Cristo Pantocrator

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

As quatro virtudes da alma

Continuação do Post anterior.
Páginas 100 a 101

As quatro virtudes da alma

Há quatro formas de sabedoria: primeiro, o julgamento moral ou o conhecimento do que pode e do que não pode ser feito, combinado com atenção do intelecto; em segundo lugar, autodomínio, por meio da qual nossa proposta moral é salvaguardada e mantida livre de todos os atos, pensamentos e palavras que não estejam de acordo com Deus; em terceiro lugar, coragem, ou força e paciência no sofrimento, provações e tentações encontradas no caminho espiritual; e quarto justiça, que consiste em manter uma balança própria entre os três primeiros. Estas quatro virtudes gerais surgem dos três poderes da alma da seguinte maneira: da inteligência, ou intelecto, vem do julgamento moral e da justiça, ou discernimento; do poder desejante vem o autodomínio e do poder apetitivo vem a coragem.

Cada virtude repousa entre duas paixões não naturais. O julgamento moral repousa entre a astúcia e a irreflexão; autodomínio, entre obstinação e licenciosidade; a coragem entre a arrogância e a covardia; a justiça entre a super-frugalidade e a ganância. As quatro virtudes constituem uma imagem do homem celeste, enquanto as oito paixões não naturais constituem uma imagem do homem terreno (cf. I Cor. 15:49).

Deus possui um conhecimento perfeito de todas estas coisas, como Ele conhece o passado, o presente e o futuro; e eles são conhecidos até certo ponto por aqueles que através da Graça se tornaram imagem e semelhança de Deus (cf. Genesis 1:26). Mas se alguém afirma que, simplesmente por ouvir acerca destas coisas, ele conhece como deveria, ele é um mentiroso. O intelecto de um homem nunca pode ascender ao céu sem Deus como guia; e não pode falar do que não foi visto, mas deve primeiro ascender a ele e vê-lo. No nível do ouvir dizer, nós devemos falar apenas das coisas que aprendemos das Escrituras, e então com circunspecção, confessando sua fé no Pai do Logos, como coloca São Basílio o Grande, e não imaginando que pelo ouvir dizer se possua conhecimento espiritual, pois isto é ser pior do que um ignorante. Como disse São Máximo, "Pensar que se conhece nos previne de avançar no conhecimento" (Sobre o amor III, 8). São João Crisóstomo aponta que há um ignorante digno de louvor: consiste naquele que reconhece conscientemente que não se sabe nada. Em adição, há uma forma de ignorante que é pior do que qualquer outro: não saber que não se sabe. Similarmente há algo falsamente chamado de conhecimento, o qual ocorre quando, como diz São Paulo, alguém pensa que sabe o que não sabe (cf. I Cor. 8:2)


segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Os sete mandamentos

Continuação do post anterior.
Páginas 93 a 100

Os sete mandamentos


Se queremos ter um bom começo, devemos nos concentrar na prática destas setes formas de disciplina corporal e em nada mais: de outro modo nós cairemos no precipício ou, de preferência, no caos. Tanto no caso dos sete dons do Espírito quanto nas Beatitudes do Senhor, nos é ensinado que se não começamos com temor, nunca ascenderemos ao resto. Pois, como diz Davi, "o temor do Senhor é o início da sabedoria" (Salmo 111:10). Outro profeta inspirado descreve os sete dons como "o espírito de sabedoria e entendimento, o espírito de conselho e fortaleza, o espírito de ciência e devoção, o espírito de temor de Deus" (cf. Isaías 11: 2-3). Nosso Senhor mesmo começa seus ensinamentos falando do temor, pois Ele diz, "Bem aventurados são os pobres de espírito" (Mateus 5:3) ou seja, aqueles que temem a Deus e são inexpressivelmente contritos de alma. Pois o Senhor estabeleceu isso como o mandamento básico, sabendo que sem isto mesmo vivendo no céu será sem proveito, pois assim ainda restará a loucura por meio da qual o demônio, Adão e muitos outros caíram.

Se então, nós desejamos manter o primeiro mandamento - que é, possuir o temor do Senhor - devemos meditar profundamente nas contingências da vida já descritas e nas bençãos incontáveis e sem medida de Deus. Devemos considerar o quanto ele tem feito e continua a fazer por nossa salvação através de coisas visíveis e invisíveis, através de mandamentos e dogmas, ameaças e promessas; como Ele guarda, nutre e nos provê, dando-nos a vida e nos salvando dos inimigos visto e dos não vistos; como pelas orações e intercessões dos santos Ele cura as doenças causadas por nossa própria desordem; como Ele é sempre longânimo sobre nossos pecados, nossa irreverência, nossa delinquência - sobre todas aquelas coisas que fizemos, estamos fazendo e faremos, das quais Sua Graça nos salvou; como Ele é paciente com nossas ações, palavras e pensamentos que provocam a Sua ira; E não apenas como Ele sofre por nós mas ainda nos concede grandes bençãos, agindo diretamente, ou por meio dos anjos, da Escritura, através dos homens justos e dos profetas, apóstolos e mártires, pregadores e dos santos padres.

Mais ainda, não devemos apenas recordar os sofrimentos e lutas dos santos e mártires, mas devemos também refletir com admiração na humilhação de si mesmo de Nosso Senhor Jesus Cristo, o modo como Ele viveu no mundo, Sua Pura Paixão, a Cruz, Sua morte, sepultamento, ressurreição e ascensão,  o advento do Espírito Santo, os milagres indescritíveis que estão sempre acontecendo todos os dias, o paraíso, a coroa da glória, a adoção filial que Ele nos concede, e todas as coisas contidas nas Sagradas Escrituras e muito mais. Se trazemos tudo isso à mente, nos surpreenderemos com a compaixão de Deus, e com temor nos maravilharemos de sua indulgência e paciência. Nós nos afligiremos por conta do que perdeu nossa natureza: demônios, paixões e pecados. Neste sentido nossa alma será preenchida com contrição, pensando todos os males que causamos por nossa maldade e malandragem dos demônios.

