faz distinção entre coisas que são pensadas geralmente serem as mesmas, tentando mostrar a diferença fundamental entre o que é aparentemente bom e o que é realmente bom, ele corre um grave risco: se ele cometer um erro, ele conduzirá seus ouvintes neste extravio. Lembre-se de um dos seguidores de Eliseu que estava cortando lenha para o Jordão e o machado caiu na água. Ao acontecer isso ele ficou em apuros - pois o machado era emprestado - e ele clamou ao seu mestre: "Ai de mim Mestre" (2 Reis 6:5). A mesma coisa ocorre com aqueles que tentam ensinar tendo por base o que eles entenderam erradamente dos outros, e que não podem completar a tarefa porque eles não falam de experiência pessoal. Na metade do caminho eles são desmascarados por se contradizerem a si mesmos; e então eles admitem sua ignorância, encontrando-se em apuros porque seu conhecimento é emprestado.

Na História Bíblica Eliseu então lançou um bastão no Jordão e trouxe à superfície o machado que seu discípulo havia perdido. (2 Reis 6:6), e isto quer dizer que ele revelou um pensamento que seu discípulo julgava estar profundamente ocultado e o expôs àqueles que estavam presentes. Neste contexto, Jordão significa arrependimento, pois foi no Jordão que João realizou o batismo de arrependimento. Agora se alguém não explica acuradamente sobre o arrependimento, mas faz seus ouvintes desprezá-lo por não comunicar seu poder oculto, deixando o machado cair no Jordão. Mas então um bastão - e isto significa a Cruz - traz o machado de volta das profundezas para a superfície. Pois antes da Cruz o significado do arrependimento era oculto, e quem quer que tentasse dizer alguma coisa sobre isso poderia facilmente ser convencido de falar precipitadamente e inadequadamente. Depois da Crucificação, porém, o significado do arrependimento tornou-se claro a todos e ele foi revelado no tempo apropriado através do lenho da Cruz.

Meu objetivo ao dizer todas estas coisas não é desencorajar as pessoas de assumir a direção espiritual de iniciantes, mas impeli-los a primeiro adquirir o estado interior necessário para tão grande tarefa, e não empreendê-la sem a preparação adequada. Eles não devem pensar nos prazeres que irão gozar -discípulos a servi-los, pessoas de fora a elogiá-los - e assim ignorar os perigos envolvidos. Antes que a paz tenha se estabelecido, eles não devem verter as armas da guerra em ferramentas de ensino. Quando um homem subjugou todas as paixões, ele não é mais perturbado pela guerra, nem é forçado a usar armas para autodefesa, ele pode propriamente empreender-se na direção de outras almas. Mas na medida em que as paixões nos oprimem e estamos envolvidos em guerra carnal contra a vontade da carne, nós devemos constantemente manter a apreensão de nossas armas: de outro modo nossos inimigos tomarão vantagem sobre nosso relaxo e nos dominarão sem qualquer luta.


De modo a encorajar aqueles que têm lutado com sucesso em direção à santidade, mas que em sua grande humildade pensam não ser ainda vitoriosos, diz as Escrituras: "Convertam suas espadas em arados e suas lanças em foices" ( Cf. Isaías 2:4). Isso significa que eles devem parar de se preocupar inutilmente com seus inimigos derrotados, e devem para benefício dos outros reequipar os poderes de suas almas, desviando-os da guerra para o cultivo daqueles que ainda sofrem com as sementes da perversão. Mas a Escritura dá o conselho oposto àqueles que, antes de alcançar este estágio, por inexperiência ou pura tolice empreendem o que jaz além de suas forças; a eles é dito: "Convertei de vossas espadas arados, e de vossas lanças foices" (Joel 3:10). Pois qual é a utilidade da lavoura quando a terra está em guerra, e a produção será aproveitada pelo inimigo e não por aqueles que fizeram o trabalho? Esta é a razão de provavelmente os israelitas, contanto lutavam com várias nações no deserto, não lhes era permitido tomar parte da agricultura, já que, enquanto soldados, isso os prejudicaria. Mas, uma vez que eles estabeleceram a paz com o inimigo,  lhes era permitido engajar-se na lavoura; eles mesmos disseram que até entrarem na terra prometida, não deviam plantar. Compreensivelmente, o acesso à terra prometida deve preceder o plantio; pois quando um homem não alcançou ainda a perfeição e lhe falta estabilidade, as qualidades que ele tenta implantar nos demais não ganharão raízes.

Na vida espiritual, mais do que em qualquer outra coisa, a ordem e seqüência adequadas devem ser observadas desde o início. Os convidados ao Banquete podem não se interessar pelos pratos de entrada e se sentirem mais atraídos pelos que vêm depois, mas eles são obrigados a obedecer a ordem das coisas. Assim como Jacó não se agradou dos olhos tristes de Lia e foi mais atraído pela beleza de Raquel, mas primeiro teve de servir sete anos para ganhar Lia (cf. Genesis 29:15-28). Para se tornar um verdadeiro monge um homem não deve trabalhar de trás para frente, do fim para o início, mas começar do início e assim sim avançar na perfeição. Neste caminho eles próprios receberão o que procuram, e serão capazes de guiar seus discípulos à santidade.

Muitas pessoas, no entanto, sem fazer qualquer esforço ou empreender qualquer progresso na prática da virtude, pequeno ou grande, simplesmente perseguem o status de diretor espiritual, não se dando conta do quão perigoso é isto. Quando outros os impelem ao trabalho de ensinar, eles não recusam; de fato, vagam em ruas escuras, recrutando aqueles que encontram, e prometendo todo tipo de gratificações, como se fizessem um acordo com escravos sobre alimento e vestimenta. Diretores espirituais deste tipo aparecem no público amparados por uma grande turba de assistentes e possuem a pompa exterior de abades, como se representassem um papel numa peça. Assim como não dispensam o serviço de seus discípulos, estes são forçados a atender-lhe os caprichos. eles são como um cocheiro que solta as rédeas e deixam seus cavalos a ir  onde querem. É permitido aos seus discípulos correrem soltos; arrebatados por seus desejos, eles caem em precipícios ou tropeçam em cada obstáculo que surge em seus caminhos, porque não há quem os detenha ou refreie seus impulsos desordenados.

Tais professores deviam notar como Ezequiel censurou aqueles que são indulgentes com os prazeres dos outros. Ao dar forma a todo desejo eles estão guardando para eles mesmos castigos futuros.  "Ai daquelas mulheres que fazem remendos para qualquer punho, diz Ezequiel, 'e colocam véus nas cabeças de pessoas de qualquer idade...para destruir almas por um punhado de cevada e de pão' (Ezequiel 13: 18-19). Estes falsos pregadores estão agindo do mesmo modo, pois eles sustentam suas necessidades corporais com a contribuição de seus discípulos e usam roupas costuradas como se fossem trapos. Por fazer os outros colocarem véus em suas cabeças eles causam vergonha neles, pois os homens devem rezar ou profetizar com a cabeça descoberta (cf. Cor 11:4); eles os tornam efeminados e destroem almas que não podem morrer.

A despeito de agir assim eles deveriam obedecer ao verdadeiro mestre Cristo, e recusar, na medida do possível, a assumir a direção dos outros. Pois Ele diz aos Seus discípulos: "Não sejais chamados de Rabi" (Mateus 23: 8). E se ele admoestou pedro e João e o restante dos apóstolos a evitar tais trabalhos e a considerá-los indignos de tal posição, como pode alguém julgar-se superior a eles e reivindicar para si o ofício que lhes foi barrado? Pois ao dizer "Não sejais chamados de Rabi", Ele não quis dizer que estamos livres a assumir tal ofício contanto que nós rejeitemos o título.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Terceira Centúria sobre o Amor

Terceira Centúria sobre o Amor
São Máximo Confessor.
trad. Rochelle Cysne

1) Um uso inteligente das imagens conceituais e seus objetos físicos correspondentes produz autocontrole, amor e conhecimento espiritual; um uso não inteligente produz licenciosidade, ódio e ignorância.

2) "Preparas uma mesa para mim..." (Salmo 23: 5). Nesta passagem, "mesa" significa a prática das virtudes, pois isto foi preparado por nós pelo Cristo para usar "contra aqueles que nos afligem". O "óleo" ungindo o intelecto é a contemplação das coisas criadas. O "cálice" de Deus é o conhecimento de Deus. Sua "misericórdia" é seu Divino Logos. Pois através da Sua Encarnação o Logos nos persegue "todos os dias" até que Ele ultrapasse todos aqueles que precisam ser salvos, como Ele fez no caso de Paulo (cf. Filipenses 3:12). A "casa" é o reino em que todos os santos habitarão. "Longos dias" significa a vida eterna.

3) Quando usamos mal os poderes da alma seu aspecto ruim nos domina. Por exemplo, o mau uso de nosso poder de inteligência resulta na ignorância e na estupidez; o mau uso de nosso poder incensivo e de nosso desejo produz ódio e licenciosidade. O uso próprio destes poderes produz conhecimento espiritual, julgamento moral, amor e autocontrole. Sendo assim, nada criado e vindo a existência por Deus é ruim.

4) Não é a comida que é ruim e sim a glutonaria, nem a concepção de crianças mas a falta de castidade, não as coisas materiais mas a avareza, não a estima mas a auto estima. Sendo assim, é apenas o maus uso das coisas que é ruim, e este mau uso ocorre quando o intelecto falha em cultivar seus poderes naturais.

5) Entre os demônios, diz o bem aventurado Dionísio (On the Divine Names IV, 23), o mal toma a forma de um medo irracional, um desejo incontrolado pelo intelecto e uma imaginação impetuosa. Mas a irracionalidade, a falta de controle intelectual e a impetuosidade em seres inteligentes são privações da inteligência, intelecção e circunspecção. Houve um tempo, então, quando os demônios possuíam inteligência, intelecto e circunspecção devota. Sendo este o caso, nem mesmo os demônios são maus por natureza, mas eles se tornaram maus pelo mau uso de seus poderes naturais.

6) Algumas das paixões produzem licenciosidade, algumas ódio, enquanto outras produzem tanto dissipação e ódio.

7) Comer demais e glutonaria causam licenciosidade. Avareza e autoestima causa ódio ao seu irmão. O amor de si (filaucia),a mãe de todos os vícios, é a causa de todas estas coisas.

8) O amor de si é um amor apaixonado, irracional amor ao próprio corpo. Seu oposto é o amor ou o autocontrole. Um homem dominado pelo amor de si é dominado por todas as paixões.

9) "Nunca alguém odiou a sua própria carne", diz o Apóstolo (Efésios 5:29), mas ele a disciplina e faz dela sua serva (cf. Cor. 9:27), dando-lhe nada além de roupa e comida (cf. Timótheo 6:8), e assim apenas o que é necessário para a vida. Neste sentido um homem ama sua carne sem apego e a nutre e cuida como uma serva para as coisas divinas, suprindo-a apenas em suas necessidades básicas.

10) Se um homem ama alguém, ele naturalmente faz todo esforço para servir aquela pessoa. Se, então, um homem ama a Deus, ele naturalmente se esforça para se conformar a Sua vontade. Mas se ele ama a carne, ele se esforça para agradar a carne.

11) Amor, autocontrole, contemplação e oração estão de acordo com a vontade de Deus, enquanto glutonaria, licenciosidade e coisas fazem aumentar os agrados à carne. Isto é porque "eles que são da carne não podem se conformar com a vontade de Deus" (Romanos 8:8). Mas "os que são de Cristo crucificaram a carne junto com as paixões e desejos" (Gálatas 5:24).

12) Se o intelecto se inclina a Deus, ele trata o corpo como seu servo e lhe fornece não mais do que o necessário para o sustento da vida. Mas se ele se inclina para a carne, ele se torna escravo das paixões e está sempre pensando em como atender aos seus desejos.