Assim Deus nos concede a benção da tristeza interior, que constitui o segundo mandamento. Pois, como diz Cristo, "Bem aventurados os que choram" (Mateus 5:4) - quem se lamenta por si mesmo e também por amor e compaixão pelos demais. Nos tornamos como aquele que chora um morto, por perceber as consequências terríveis das coisas que fizemos antes de nossa morte terão para nós depois dela; e lamentaremos amargamente, das profundezas de nosso coração com inexpressível lamento. As honras do mundo ou desonras não mais nos interessam; nos tornamos indiferentes à própria vida, esquecendo-nos frequentemente de comer por conta da dor de nosso coração e nossa lamentação sem fim.

Neste sentido, a Graça de Deus, nossa mãe universal, nos dará mansidão, assim que começarmos a imitar Cristo. Isto constitui o terceiro mandamento; pois o Senhor diz, "Bem aventurados os mansos" (Mateus 5:5). Assim nos tornamos uma rocha firmemente enraizada, que não sacode com os ventos e tempestades da vida, sempre a mesma, se rica ou pobre, nas comodidades ou dificuldades, na honra ou na desonra. Em suma, a todo momento e o que quer que façamos, nós estaremos conscientes de que todas as coisas, se doces ou amargas, são passageiras, e que esta vida é um caminho que conduz à vida futura. Nós reconheceremos que, quer gostemos ou não, o que acontece acontece; ficar chateado com isso é inútil e ademais nos priva da coroa da paciência e nos mostra revolta contra a vontade de Deus. Pois o que quer que Deus faça é 'plenamente bom e belo' (Gen. 1:31), mesmo se não estamos conscientes disso. Como o Salmo fala: "Ele ensinará o manso como julgar" (Salmo 25:9) ou, preferencialmente, como exercer o discernimento. Assim, mesmo se alguém se torna furioso conosco, nós não estamos em problema; pelo contrário, ficamos felizes porque nos foi dada a oportunidade de exercer e trazer proveito ao nosso entendimento, reconhecendo que não seríamos tentados neste caminho se não houvesse alguma causa para isso. Voluntariamente ou involuntariamente devemos ter ofendido a Deus, ou a um irmão, ou alguém mais, e agora nos está sendo dada a oportunidade de receber perdão por isso. Pois pela tolerância paciente podemos ser agraciado com o perdão de vários pecados. Ademais, se não perdoamos os débitos dos outros, o Pai não nos perdoará nossos débitos (cf. Mateus 6:15). Inclusive, nada nos leva mais rápido ao perdão dos pecados do que esta virtude ou mandamento: "Perdoai, e vos será perdoado" (cf. Mateus 6:14).

É isto então o que percebemos quando imitamos Cristo, crescendo a mansidão pela graça do mandamento. Mas se estamos angustiados com nosso irmão,  este irmão foi tentado pelo inimigo por causa de nossos pecados, e assim ele se torna um remédio para a cura de nossa fraqueza. Toda provação e tentação é permitida por Deus como cura para alguma doença da alma da pessoa. De fato, tais provações não apenas conferem para nós perdão de nossos pecados passados e presentes, mas também agem para antever os pecados ainda não cometidos. Mas isto não é crédito também do demônio, ou da pessoa que tenta, ou da pessoa tentada. O demônio, por ser maleficente, merece nosso ódio, porque ele não tem nenhum interesse em nosso bem estar. A pessoa que nos tenta merece nossa compaixão, não porque nos tenta por amor, mas porque está iludido e oprimido. A pessoa tentada, finalmente, permanece aflita por causa de seus próprios pecados, não em benefício de algo mais. Fosse ele sem pecado - o que é impossível - ele ainda suportaria as aflições na esperança do reconhecimento e sem medo de castigo. Tal é então a situação destes três. Mas Deus, sendo auto-suficiente e dando a cada um o que é necessário para seu proveito, merece principalmente nossa gratidão, já que Ele pacientemente suporta tanto os demônios quanto a perversão dos homens, e ainda outorga Suas bençãos sob estes que se arrependem tanto antes quanto depois de pecarem.

Assim, a pessoa que foi agraciada com a benção de manter o terceiro mandamento, e que deste modo adquiriu plenitude de discernimento, não mais será enganada consciente ou inconscientemente. De fato, tendo recebido a graça da humildade, ela se reconhecerá a si mesma como nada. Pois a mansidão é a substância da humildade, e humildade é a porta que conduz ao desapego. Pelo desapego um homem entra no amor perfeito inalterável; pois ele entende sua própria natureza - o que foi antes do nascimento e o que será depois da morte. Pois a vida do homem é ligeira, odor de curta duração, mais vil do que de outras criaturas. Pois nenhum ser criado, animado ou inanimado, subverteu a vontade de Deus, exceto o homem e ainda que carregado de benção infinita, irrita Deus.

Esta é a razão de ter sido dado ao homem o quarto mandamento, que é o desejo de adquirir virtudes. "Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça" (Mateus 5: 6). Ele se transforma em alguém que tem fome e sede de toda justiça, isto é, tanto das virtudes corporais quanto pelas virtudes morais da alma. Aquele que provou a doçura dos mandamentos, e percebe que eles gradualmente o conduzem à imitação de Cristo, deseja adquiri-los todos, e como resultado ele desdenha até mesmo a morte por seu amor. Vislumbrando os mistérios do Deus escondido nas Sagradas Escrituras, ele está sedento em compreendê-los plenamente; e quanto mais conhecimento ele ganha, mais ele tem sede, queimando como se bebesse chama. E como o Divino não pode ser compreendido plenamente por ninguém, ele continua sedento para sempre.

O que saúde e doença são para  o corpo, virtude e perversão são para a alma, e conhecimento e ignorância são para o intelecto. Quanto maior devoção nossa para a prática das virtudes, mais nosso intelecto é iluminado pelo conhecimento. É neste sentido que nós somos considerados dignos de misericórdia, ou seja, por meio do quinto mandamento: "bem aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia" (Mateus 5:7). A pessoa misericordiosa é aquela que dá aos outros o que ela mesma recebeu de Deus, seja dinheiro, comida, ou fortaleza, ou uma palavra de  ajuda, uma oração, ou alguma outra coisa que possa expressar sua compaixão para com aqueles que estão em necessidade. Ao mesmo tempo ela se considera uma devedora, já que ele recebeu mais do que pode dar. Pela Graça de Cristo, tanto no mundo presente quanto no porvir, antes de toda a criação essa pessoa é chamada de misericordiosa, assim como Deus é chamado de Misericordioso (cf. Lucas 6:36). Através de seu irmão, é o próprio Deus que necessita dela, e neste sentido Deus tornou-se seu devedor. Ainda que seu irmão necessitado possa viver sem que ela lhe dê o que necessita, ela própria não pode nem viver nem ser salva se não faz o que pode para mostrar misericórdia. Se ela não deseja mostrar misericórdia de qualquer tipo, como pode Deus mostrar misericórdia para com ela? Tendo estas e muitas outras coisas na mente, a pessoa a quem é concedido guardar os mandamentos não apenas dá suas posses mas mesmo sua vida por seu próximo. Esta é a perfeita misericórdia; pois, assim como Cristo suportou a morte em nosso benefício, dando a todos um exemplo e um modelo, assim nós devemos morrer pelos outros, e não apenas por nossos amigos, mas por nossos inimigos também, se a ocasião pedir isto de nós.

Nem é necessário, obviamente, ter posses para mostrar misericórdia. Posses, preferivelmente, são uma grande fraqueza. De fato, é melhor não ter nada a dar e ainda assim estar cheio de simpatia por todos. E se nós temos alguma coisa a dar para aqueles em necessidade, nós devemos, nós mesmos nos desapegarmos das coisas desta vida, e ainda nos sentirmos plenamente envolvidos com nossos companheiros. Nem devemos, em nossa arrogância, pretendermos ensinar ensinar os outros quando ainda não somos capazes de ensinar pelo exemplo; ainda que possamos usar a desculpa de estar ajudando almas em perigo, a verdade é que somos ainda mais fracos do que aqueles a quem ousamos auxiliar. Pois toda ação deve ser feita no tempo certo e com discernimento, para que não se torne inoportuna nem prejudicial. Ajudar alguém na fraqueza é sempre melhor, assim como dar todos os bens é de longe superior a dar esmolas.

É pelo desapego que alguém está capacitado a cumprir o sexto mandamento: "bem aventurados os puros de coração" (Mateus 5:8). Os puro de coração são aqueles que realizaram todas as virtudes pela reflexão e pela devoção e chegaram a ver a verdadeira natureza das coisas. Neste sentido, eles encontram paz em seus pensamentos. Pois, como o sétimo mandamento coloca, "bem aventurados são os pacificadores" (Mateus 5:9), isto é, aqueles que têm alma e corpo em paz, submetendo a carne ao espírito, de modo que a carne não se insurja contra o espírito (cf. Gálatas 5:17). Como alternativa, a graça do Espírito Santo reina em suas almas e o conduz onde quer, dando conhecimento divino que capacita o homem a suportar a perseguição, difamação e maus tratos, "por causa da justiça" (Mateus 5:10), regozijando-se porque "será grande sua recompensa no céu" (Mateus 5:12).

Todas as bem aventuranças podem fazer do homem um deus pela graça; ele se torna manso, nostálgico por justiça, caritativo, desapegado, pacificador, e suportando toda dor com alegria, por amor a Deus e aos seus semelhantes. Pois as Bem Aventuranças são dons de Deus e nós devemos agradecer a Ele grandemente por elas e pelas recompensas prometidas: o reino dos céus, a renovação espiritual deste mundo, a plenitude da benção de Deus e todas as misericórdias, Sua manifestação quando contemplamos os mistérios ocultos encontrados nas Sagradas Escrituras e em todas as coisas criadas e a grande recompensa no céu (cf. Mateus, 5:12). Pois se nós aprendermos enquanto estamos na terra a imitar a Cristo e receber a benção inerente a cada mandamento, nós seremos agraciados com o supremo bem e a meta última de nosso desejo. Como diz o apóstolo, Deus, que habita uma luz inacessível, é solitário em sua bem aventurança (cf. Timóteo 6: 15-16). Nós, de nossa parte, temos o dever de manter os mandamentos – ou, de preferência, de ser guardados por ele; pois por eles Deus em sua compaixão dará ao crente o prêmio tanto neste mundo como no que há de vir.
Quando por doce tristeza interior tudo isso tiver sido consumado, então o intelecto encontrará alívio para as paixões; e vertendo sobre os pecados muitas lágrimas amargas, se reconciliará a Deus. Ele é crucificado com Cristo espiritualmente pela prática moral, isto é, por guardar os mandamentos e os cinco sentidos, para que assim não realizem nada contrário à sua natureza. Restringindo impulsos irracionais, o intelecto começa a refrear as paixões de ira e desejo que os envolvem. Algumas vezes ele ameniza a ira tempestuosa com a mansidão do desejo; em outras vezes ele acalma o desejo com a severidade da ira. Então, caindo em si, o intelecto reconhece sua própria dignidade - para ser mestre de si mesmo- e é capaz de ver as coisas como elas são verdadeiramente; pois seus olhos, tornados cegos pelo demônio, através da tirania das paixões, é aberto. Então o homem é agraciado com a felicidade de ser queimado espiritualmente com Cristo, assim que ele se liberta das coisas deste mundo e não é mais cativo da beleza exterior. Ele olha ouro e prata como pedras preciosas e ele sabe que como outras coisas inanimadas como a pedra e a madeira elas são terrenas, e que também o homem, depois da morte é um punhado de poeira e mofo no túmulo. Olhando todas as alegrias desta vida como nada, ele olha para sua alteração contínua com o discernimento que vem de seu conhecimento espiritual. Alegremente ele morre para o mundo, e o mundo se torna morto para ele: ele não tem mais sentimentos violentos dentro dele, mas apenas desapego e mansidão.