13) Se desejas ser mestre de seus pensamentos, concentre-se nas paixões e você facilmente expulsará os pensamentos que nascem delas para fora de seu intelecto. Com relação a luxúria, por exemplo, jejum e manter-se em vigília, labor e evitar encontrar-se com pessoas. Com relação ao medo e ao ressentimento, ser indiferente à fama, desonra e coisas materiais. Com relação ao rancor, rezar por aqueles que vos ofenderam e você será liberto.

14) Não se compare a homens fraco mas preferencialmente aplique-se a cumprir o mandamento do amor. Pois ao se comparar com os fracos você vai cair no poço da vaidade, mas ao aplicar-se ao mandamento do amor você alcançará a altura da humildade.

15) Se você cumpre totalmente o mandamento do amor para com seu próximo, você não sentirá nenhuma amargura ou ressentimento contra ele, qualquer que tenha sido a ação que ele praticou. Se este não é o caso, então a razão de você lutar contra seu irmão é claramente porque você procura coisas transitórias e as prefere ao mandamento do amor.

16) Não é tanto por causa da necessidade que o ouro tornou-se um objeto de desejo entre os homens, como por causa do poder que ele concede a muitas pessoas de ser indulgente com seus prazeres sensuais.

17) Há três coisas que provocam amor aos bens materiais: autoindulgência, autoestima e falta de fé. Falta de fé é mais perigosa do que as outras duas.

18) A pessoa autoindulgente ama os bens porque eles permitem que ele viva confortavelmente; a pessoa cheia de autoestima ama-o por meio dele ela consegue ter a estima dos outros; a pessoa a quem falta fé ama-o porque teme passar fome, teme a velhice, a doença, ou o exílio, e crê que os bens podem salvá-lo e guardá-lo. Ele prefere depositar confiança em bens do que em Deus, o Criador que é provedor de toda a criação, até mesmo das coisas mínimas viventes.

19) Há quatro tipos de homens que acumulam fortuna: os três já mencionados e o tesoureiro. Claramente, este é o único que o conserva por um bom propósito - a saber, ter sempre meios de acudir as pessoas em suas necessidades básicas.

20) Todos os pensamentos apaixonados ou estimulam o poder desejante da alma, ou atrapalham seu poder incensivo, ou escurecem sua inteligência. É neste sentido que a capacidade do intelecto para a contemplação espiritual e para o êxtase da oração é embotado. E por esta razão um monge, sobretudo o hesicasta, deve prestar atenção a tais pensamentos, procurando e eliminando suas causas. Por exemplo, o poder de desejo da alma é estimulado por pensamentos apaixonados em mulheres. Tais pensamentos são causados pela intemperança no comer e beber, e pela conversa frequente e fiada com as mulheres em questão; e eles são extirpados pela fome, sede, vigília e fuga da sociedade humana. Novamente, o poder incensivo é atrapalhado pelos poderes apaixonados com relação àqueles que nos ofenderam. Isto é causado por autoindulgência, autoestima e amor a coisas materiais. Pois é na conta de tais vícios que o homem dominado pela paixão sente ressentimento, estando frustrado ou do contrário, caindo a fim de obter o que deseja. Estes pensamentos são extirpados quando os vícios que os provoca são rejeitados e anulados pelo amor de Deus.

21) Deus conhece a Si mesmo e Ele conhece as coisas que Ele criou. Os poderes angélicos, também, conhecem a Deus e conhecem as coisas que Ele criou. Os poderes angélicos, também, conhecem Deus e conhecem as coisas que Ele criou. Mas eles não conhecem Deus e as coisas que  Ele criou no mesmo sentido que Deus conhece a Si mesmo e as coisas que Ele criou.

22) Deus conhece a Si mesmo por conhecer sua essência bem aventurada. E as coisas criadas por Ele, Ele as conhece por conhecer Sua Sabedoria, por meio da qual e na qual Ele fez todas as coisas. Mas os poderes angélicos conhecem Deus por participação, ainda que Deus Mesmo transcenda tal participação; e as coisas que Ele criou, eles conhecem por apreender aquilo que pode ser espiritualmente contemplado neles.

23) Apesar do intelecto apreender sua visão das coisas criadas em si mesmo, elas estão em ato fora dele. Este não é o caso com respeito ao conhecimento de Deus das coisas criadas, pois Ele é eterno, infinito e indeterminado, e imprimiu em tudo o que existe seu ser, sua bondade e seu ser eterno.

24) Naturezas dotadas de inteligência e intelecto participam em Deus através de seu ser, através de sua capacidade para a bem aventurança, isto é, pela bondade e sabedoria e por meio da graça que lhes dá o ser eterno. Assim então, é como elas conhecem Deus. Elas conhecem a criação de Deus, conforme dissemos, ao apreender a sabedoria harmoniosa a ser contemplada nela. Esta sabedoria é apreendida pelo intelecto de um modo não material, e não tem nenhuma existência independente de sua própria.

25) Quando Deus trouxe ao ser as naturezas dotadas com inteligência e intelecto, Ele comunicou a elas, em Sua suprema bondade, quatro dos divinos atributos pelos quais Ele sustém, protege e preserva as coisas criadas. Estes atributos são ser, eternidade, bondade e sabedoria. Dos quatro Ele concedeu os dois primeiros, ser e eternidade, para a essência delas, e os dois últimos, bondade e sabedoria, para sua faculdade volitiva, assim que, o que Ele é em sua essência, a criatura pode tornar-se por participação. Esta é a razão de ser dito que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. (Cf. Gênesis 1:26). Ele foi feito à imagem de Deus, já que seu ser é à imagem do ser de Deus (no sentido que, ainda que não sem origem, é, no entanto, sem fim). Ele é feito também à semelhança de Deus, já que ele é bom em semelhança à bondade de Deus, e sábio em semelhança à bondade de Deus, sendo Deus bom e sábio por natureza e o homem pela graça. Toda natureza inteligente é à imagem de Deus, mas apenas o bom e sábio alcança semelhança a Ele.