Assim, em virtude da pureza de sua alma, ele é encontrado digno de ser ressuscitado com Cristo espiritualmente, e recebe a força para olhar sem paixão a beleza exterior das coisas visíveis e louvar ao Criador de todas elas.  Contemplando nas coisas visíveis o poder de Deus e a providência, Sua bondade e sabedoria, como diz São Paulo (cf. Romanos 1: 20-21) e percebendo os mistérios ocultos nas Divinas Escrituras, é dada a seu intelecto a graça de ascender com Cristo pela contemplação das realidades inteligíveis, isto é, pelo conhecimento dos poderes inteligíveis. Percebendo, depois de lágrimas de entendimento e gozo, o invisível através do visível (cf. Romanos 1; 20) e o eterno através do transitório, ele percebe que este é um mundo efêmero, que é um lugar de exílio e castigo para aqueles que transgrediram os mandamentos de Deus e quão belas, tão mais belas deverão ser as bençãos "Que Deus preparou para aqueles que O amam" (I Cor. 2: 9). E se estas bençãos estão além de toda nossa concepção, quanto mais deve estar o Deus que criou todas as coisas do nada.  

Se você se desligar todas as outras atividades e dar-se inteiramente ao cultivo das virtudes de alma e corpo, que é o que os padres chamam de devoção religiosa; e se você desconsiderar qualquer sonho ou pensamento privado não confirmado pela Escritura, e rejeitar toda companhia inútil, não escutando ou lendo qualquer coisa infrutífera, e especialmente qualquer coisa que envolva heresia, então as lágrimas de gozo e entendimento copiosamente do fundo se derramarão e você se banhará de plenitude. Neste sentido você atingirá outra forma de oração, a forma da pura oração, própria ao contemplativo. Pois assim como se tem uma forma de leitura, uma forma de lágrima e oração, agora temos outra. Já que seu intelecto se moveu para a esfera da contemplação espiritual, deve-se ler agora todas as partes da Escritura, não mais sentindo dificuldade nas passagens mais obscuras, como é o caso daqueles que ainda estão no início da prática ascética, que são fracos em sua ignorância.

Em sua luta persistente na prática das virtudes de corpo e alma, se é crucificado com Cristo e queimado com ele pelo conhecimento das coisas criadas, tanto conhecendo suas naturezas quanto as mudanças que sofrem; e se ressuscita com Ele através do desapego e pelo conhecimento dos mistérios de Deus inerentes no mundo visível. Como resultado deste conhecimento ascende-se com Cristo ao mundo transcendente através do conhecimento das realidades inteligíveis e dos mistérios ocultos nas divinas Escrituras. Move-se do medo para a devoção religiosa, de onde brota o conhecimento espiritual; deste conhecimento nasce o julgamento, isto é, o discernimento; do discernimento vem a força que conduz ao entendimento, do qual germina a sabedoria.

Ao passar por todos estes níveis de prática e contemplação garante-se a pura e perfeita oração, firmada em nós pela paz e amor de Deus e pela morada do Espírito Santo. Isto é o que significa dizer, 'Ganhar a posse de Deus em si mesmo'; e, como disse São João Crisóstomo, esta manifestação e habitação de Deus é percebida quando seu corpo e alma tornam-se o quanto possível sem pecado, como aquele de Cristo; e quando você o tem, em virtude de Cristo,o  intelecto apreende, pela graça e sabedoria do Espírito Santo, o conhecimento das coisas tanto humanas quanto divinas. 

domingo, 20 de janeiro de 2013

As sete formas de disciplina corporal

Essa postagem é continuação da postagem anterior (pags. 89 a 93). Como o próprio São Pedro de Damasco separa esse ítem em um tópico, resolvi, como já referido anteriormente, postar cada ítem de modo independente.


As sete formas de disciplina corporal 

A primeira destas formas de disciplina consiste na quietude (hesychia), ou na vida sem distrações, longe dos cuidados mundanos. Ao nos distanciarmos da sociedade humana e da distração, nós escapamos do tumulto e daquele que "anda ao nosso redor como um leão, procurando a quem devorar" (1 Pedro 5:8) por meio de conversa fiada e das preocupações da vida. A despeito disso, temos apenas um interesse: fazer a vontade de Deus e preparar nossa alma para que ela não seja condenada quando morrermos; e com completa atenção aprender sobre as ciladas dos demônios e sobre nossas próprias faltas que, sendo mais numerosas que as areias do mar e como pó de tão finas, passam desapercebidas da maioria das pessoas. Mesmo em luto, nos afligimos com questões humanas mas somos confortados por Deus. Nossa gratidão nos encoraja, porque chegamos a ver o que ninguém que vive fora da cela jamais teve a esperança de perceber. Ao reconhecermos nossa própria fraqueza e o poder de Deus, estamos repletos de medo e esperança, de modo que não caímos por nossa própria ignorância por excesso de confiança em nós, e quando algum infortúnio nos acomete, não caímos em desespero porque temos esquecido a compaixão de Deus. 

A segunda forma de disciplina corporal consiste em jejum moderado. Nós devemos comer uma vez por dia e não chegar ao ponto da saciedade. Nós devemos comer um tipo de comida simples e acessível - se possível, um tipo de comida que não saboreamos particularmente. Deste modo, vencemos a gula, a ganância e o desejo, e vivemos sem distração. Mas nós não devemos recusar qualquer tipo de comida, para que nós erroneamente rejeitemos coisas que, sendo criadas por Deus, são "completamente boas e belas (kalos)" (Gênesis 1:31). Nem devemos engolir tudo de uma vez, com indulgência e sem restrição; mas a cada dia devemos comer um tipo de coisa com auto-controle. Deevemos usar todas as coisas para a glória de Deus, e não devemos recusar qualquer coisa no fundamento de que seja mal, como fazem os malditos hereges. Deevemos beber vinho quando apropriado: em idade avançada, doença e frio, ele é de muita ajuda, mas deve ser bebido apenas em pequenas quantidades. Quando somos jovens e de boa saúde, e se o tempo é quente, água é melhor, ainda que devamos bebê-la o mínimo possível. Pois a sede é a melhor de todas as disciplinas corporais.   

A terceira forma de disciplina consiste nas vigílias moderadas. Deevemos dormir metade da noite e a outra metade devemos devotar à recitação dos salmos, à oração e ao lamento lacrimoso. Através desse criterioso jejum e vigília o corpo se tornará flexível para a alma, saudável e pronto para todo trabalho, enquanto a alma ganhará em fortaleza e iluminação, como veremos, e fará o que é certo.

A quarta forma de disciplina corporal consiste na recitação dos salmos - isto é, na oração expressa de maneira corpórea por meio de salmos e prostrações. Isto ajuda a bílis do corpo e torna humilde a alma, de maneira que nosso inimigos, os demônios, possam sair correndo e os nossos aliados, os anjos possam chegar e possamos conhecer de onde vem a ajuda. De outro modo, na ignorância, nós crescemos arrogantes, pensando que isso é devido a nós mesmos. Se isso acontece, somos abandonados por Deus, para que possamos conhecer nossa própria fraqueza.  

A quinta forma de disciplina consiste na oração espiritual, oração que é oferecida pelo intelecto e que liberta de todos os pensamentos. Durante tal oração o intelecto se concentra nas palavras recitadas e inexprimivelmente contrito, humilha-se diante de Deus, pedindo apenas que Sua vontade se realize em todas as atividades e obras. Não prestar atenção em qualquer pensamento, forma, cor, luz, fogo, ou qualquer coisa deste tipo; mas, consciente de que se é observado por Deus e comunicando-se com Ele apenas, libertar-se de forma, cor e figura. Tal oração pura é apropriada para aqueles ainda engajados em práticas ascéticas; para o contemplativo há ainda formas superiores de oração. 

A sexta forma de disciplina consiste na leitura dos escritos e da biografia dos padres, não prestando atenção às doutrinas estranhas, ou a outras pesoas, em especial aos heréticos.  Neste sentido, aprendemos das Divinas Escrituras e da discriminação dos padres como vencer as paixões e adquirir virtude. Nossos intelectos serão plenificados com pensamentos do Espírito Santo, e esqueceremos as palavras e atitudes indecorosas às quais dávamos atenção antes de nos tornarmos monges. Mais ainda, por meio de profunda comunhão na oração e na leitura silenciosa, seremos capazes de compreender significados preciosos; pois a oração é ajudada pela leitura tranquila, e a leitura é ajudada pela pura oração, já que assim prestamos atenção ao que está sendo dito e não lemos e recitamos sem zelo. É verdadeiro, porém, que não podemos propriamente entender a plena significação do que lemos por causa da escuridão induzida pelas paixões; nossa presunção frequentemente nos extravia, especialmente quando nós contamos com a sabedoria deste mundo que julgamos possuir, e que não percebe que precisamos de conhecimento baseado na experiência para entender tais coisas, e que não basta obter conhecimento de Deus pela mera leitura e ouvir dizer. Pois leitura e ouvir dizer são uma coisa, experiência é outra. Ninguém pode se tornar um artífice pelo mero ouvir dizer: tem de praticar e observar, e mesmo cometer numerosos erros, e ser corrigido por aqueles com experiência, assim que por meio de longa perseverança e pela eliminação dos próprios desejos, se torne eventualmente mestre na arte. De modo similar, o conhecimento espiritual não é adquirido simplesmente mediante estudo, mas é dado por Deus através da graça ao homem humilde. Que uma pessoa na leitura das Escrituras possa pensar que entende parcialmente seu significado não precisa causar surpresa, especialmente se tal pessoa está engajada na prática ascética. Mas ela não possui o conhecimento de Deus; ela simplesmente ouve as palavras de quem posui tal conhecimento. Escritores como os profetas frequentemente tinham posse íntima do divino conhecimento, mas os escritores ordinários não possuem. Isso acontece no meu próprio caso: eu recolhi material das Sagradas Escrituras, mas não fui julgado digno de aprender isso diretamente do Espírito Santo; eu tive de aprender apenas daqueles que aprenderam diretamente do Espírito Santo. É como aprender sobre uma pessoa ou uma cidade a partir daqueles que as viram. 

A sétima forma de disciplina corporal consiste em perguntar àqueles com experiência sobre todos os nossos pensamentos e ações, no caso de nos desviarmos por conta de nossa inexperiência e auto-satisfação, pensando e fazendo uma coisa e depois outra, e assim nos tornarmos presunçosos, imaginado que conhecemos como deveríamos, ainda que não saibamos nada, como diz São Paulo (cf. I Cor 8: 2).

Em adição à prática das sete disciplinas corporais, devemos pacientemente suportar tudo que Deus permite que nos aconteça para que assim possamos aprender e ganhar experiência e conhecimento de nossa fraqueza. Não devemos nem ousar demais nem cair no desespero, o que quer que nos aconteça, se coisa boa ou má. Nós devemos repudiar todo sonho e toda palavra ou ação inútil, e devemos sempre meditar no nome de Deus, a todo momento, em todo lugar, em tudo o que fizermos, como algo mais precioso que o próprio respirar. E devemos sinceramente nos humilhar diante de Deus, retirando do intelecto todo pensamento mundano, procurando apenas que a vontade de Deus seja feita. Então o intelecto perceberá que suas faltas são como as areias do mar. Este é o início da iluminação da alma e sinal de sua saúde: a alma se torna contrita e o coração humilde, e verdadeiramente se reconhece como a menor das coisas. Então começamos a entender as bençãos de Deus, se particulares ou abrangentes, de que fala as Sagradas Escrituras; e começamos a entender também nossas próprias ofensas. Começamos a guardar todos os mandamentos, do primeiro ao último, plenamente conscientes do que estamos fazendo. Pois o Senhor os estabeleceu como uma escada, e nós não podemos pular um degrau e ir para o próximo: como passos, nós devemos ir gradualmente do primeiro ao segundo, do segundo ao terceiro e assim por diante. No final, eles farão do homem um deus, através da graça DAquele que deu os mandamentos para aqueles que escolheram guardá-los.   

  

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Um tesouro de conhecimento divino

O texto que postarei agora é de São Pedro de Damasco. A edição da Philokalia que eu me sirvo é a inglesa (London, Faber and Faber, 1984, first edition, III volume, pag. 70 a 207).
Devido a amplitude do texto, vou postar aqui a Introdução ao texto. Cada novo tópico do Tesouro postarei em nova postagem, para assim facilitar a vida dos leitores. Isso porque o texto é didivido em muitos tópicos e é perfeitamente possível a leitura de um independente de outro, tal como ocorreu com o texto das doenças espirituais de São João Cassiano.