26) Todos os seres dotados com inteligência e intelecto são ou angélicos ou humanos. Todos os seres angélicos podem ser subdivididos posteriormente em duas categorias morais gerais ou classes, o santo e o maldito - isto é, os poderes sagrados e os demônios impuros. Todos os seres humanos podem também ser divididos em duas categorias morais apenas, o piedoso e o ímpio.

27) Já que Deus é existência absoluta, bondade absoluta e sabedoria absoluta, ou de preferência, para expressar mais claramente, já que Deus está além de todas as coisas, não há nada que se oponha a Ele. Criaturas, por outro lado, todas elas existem por participação e Graça, enquanto que aquelas dotadas com inteligência e intelecto têm também uma capacidade para a bondade e a sabedoria. Neste caso, há opostos. Como oposto à existência existe a não-existência, e como o oposto à capacidade para a bondade e à sabedoria existe o mal e a ignorância. Se é para eles existir eternamente ou não, isso depende de seu Criador. Mas se criaturas inteligentes participarão de Sua Bondade e Sabedoria ou não, isso depende de sua própria vontade.

28) Os antigos filósofos gregos dizem que o ser das coisas criadas coexistiu com Deus desde toda a eternidade e que Deus apenas deu-lhes suas qualidades. Eles dizem que seu ser mesmo não tem oposto, e que a oposição repousa apenas nas qualidades. Mas nós mantemos que apenas a divina essência não tem oposto, já que ela é eterna, infinita e concede eternidade a outras coisas. O ser das coisas criadas, por outro lado, tem não ser como seu oposto. Existir ou não eternamente depende do poder dEle que apenas existe em um sentido substantivo. Mas já que "os dons de Deus são irrevogáveis" (Romanos 11:29), o ser das coisas criadas sempre é e sempre será sustentado pelo poder onipotente dEle, mesmo que tenha, como dissemos, um oposto; pois foi trazido à existência do nada, e se existe ou não depende da Vontade de Deus.

29) Como o mal é uma privação de bem e a ignorância uma privação de conhecimento, assim não-ser é uma privação de ser - não do ser em um sentido substantivo, já que ele não tem qualquer oposto, mas do ser que existe por participação ao ser substantivo. As duas primeiras privações mencionadas dependem da vontade das criaturas; a terceira depende da vontade do Criador, que em Sua bondade quer sempre seres vindo à existência para receber Suas benção.

30) Todas as criaturas são ou dotadas com inteligência e intelecto, e assim possuem uma capacidade para opostos tais como virtude e vício, conhecimento e ignorância; ou então eles são corpos físicos de vários tipos feitos de opostos, isto é, de terra, ar, fogo e água. Os primeiros são completamente incorpóreos e imateriais, embora alguns deles estejam unidos a corpos; os últimos são compostos de matéria e forma.

31) Por natureza falta a todos os corpos capacidade para o movimento; eles recebem movimento ou da alma, ou de algo que é inteligente, ou de algo sem inteligência, ou de algo que é insensato, conforme seja o caso.

32) A alma tem três poderes: primeiro, o poder da nutrição e crescimento; em segundo lugar, o da imaginação e instinto; e em terceiro lugar o da inteligência e do intelecto. As plantas compartilham apenas no primeiro caso destes poderes; os animais compartilham no segundo; os homens compartilham de todos os três. Os dois primeiros poderes são perecíveis; o terceiro é claramente imperecível e imortal.

33) Ao comunicar a iluminação uns aos outros, os poderes angélicos também comunicam ou suas virtudes ou seu conhecimento da natureza humana. Quanto a suas virtudes, eles comunicam uma bondade que imita a bondade de Deus, e através desta bondade eles conferem bençãos neles próprios, ou em outros, ou em seres inferiores, tornando-se assim como Deus. Quanto ao seu conhecimento, eles comunicam ou um conhecimento mais sublime de Deus - pois as Escrituras dizem: "Mas Tu, o Senhor, sois o Altíssimo para sempre" (Salmo 92:8) - ou um conhecimento mais profundo sobre seres corpóreos, ou aquilo que é mais exato sobre seres incorpóreos, ou um saber mais distinto sobre a Providência Divina, ou um conhecimento mais preciso sobre o julgamento divino.

34) Impureza do intelecto consiste, em primeiro lugar, em ter um conhecimento falso; em segundo lugar em ser ignorante de qualquer um dos universais (eu me refiro ao intelecto humano, pois é uma propriedade do intelecto angélico não ser ignorante mesmo dos particulares); em terceiro lugar em ter pensamentos apaixonados e em quarto assentir no pecado.

35) A impureza da alma repousa em não funcionar de acordo com a sua natureza. E é por causa disso que pensamentos apaixonados são produzidos no intelecto. A alma funciona de acordo com a natureza quando seus aspectos passíveis - isto é, seu poder incensivo e seu desejo - permanecem desapegados em face das provocações tanto das coisas e da imagem conceitual destas coisas.

36) Impureza do corpo consiste em cometer em ato o pecado.

37) Quem não é atraído pelas coisas mundanas acalenta tranquilidade. Aquele que não ama nada humano ama todos os homens. E aquele que não leva em conta a ofensa de quem quer que seja ou considera suas faltas, ou leva em consideração seus próprios pensamentos suspeitos, tem conhecimento de Deus e das coisas divinas.

38) É uma grande conquista não ser atraído por coisas. Mas é uma conquista ainda maior permanecer desapegado em face tanto das coisas quanto das imagens conceituais que recebemos delas.

39) Amor e autocontrole mantém o intelecto desapegado em face tanto das coisas quanto das imagens conceituais que nós formamos deles.

40) O intelecto de um homem que goza do amor de Deus não luta contra coisas ou contra imagens conceituais delas. Ele batalha contra paixões que estão ligadas a estas imagens. Ele não luta, por exemplo, contra uma mulher, ou contra um homem que nos ofendeu, ou mesmo contra as imagens que se faz deles; mas luta contra as paixões que estão ligadas a tais imagens.