"Os trabalhos de São Pedro de Damasco ocupam mais espaço na Filocalia que qualquer outro, perdendo apenas para São Máximo Confessor. Pouco se sabe da vida e identidade do autor, a não ser por aquilo que ele próprio escreveu. São Nicodemos o identifica com certo bispo Pedro Hieromartir, comemorado dia 9 de fevereiro, que sofreu em defesa dos santos ícones em meados do século oitavo: sua língua foi cortada e ele morreu no exílio no Sul da Arábia. No entanto, é provável que o autor do texto da Filocalia seja outro Pedro, já que este autor cita Simeão Metaphrastis, que morreu no décimo século.  Parece mais provável que ele seja do século XI ou mesmo XII; ele é definitivamente anterior à controvérsia hesicasta. Apesar de ter vivido um período de agravamento entre a Ortodoxia e Roma, ele nunca alude a isto. (...)

Ele é evidentemente um monge, escrevendo para outros monges. Ele fala de três tipos de monasticismo - a obediência corporal' em uma comunidade plenamente organizada, a vida eremita, e o caminho intermediário ou semi-eremita, com dois ou três monges perseguindo uma vida de silêncio. Talvez tenha sido esta a forma de monasticismo que ele mesmo seguiu. O conteúdo de seu trabalho confirma isto: ele fala pouco sobre os aspectos comunitários ou sociais da vocação monástica, pouco sobre a hospitalidade e os serviços litúrgicos. Ele se interessa com a ascese pessoal e a oração individual hesicasta; e ele não encara a vida de alguém que é completamente solitário, já que frequentemente menciona os "irmãos". (...)

Como é de se esperar, o trabalho de São Pedro não é sistemático. Apesar dele fazer uso de vários esquemas gerais - as quatro virtudes cardeais, os oito pensamentos demoníacos, as sete ações corporais e os oito estágios da contemplação - há constantes repetições, digressões e mudanças de temas. (...)

Em seus ensinamentos espirituais, São Pedro é moderado. Ainda que escreva para monges, ele insiste que a salvação e o conhecimento espiritual estão no interior de cada um e que a oração contínua é possível em todas as situações sem exceção. Ainda que enfatize a necessidade do esforço ascético, ele nunca subestima a extrema importância da ajuda divina. Tudo o que temos é um dom da Divina Graça. Lágrimas, compunção, dor são frequentemente mencionados, especialmente nos oito primeiros estágios da contemplação; mas a nota predominante é de esperança, e ele tem muito a dizer sobre a finalidade universal do amor de Deus e a liberdade soberana da vontade humana" (Philokalia, Opus Cit, pags. 70 a 72).

Um tesouro de conhecimento divino
Introdução

Por conta da Graça de Deus foi-me concedido muitos grandes dons, ainda que eu não tenha feito nada de bom por mim mesmo, e assim acabei temendo que por minha preguiça e indolência eu esquecesse Suas bençãos - bem como minhas próprias falhas e pecados - e assim não Lhe rendesse graças ou mostrasse minha gratidão de alguma forma. Deste modo, escrevi este tratado como forma de repreender minha alma infeliz, de ilustrar o que veio a mim através da vida e obra dos santos padres, citando-os pelo nome, para que isso me sirva como um lembrete de suas palavras, mesmo que minha lembrança seja incompleta.

Como eu mesmo não possuo nem nunca possuí qualquer livro, eu os tenho pego emprestado com alguns amigos devotos, que também me ajudam em minhas necessidades físicas; e depois de passar por estes livros com muito cuidado, por amor a Deus, os tenho devolvido aos seus proprietários. Estes livros incluem antes de tudo o Antigo e Novo Testamento, isto é, o Pentateuco, o Saltério, os quatro livros dos Reis, os seis livros da Sabedoria, os Profetas, as Crônicas, os Atos dos Apóstolos, os Santos Evangelhos e os comentários de todos estes; e então todos os escritos dos grandes padres e mestres - Dionísio, Atanásio, Basílio, Gregório o Teólogo, João Crisóstomo, Gregório de Nissa, Antônio, Arsênio, Macário, Nilo, Efrém, Isaac, Marcos, João de Damasco, João Clímaco, Máximo, Doroteu, Filimon, como também as vidas e ditos de todos os santos.

Eu percorri por todos eles acuradamente e diligentemente, tentando descobrir a raiz da destruição do homem e a salvação, e quais de suas ações e práticas lhe trazem ou não a salvação. Eu quis encontrar o que todo mundo busca, e como as pessoas serviam a Deus no passado, e ainda O servem nos dias de hoje, na riqueza ou na pobreza, vivendo entre muitos pecadores ou na solidão, no casamento ou no celibato: como, simplesmente, em toda circunstância e atividade encontramos vida ou morte, salvação ou destruição. Mesmo entre nós, monges, há diferentes situações: obediência ao pai espiritual em todas as matérias referentes ao corpo ou à alma; silêncio que purifica a alma; aconselhamento espiritual no lugar da obediência; o ofício de abade ou de bispo. Em cada uma destas situações, alguns encontram a salvação e outros perecem.

Isto em si mesmo me deixava atônito; mas eu estava atônito também com a queda dos primeiros anjos no céu, imateriais por natureza, vestidos de sabedoria e de todas as virtudes, que subitamente tornaram-se demônios, enegrecidos e ignorantes, o princípio e fim de todo mal e malícia. E então houve Adão, que gozou de muita  honra e de muitas bençãos, tal era sua familiaridade com Deus, que foi adornado com sabedoria e virtude, sozinho no paraíso com Eva: ele subitamente tornou-se um exilado, cheio de paixões, mortal, forçado ao labor com suor e aflição. Dele brotou os únicos dois irmãos no mundo, Caim e Abel; e entre eles triunfou a inveja e o engano, e estes deram nascimento ao assassinato, maldição e terror. Eu estava atônito também pelos seus descendentes, cujos pecados foram tantos que eles provocaram o dilúvio; e então Deus em Sua compaixão salvou alguns na arca, um deles - Canaã - foi amaldiçoado, ainda que tivesse sido seu pai Cão que tivesse pecado: e para assim não revogar  a benção de Deus, o justo Noé amaldiçoou o filho no lugar do pai (cf. Gênesis 9: 22-27). Então houve a torre de Babel, o povo de Sodoma, os Israelitas, Salomão, os Ninivitas, Geazi, Judas e todos aqueles que foram dotados com bençãos e mesmo assim retornaram ao pecado.

Eu também estava atônito no modo como Deus, que é bom além de toda a bondade e pleno de compaixão, permite todos os muitos e variados tipo de aflição e provação no mundo. Alguns Ele permite como  sofrimento que conduz ao arrependimento. Estes incluem fome, sede, dor, privação do que é necessário à vida, abstinência do prazer, o desperdício do corpo por meio do asceticismo, vigílias, labores, fadiga, prolíferas lágrimas amargas, angústia, medo da morte, exame de consciência, medo de ser chamado a prestar contas, de viver no inferno com os demônios, o temível dia do juízo, a ignomínia que está prestes a cair sobre o mundo inteiro, o terror, a busca amarga e a avaliação dos atos de cada um, palavras e pensamentos, ameaças e a ira; e em adição a tudo isso, as várias eras de punição, o lamento inútil e as lágrimas incessantes; as trevas do desamparo, o medo, a dor, o exílio, o desalento, a opressão, o estrangulamento da alma neste mundo e no próximo. E então há ainda todos estes perigos a serem enfrentados neste mundo: naufrágios, doenças de todo tipo,  relâmpagos, trovões, granizo, terremoto, fome, maremotos, mortes intempestivas - todas as coisas dolorosas que Deus permite que nos aconteçam contra  nossa vontade.

Outras coisas não são desejadas por Deus mas por nós mesmos ou pelos demônios. Estas incluem batalhas, paixões, toda série de pecados da loucura ao desespero e a destruição final, das quais falará nosso tratado em seguida; o ataque de demônios, guerras, tirania das paixões, negligências, desarticulação e vicissitudes na vida, temor, calúnia e todas as aflições que nós, por nossa própria vontade, transmitimos uns aos outros contra a vontade de Deus. Novamente estava alarmado como, por assalto de tais demônios, ainda assim muitos conseguissem ser salvos, e que nada era capaz de deter este fato. E por outro lado também, muitos pereceram contra a vontade de Deus.

Quando, de meu estudo laborioso das Escrituras, eu me tornei consciente de todas estas coisas, e mais ainda, minha alma foi destruída, senti-me tão impotente quanto água derramada. Eu não compreendi plenamente o significado daquilo que li; de fato, tivesse eu compreendido, não poderia permanecer nesta  vida, cheio de pecados e desobediência a Deus tal como me encontrava, pois é exatamente isso o que produz todos os males deste mundo e do vindouro. Não obstante, por meio da Graça de Deus, eu tive as respostas  que procurava, e vi, de minha leitura dos santos padres, que temos de fazer certas distinções.

Primeiro, nós devemos reconhecer que o início de todo o desenvolvimento espiritual é o conhecimento natural dado por Deus, isso vem quer através da Escritura, quer do agir humano, ou por meio do anjo que é dado no batismo divino para proteger a alma de cada crente, atuando como sua consciência e lembrando-o dos mandamentos divinos de Cristo. Se a pessoa batizada guarda estes mandamentos, a graça do Espírito Santo é preservada Nela. 

Então, juntamente com o conhecimento, há nossa capacidade para escolher. Este é o início de nossa salvação; por nossa livre escolha nós abandonamos nossos próprios desejos e pensamentos e fazemos o que Deus deseja e pensa. Se temos sucesso ao fazer isso, não há objeto, nem atividade ou lugar em toda a criação que possa nos prevenir de nos tornarmos o que Deus desde o início desejou que fôssemos: isto quer dizer, de acordo com Sua imagem e semelhança, deuses por adoção através da graça, desapegados, justos, bons e sábios, ainda que rico ou pobre, casado ou celibatário, em autoridade e livre ou sob a obediência e escravidão _ em suma, qualquer que seja a nossa época, lugar, ou atividade. Isto é porque, antes da lei, sob a lei e sob a graça, havia muitos homens justos _ homens que preferiram o conhecimento de deus e Sua vontade a seus próprios pensamentos e desejos. Ainda que houvesse também muitos que nas mesmas circunstâncias e tempos tenham perecido, por terem preferido seus próprios pensamentos e desejos àqueles de Deus.

É esta então a pintura geral. Mas atividades e situações variam, e alguém necessita adquirir discernimento, ou pela humildade dada por Deus ou pelos questionamentos daqueles que possuem os dons do discernimento. Pois sem discernimento nada do que venha acontecer será bom, mesmo se nós em nossa ignorância pensamos que seja. Mas quando por nosso discernimento aprendemos como está em nosso poder obter aquilo que desejamos, então é neste momento que começamos a nos conformar com a vontade de Deus.

Apenas quando, como foi dito, em todas as coisas que buscamos, renunciamos nossa própria vontade,  atingimos a meta que Deus estabeleceu para nós e agimos de acordo com o que Ele deseja. A menos que façamos isto, nós não podemos ser salvos. Pois já desde a transgressão de Adão nós estamos sujeitos a paixões por causa de nossa presente associação a elas. Nós não perseguimos alegremente a bondade, nem temos tempo para o conhecimento de Deus, nem fazemos o bem por amor, desapegadamente; ao invés disso nós agarramos nossas paixões e nossos vícios e não aspiramos a tudo o que é bom a não ser por medo do castigo. E este é o caso com aqueles que recebem a palavra de Deus com firme fé e propósito. O restante de nós nem sequer aspira a este propósito, mas levamos em conta apenas as aflições desta vida e as punições que virão não são levadas em consideração e de todo o coração permanecemos escravos das paixões. Alguns de nós não percebe nosso apuro desesperador, e apenas sob constrangimento e com relutância se engaja na batalha pela virtude. E em nossa ignorância temos tempo apenas para o que merece nosso ódio.