41) Todo o propósito da luta do monge contra os demônios é separar  as paixões das imagens conceituais. De outro modo, ele não será capaz de olhar para as coisas desapegadamente.

42) Uma coisa, uma imagem conceitual e uma paixão são quase diferentes uma da outra. Por exemplo, um homem, uma mulher, ouro e assim por diante são coisas; uma paixão é uma afecção estúpida ou um ódio para uma dessas coisas. A batalha do monge é consequentemente contra a paixão.

43) Uma imagem conceitual apaixonada é um pensamento composto de paixão e uma imagem conceitual. Se nós separamos a paixão da imagem conceitual, o que permanece é a paixão liberta do pensamento. Nós podemos fazer esta separação por meio do amor espiritual e autocontrole se apenas tivermos vontade.

44)  As virtudes separam o intelecto das paixões; a contemplação espiritual separa-o das paixões livres de imagens conceituais; a oração pura coloca-o na presença do Próprio Deus.

45) As virtudes existem para o conhecimento das criaturas; o conhecimento para o conhecedor; o conhecedor em virtude dAquele que é conhecido através do desconhecimento e que conhece além de todo conhecimento.

46) Deus, pleno além de toda plenitude, trouxe as criaturas à existência não porque Ele tivesse necessidade de qualquer coisa, mas sim para que elas possam participar nEle em proporção à sua capacidade e para que Ele possa se alegrar em Suas obras (cf. Salmo 104: 31) vendo-os alegres e sempre transbordando em seus dons inexauríveis.

47) Há muitas pessoas no mundo que são pobres em espírito, mas não do modo como deveriam ser; há muitos que se lamentam, mas por alguma perda financeira ou pela morte de suas crianças; muitos são gentis, mas com vistas a paixões impuras; muitos estão famintos e sedentos, mas apenas para aproveitar o que não lhes pertence e tirar proveito da injustiça; muitos são misericordiosos, mas com vistas ao corpo e às coisas que servem ao corpo; muitos são puros de coração, mas em virtude da autoestima; muitos são pacifistas mas para fazer a alma submeter-se à carne; muitos são perseguidos, mas como malfeitores; muitos são injuriados, mas por causa de pecados vergonhosos. Apenas são abençoados aqueles que fazem ou sofrem estas coisas por amor a Cristo e para seguir Seu exemplo. Por quê? Porque deles é o Reino dos Céus e eles  verão a Deus (cf. Mateus 5: 3-12). Não é porque eles façam ou sofram estas coisas que eles são abençoados, pois aqueles de quem falamos acima fazem o mesmo; mas é porque eles fazem e sofrem por amor a Cristo e para seguir Seu exemplo.

48) Como foi dito muitas vezes, em tudo o que fazemos Deus examina nosso motivo, para ver se nós estamos fazendo por Ele ou por algum outro propósito. Assim quando desejamos fazer alguma coisa boa, nós não devemos fazê-lo em virtude de popularidade; nós devemos ter Deus como nossa meta, assim que, com nosso olhar sempre fixado nEle, nós podemos fazer tudo por amor a Ele. De outro modo nós nos submetemos a toda sorte de problemas ao realizar o ato e ainda perdemos a recompensa.

49) No momento da oração purifique seu intelecto tanto das imagens conceituais de coisas humanas livres de paixões e da contemplação das criaturas. De outro modo, ao imaginar coisas menores você corre o risco de se esvair dEle que é incomparavelmente maior do que todos os seres criados.

50) Pelo genuíno amor de Deus nós podemos expulsar as paixões. Amor por Deus é isto: escolher a Ele ao invés do mundo, e a alma ao invés da carne, por desprezar as coisas deste mundo e por nos devotarmos constantemente a Ele através do autocontrole, amor, oração, salmodia e assim por diante.

51) Se nós persistentemente nos devotamos a Deus e mantemos uma atenção cuidadosa no aspecto passível da alma, nós não somos mais dirigidos precipitadamente pelas provocações de nossos pensamentos. Pelo contrário, como nós adquirimos um conhecimento mais exato de suas causas e as extirpamos, nós nos tornamos mais discernentes. Neste sentido as palavras seguintes  se aplicam a nós: "Meus olhos também verão meus inimigos, e meus ouvidos ouvirão os perversos que se levantam contra mim" (Cf. Salmo 92:11).

52) Quando você vê que seu intelecto espelha suas imagens conceituais do mundo com reverência e justiça, você pode estar seguro que seu corpo, também, continua a ser puro e sem pecado. Mas quando você vê que seu intelecto é ocupado com pensamentos de pecado, e você não os checa, você pode estar certo de que antes do que você imagina seu corpo, também cairá naqueles pecados.

53) Assim como o mundo do corpo consiste de coisas, assim também o mundo do intelecto consiste de imagens conceituais. E assim como o corpo fornica com o corpo de uma mulher, assim também o intelecto, formando uma pintura de seu próprio corpo, fornica com a imagem conceitual de uma mulher. Pois na mente ele vê a forma de seu próprio corpo tendo relações sexuais com a forma de uma mulher. Similarmente, através da forma de seu próprio corpo, ele mentalmente ataca a forma de alguém que lhe ofendeu. O mesmo é verdadeiro com respeito aos demais pecados. Pois o que o corpo faz no mundo das coisas, o intelecto também o faz no mundo das imagens conceituais.

54) Não se deve ficar assustado ou atônito porque Deus Pai tem dado todos os julgamentos ao Filho (João 5: 22). O Filho ensina-nos, "Não julgueis para não serdes julgados" (Mateus 7:1); "Não condeneis e não sereis condenados" (Lucas 6:37) São Paulo também diz, "Não julgueis nada antes do tempo, até que o Senhor chegue" (1 Cor. 4:5); "Ao julgar o outro você se condena a si mesmo" (Romanos 2:1). Mas os homens desistiram de chorar por seus próprios pecados e tiraram o julgamento do Filho. Eles memsos julgam e condenam uns aos outros como se fossem sem pecado. "O Céu está horrorizado disso" (Jeremias 2:12) e a Terra estremecida, mas os homens em sua obstinação não estão envergonhados.

55) Aquele que se ocupa a si mesmo com os pecados dos outros, ou julga seu irmão sob suspeita, não começou a se arrepender ou se examinar a ponto de descobrir seus próprios pecados, que são verdadeiramente mais pesados que um grande pedaço de chumbo; nem ele sabe porque um homem torna-se pesado de coração quando ele ama a vaidade e persegue a falsidade (Salmo 4:2). Isto é porque, como um tolo que caminha na escuridão, ele não mais cuida de seus próprios pecados mas permite que a imaginação faça morada nos pecados alheios, tanto no caso destes pecados serem reais, quanto no de meramente de serem produtos de nossa própria mente suspeita.

56) Amor próprio, como foi diversas vezes dito, é a causa de todos os pensamentos apaixonados. Pois dele são produzidos os três principais pensamentos de desejo: aqueles da glutonaria, avareza e autoestima. Da glutonaria nasce o pensamento da luxúria; da avareza, o pensamento da ganância; da autoestima o pensamento do orgulho. Todos os restantes -os pensamentos de ira, ressentimento, rancor, indiferença, inveja, maledicência e assim por diante -são consequências de um ou outro destes três. Estas paixões então amarram o intelecto às coisas materiais e o arrastam para a terra, pressionando-o como uma pedra massiva, ainda que por natureza ele seja mais leve e ligeiro que o fogo.

57) A origem de todas as paixões é o amor-próprio; sua consumação é o orgulho. O amor-próprio é um amor estúpido pelo corpo. Aquele que o extirpa, extirpa ao mesmo tempo todas as paixões que vêm dele.

58) Assim como os pais tem especial afeição pelas crianças que são fruto de seus próprios corpos, também o intelecto naturalmente se apega a seus próprios pensamentos. E como a paixão dos pais por suas crianças parece a mais hábil e mais bonita de todas -ainda que ela possa ser a mais ridícula em todo sentido - assim também para um intelecto tolo seus próprios pensamentos parecem os mais inteligentes de todos, apesar de serem completamente degradados. Um homem sábio não olha para seus próprios pensamentos deste modo. É precisamente quando ele se sente convencido que eles são verdadeiros e bons que ele desconfia de seu próprio julgamento. Ele faz com que outros homens sábios julguem seus pensamentos e argumentos - "para que ele não deva correr ou pudesse ter corrido em vão" (Gálatas 2:2) - e deles receba garantia.


59) Quando você superou uma das maiores paixões, como a glutonaria, a luxúria, a ira ou ganância, o pensamento da autoestima imediatamente o toma de assalto. Se você derrota este pensamento, o pensamento de orgulho o sucede.

60) Todas as grandes paixões que dominam a alma movem-se a partir do pensamento de autoestima. Mas mesmo quando todas estas paixões forem derrotadas, elas ainda deixam a autoestima livre para tomar o controle.

61) A autoestima, se é erradicada ou se permanece, gera orgulho. Quando erradicada gera auto-presunção; quando permanece produz jactância.

62) Autoestima é erradicada pela prática oculta das virtudes, orgulho, por atribuir nossas conquistas a Deus.

63) Aquele que foi agraciado com o conhecimento de Deus, e aproveita plenamente os prazeres que dele advém, despreza todos os prazeres produzidos pelo poder desejante da alma.

64) Aquele que deseja coisas terrenas deseja ou comida, ou coisas que satisfaçam seus apetites sexuais, ou fama humana, ou saúde, ou alguma outra coisa que advenha destas. A menos que o intelecto encontre alguma coisa mais nobre para qual ele possa transferir seu desejo, ele não será persuadido a desprezar estas coisas completamente. O conhecimento de Deus e das coisas divinas é incomparavelmente mais nobre que estas coisas terrenas.

65) Aqeueles que desprezam os prazeres sensuais o fazem ou por medo, ou por esperança, ou do conhecimento e amor de Deus.

66) O conhecmento das coisas divinas livre de paixões não persuade o intelecto a desprezar coisas materiais completamente; ele é como o pensamento sem paixões de coisas sensíveis. Logo é possível encontrar muitos homens que tenham muito conhecimento e ainda chafurdem nas paixões da carne como porcos na lama. Por sua diligência eles temporariamente se limpam e atingem conhecimento, mas então eles crescem negligentes. Nisto eles lembram Saul: pois a Saul foi concedido o reino, mas o conduziu indignamente e foi expulso com ira terrível (cf. 1 Samuel 10-15).

67) Assim como um pensamento das coisas humanas livre de paixão não obriga o intelecto a menosprezar as coisas divinas, assim um conhecimento das coisas divinas livre de paixão não o persuade plenamente a desprezar as coisas humanas. Pois neste mundo a verdade existe em sombras e conjecturas. Esta é a razão de porque é necessária uma paixão abençoada do sagrado amor, que ata o intelecto à contemplação espiritual e o persuade a preferir o que é imaterial ao que é material, e o que é inteligível e divino ao que é apreendido pelos sentidos.

68) Se um homem extirpou as paixões e libertou seus pensamentos da paixão, isso não significa necessariamente que seus pensamentos são já orientados em direção ao divino. Pode ser que ele não sinta nenhuma atração passional tanto pelas coisas humanas quanto pelas divinas. Isto ocorre no caso daqueles que meramente vivem a prática ascética sem ainda terem atingido o conhecimento espiritual. Tias homens mantém as paixões na baía ou por medo do castigo ou pela esperança do Reino.

69) "Caminhamos pela fé, não pela vista" (2 Cor. 5:7); e ganhamos conhecimento espiritual através de símbolos, indistintamente como em um espelho (cf. 1 Cor. 13: 12). Assim, nós podemos devotar muito tempo para este tipo de conhecimento, assim que por longo estudo e constante aplicação nós possamos alcançar um estado persistente de contemplação.

70) Se extirpamos as causas das paixões por um curto tempo, e nos ocupamos com contemplação espiritual sem fazer dela nosso único e constante interesse, nós facilmente nos voltamos para as paixões da carne, não lucrando nada de nosso labor espiritual mas apenas conhecimento teórico acoplados a conceitos. O resultado é uma escuridão gradual deste conhecimento mesmo e um completo retornar do intelecto a coisas materiais.

71) A paixão do amor, quando repreensível, ocupa o intelecto com coisas materiais, mas quando corretamente dirigida se une ao divino. Pois o intelecto tende a desenvolver seus poderes entre aquelas coisas para as quais ele devota atenção; e onde ele desenvolve seus poderes, ele dirigirá seu desejo e amor. Isto quer dizer que irá encaminhar estes poderes, ou para o que é divino, inteligível e próprio à sua natureza, ou para paixões e coisas da carne.

72) Deus criou tanto os mundos visível e invisível, e assim Ele obviamente fez tanto o corpo quanto a alma. Se o mundo visível é tão bonito, o que deve parecer o invisível? E se o mundo invisível é superior ao visível, quão superior a ambos é Deus Seu Criador? Se, então, o Criador de tudo o que é bonito é superior a toda a Sua criação, com qual fundamento o intelecto abandona o que é superior a tudo e se ocupa a si mesmo com o que há de pior - eu quero dizer aqui as paixões da carne? Claramente isto acontece porque o intelecto conviveu com estas paixões e cresceu acostumado a elas desde seu nascimento, enquanto que ele não tinha ainda uma experiência perfeita dEle que é superior a tudo e além de todas as coisas. Assim, se nós gradualmente desmamamos o intelecto para fora desta relação pela prática contínua de controlar nossa indulgência nos prazeres e pela persistente meditação nas divinas realidades o intelecto gradualmente se devota mais e mais a estas realidades, reconheceremos sua própria dignidade, e finalmente transferiremos todo seu desejo ao divino.

73) Aquele que fala desapaixonadamente dos pecados de seu irmão, o faz ou para corrigi-lo ou para beneficiar outro. Se ele fala por qualquer outra razão, ou para o próprio irmão ou para outra pessoa, ele fala para abusá-lo ou ridicularizá-lo. Neste caso ele não escapará de ser abandonado por Deus. pelo contrário, ele cairá no mesmo pecado ou em outro, e será censurado e reprovado pelos outros homens, que o porão em vergonha.

74) Não é sempre pela mesma razão que os pecadores cometem o mesmo pecado. As razões variam. Por exemplo, uma coisa é pecar pela força do hábito e outra pecar por ser levado por um impulso repentino. No último caso o homem não deliberadamente escolhe o pecado antes de cometê-lo, ou depois; pelo contrário, ele fica profundamente angustiado da ocorrência do pecado. É muito diferente com o homem que peca pela força do hábito. Antes do ato mesmo ele já estava pecando em pensamento, e depois ele ainda está no mesmo estado de mente.

75) Aquele que cultiva as virtudes para a salvação da autoestima também procura conhecimento espiritual pela mesma razão. Tal homem claramente não faz qualquer coisa para a edificação dos outros. Pelo contrário, ele sempre procura o louvor daqueles que o vêem e escutam. Sua paixão vem à luz quando algumas destas pessoas censura suas ações ou palavras. Isto o angustia enormemente, não porque ele falhou na edificação dos outros - pois este não era seu objetivo - mas porque ele foi humilhado.

76) A presença da paixão da avareza revela-se quando uma pessoa se agrada em receber mas ressente em ter de dar. Tal pessoa não está apta a exercer o ofício de tesoureiro ou administrador de bens.

77) Uma pessoa perdura no sofrimento ou por amor a Deus, ou por esperança de reconhecimento, ou por medo da punição, ou por medo dos homens, ou por causa de sua natureza, ou por prazer, ou por ganho, ou falta de autoestima, ou pela necessidade.

78) Uma coisa é estar entregue a  pensamentos pecaminosos e outra é ser livre de paixões. Frequentemente um homem está entregue a tais pensamentos quando as coisas que despertam suas paixões não estão presentes. Mas as paixões jazem ocultas na alma e vêm à tona quando as próprias coisas estão presentes.  Portanto, deve-se vigiar o intelecto na presença de coisas e deve-se discernir por quais delas se manifesta uma paixão.

79) Um verdadeiro amigo é aquele que em tempos de provação sofre calmamente e imperturbavelmente as aflições, privações e desastres de seu próximo como se elas fossem propriamente suas.

80) Não trate sua consciência com desdém, pois ela sempre lhe avisa do que é o melhor. Ela coloca diante de você a vontade de Deus e dos anjos; ela liberta você das impurezas secretas de seu coração; e quando você partir desta vida ela lhe garantirá o dom da intimidade com Deus.

81) Se você deseja ser uma pessoa de entendimento e moderação, e não ser um escravo da paixão da vaidade, procure continuamente entre as coisas criadas pelo que está oculto ao seu conhecimento. Quando você descobre que há um vasto número de coisas diferentes que escapam ao seu olhar, você irá se maravilhar de sua ignorância e humilhará sua presunção. E quando você vier a conhecer a si mesmo, você entenderá muitas coisas grandes e maravilhosas; pois presumir saber impede-nos de avançar no conhecimento.

82) A pessoa que verdadeiramente deseja ser curada é aquela que não recusa tratamento. Este tratamento consiste de dor e aflição trazidos por vários infortúnios. Aquele que os recusa não percebe o que eles fazem neste mundo ou o que eles ganharão deles quando deixarem esta vida.

83) Autoestima e avareza produzem uma a outra, aquele que está repleto de autoestima adquire riquezas e aquele que é rico torna-se cheio de autoestima. Isto é o que acontece com as pessoas que vivem no mundo. No caso de um monge, se ele renunciou às posses , ele se torna ainda mais cheio de autoestima; mas se ele tem dinheiro, fica envergonhado e esconde-o como alguma coisa indigna daquele que veste o hábito.

84) A marca da autoestima monástica é estar inflado de sua própria virtude e suas consequências. A marca do orgulho monástico é estar vaidoso de suas próprias conquistas, atribuindo-as a si mesmo e não a Deus, e manter os outros em desprezo. A marca da autoestima e orgulho mundanos é estar vaidoso de sua própria beleza, saúde, poder e julgamento moral.

85) As realizações do homem mundano constituem a falta do monge, as realizações do monge constituem a falta do homem mundano. Por exemplo, as realizações do homem mundano são saúde, fama, poder, luxúria, conforto, crianças, e o que deriva destas coisas. Mas o monge é destruído se ele obtém algum deles. Suas realizações são o despojamento total de posses, a rejeição de estima e poder, autocontrole, dificuldade, e tudo o que deriva disto. Se um amante do mundo obtém tudo isto, ele considera isto uma grande calamidade e ele por vezes cai no perigo de matar a si mesmo; algumas pessoas de fato o fizeram.

86) Comida foi criada para nutrição e cura. Aqueles que comem para outros propósitos do que estes dois são consequentemente para ser condenados como autoindulgentes, porque eles abusam dos dons que Deus nos deu para nosso uso. Em todo tipo de abuso há pecado.

 87) Humildade consiste em prece constante combinada a lágrimas e sofrimento. Pois este chamado incessante por Deus nos ajuda a nos prevenir do crescimento tolo de confiar em nossas próprias forças e sabedoria e de nos colocar acima dos demais. Estas são as doenças perigosas da paixão do orgulho.

88) Uma coisa é lutar contra um pensamento isento de paixão de modo que ele não estimulará uma paixão; outra é lutar contra um pensamento apaixonado de modo que não dê assentimento à paixão. Ambas estas duas formas de contra ataque previnem os próprios pensamentos de persistir.

89) Ressentimento está lincado a rancor. Quando o intelecto forma a imagem da face de um irmão com o sentimento, é claro que ele abriga rancor contra  ele. "O caminho do rancor conduz à morte" (Provérbios 12:28), porque "quem quer que abrigue rancor é um transgressor" (Provérbios 21:24).

90) Se você abriga rancor contra alguém, reze por ele e você prevenirá que a paixão seja despertada; pois pelos meios da oração, você separará seu ressentimento do pensamento do erro que ele lhe fez. Quando você tornar-se amoroso e compassivo com relação a ele, você limpará a paixão completamente da sua alma. Se alguém olha para você com rancor, seja agradável a ele, seja humilde e agradável em sua companhia, e você o libertará dessa paixão.

91) Você encontrará dificuldade para checar o ressentimento de um invejoso, pois o que ele inveja em você é para ele seu próprio infortúnio. Você não pode checar a inveja dele exceto escondendo dele as coisas que despertam nele esta paixão. Se estas coisas beneficiam muitos mas o enche de ressentimento, que lado você tomará? Você tem de ajudar a maioria sem, na medida do possível, desconsiderá-lo e sem ser seduzido pela astúcia da própria paixão, pois você está defendendo não a paixão mas o sofredor. Você deve em humildade considerá-lo superior a você e sempre, em todo lugar e em toda questão colocar o interesse  dele acima do seu. Como para sua própria inveja, você será capaz de checar se você se rejubila com o homem de quem você inveje quando ele se alegra, e afligir-se quando ele se aflige, cumprindo assim o preceito de São Paulo, "Alegre-se com aqueles que se alegram, e lamente-se com quem se lamenta" (Romanos 12:15).

92) Nosso intelecto encontra-se entre o anjo e o demônio, cada um dos quais trabalha para seus próprios fins, um encorajando a virtude e o outro o vício. O intelecto tem tanto a autoridade e poder para seguir ou resistir seja o que for que ele deseje.

93) Os poderes angélicos nos impelem para o que é sagrado. Nossos instintos naturais e nossa probidade de intenção nos assiste. Mas as paixões e a pecaminosidade de intenção reforça as provocações dos demônios.

94) Quando o intelecto é puro, algumas vezes o Próprio Deus se aproxima e o educa; e algumas vezes os poderes angélicos, ou a natureza das coisas criadas que ele contempla, sugere-lhe coisas sagradas.

95) Um intelecto que foi agraciado com conhecimento espiritual deve manter suas imagens conceituais livre das paixões, sua contemplação sem vacilar, e seu estado de oração imperturbável. Mas ele não pode sempre guardar estas coisas das intrusões da carne, já que ele é obscurecido pelos estratagemas dos demônios.

96) As coisas que  nos afligem não são sempre as mesmas que nos fazem irritar, as coisas que nos afligem são de longe mais numerosas do que aquelas que nos irritam. Por exemplo, o fato de que algo foi quebrado, ou perdido, ou que uma certa pessoa morreu, apenas pode nos afligir. Mas outras coisas podem tanto afligir-nos e irritar-nos se nos faltar o espírito da divina filosofia.

97) Quando o intelecto dá atenção às imagens conceituais dos objetos físicos, ele é assimilado à configuração de cada imagem. Se ele contempla estes objetos espiritualmente, ele é transformado em vários sentidos segundo aqueles que ele contempla. Mas uma vez que ele se estabeleça em Deus, ele perde forma e configuração ao mesmo tempo, pois ao contemplá-Lo que é simples torna-se ele próprio também simples e completamente preenchido com radiação espiritual.

98) Uma alma é perfeita se seu aspecto passível é totalmente orientado para Deus.

99) Um intelecto perfeito é aquele que pela verdadeira fé e além de todo desconhecimento supremamente conhece o supremamente Incognoscível; e que, ao considerar a totalidade da criação de Deus, recebeu de Deus um conhecimento todo envolvente da providência e julgamento que a governa - obviamente na medida possível ao homem.

100) O tempo tem três divisões. A Fé é coextensiva com todas as três, a esperança com uma e o amor com as duas restantes. Ademais, fé e esperança durarão até certo ponto; mas o amor, unido para além da união com Ele que é mais do que infinito, permanecerá por toda a eternidade, sempre crescendo além de toda a medida. Esta é a razão porque "o maior deles é o amor" (I Cor. 13:13)