Como pessoas doentes necessitam de cirurgia e cauterização para recobrar a saúde que perderam, assim nós necessitamos de provações e ferramentas de arrependimento, e temor à morte e do castigo, para que assim nós possamos recuperar nossa primeira saúde de alma e sacudir a doença que nossa loucura nos induziu. Quanto mais o Médico de nossa alma nos concede sofrimento voluntário e involuntário, mas devemos ser gratos a Ele por Sua compaixão e aceitar o sofrimento alegremente. Pois é para nos ajudar que Ele aumenta nossa tribulação, tanto por sofrimento que alegremente abraçamos por nosso arrependimento e pelas provações e punições não sujeitas à nossa vontade. Neste sentido, se nós aceitamos voluntariamente as aflições, nós seremos libertos de nossa doença e da punição que virá, e talvez mesmo da punição presente. Mesmo quando não somos gratos, nosso Médico em Sua graça irá nos curar, ainda que por meio de castigos e provações diversas. Mas se nós nos apegamos à nossa doença e persistimos nela, nós merecidamente traremos sobre nós mesmos duradoura punição. Nós teremos feito de nós mesmos demônios e assim justamente compartilharemos com eles a punição duradoura preparada para eles; pois, tal qual eles, nós teremos escarnecido de nosso Benfeitor.

Nós não recebemos bençãos no mesmo sentido. Alguns ao receber o fogo do Senhor por meio de Sua palavra, a colocam em prática e se tornam mais suaves de coração, como cera, enquanto outros pela preguiça tornam-se mais duros do que argila e pedra. E ninguém nos obriga a receber estas bençãos em diferentes sentidos. É como o sol cujos raios iluminam todo o mundo: a pessoa que quer vê-lo pode fazê-lo, enquanto a pessoa que não quer ver, não é forçada a isto, de modo que só ele é culpado por sua condição sem luz. Pois Deus fez tanto o sol quanto os olhos do homem, mas como o homem os usa depende apenas dele. De modo similar, então, Deus irradia conhecimento a todos e ao mesmo tempo Ele nos dá a fé como um olho por meio do qual nós podemos percebê-lo.

Se escolhemos compreender este conhecimento firmemente por meio da fé, nós podemos nos manter atentos de pô-lo em prática; e Deus então nos dá maior ardor, conhecimento e poder. Pois nossa busca por conhecimento natural  acende nosso ardor, e este ardor aumenta nossa capacidade de pôr o conhecimento em prática. Ao colocá-lo em prática nos mantemos atentos a ele, e ele por sua vez nos induz a praticá-lo em uma extensão maior. A maior prática é recompensada pelo maior conhecimento; e do entendimento assim adquirido nós ganhamos controle sobre as paixões e aprendemos a como suportar nossos sofrimentos pacientemente. Sofrimentos produzem devoção a Deus e o reconhecimento de Seus bens e de nossas faltas. Estes dão nascimento à gratidão, e gratidão inculca temor a Deus que nos conduz à guarda dos mandamentos, a uma tristeza interior, à mansidão e à humildade. Estas três virtudes produzem discernimento, que nos dá um insight espiritual e torna possível para o intelecto em sua pureza a prever falhas próximas e a preveni-los através de sua experiência e lembrança do que aconteceu no passado e desta forma se proteger contra ataques furtivos. E tudo isso gera esperança, e da esperança vem o desapego e o amor perfeito.

Uma vez que tenhamos avançado assim nós não desejaremos qualquer coisa que não seja a vontade de Deus; de preferência nós abandonaremos alegremente esta vida transitória fora do amor a Deus e aos nossos irmãos. Através da sabedoria e habitação do Espírito Santo e pela adoção filial, nós somos crucificados com Cristo e queimados com Ele, e nós nascemos com Ele e ascendemos com Ele espiritualmente por imitar Seu modo de vida neste mundo. Para falar simplesmente, nós nos tornamos deus por adoção através da graça, recebendo o penhor da eterna benção, como diz São Gregório, o Teólogo (São Gregório de Nazianzo). Neste sentido,  considerando os oito tipos de maus pensamentos (veja as primeiras postagens deste blog e as 8 doenças de que falou São João Cassiano), nós nos tornamos desapegados, justos, bons e sábios, tendo Deus em nós mesmos - como o próprio Cristo nos falou (cf. João 14; 21-23) - através da guarda dos mandamentos em ordem, do primeiro ao último. Eu falarei abaixo sobre como os mandamentos devem ser praticados.

Uma vez que mencionamos o conhecimento das virtudes, nós também falaremos sobre as paixões. Conhecimento vem como a luz do sol. O homem tolo através da falta de fé ou da preguiça deliberadamente fecha seus olhos - isto é, sua faculdade de escolha - e uma vez que consigna o conhecimento ao esquecimento por conta de sua indolência ele falha ao pô-lo em prática. pois tolice gera indolência, que gera inércia e logo esquecimento. Esquecimento conduz ao amor próprio - o amor de si mesmo e dos próprios pensamentos - que é o equivalente ao amor do prazer e do louvor. Do amor de si vem a avareza, a raiz de todos os males (cf. Timóteo 6;10), pois ela nos enreda nos assuntos do mundo e neste sentido conduz a completa falta de consciência acerca dos bens de Deus e de nossas faltas. E assim os oito vícios tomam residência em nós; glutonaria, que conduz à falta de castidade, que gera avareza, que dá nascimento à ira quando deixamos de obter o que nós queremos - isto é, falhamos em ter nosso próprio caminho. Isto produz dejeção, e dejeção engendra primeiro apatia e então autoestima; e autoestima conduz ao orgulho. Destas oito paixões vêm todo mal, paixão e pecado. aqueles consumidos por elas são levados ao desespero e posteriormente à destruição; eles caem longe de Deus e se tornam como demônios, como já foi dito.

O homem se vê numa encruzilhada entre retidão e pecado e ele escolhe o caminho que o agrada. Mas após o caminho que ele escolheu seguir, vêm os seus guias, ou anjos e santos ou então demônios e pecadores, que o conduzirão para o fim, mesmo que ele não tenha nenhuma desejo de ir até lá. os bons guias o conduzirão para Deus e o reino dos Céus, os maus guias o conduzirão para o mau e a punição vindoura. Mas nada nem ninguém é  culpado por nossa destruição, senão nossa própria livre vontade. Pois Deus é Deus de salvação, conferindo-nos, além de ser e bem estar, o conhecimento e força que nós não podemos ter a não ser pela Graça de Deus. Nem mesmo o demônio pode destruir um homem, compelindo-o a escolher erradamente, ou reduzindo-o à impotência ou à ignorância forçada, ou a qualquer outra coisa: ele pode apenas sugerir o mal ao homem.


Assim, aquele que age corretamente deve atribuir a graça de agir assim a Deus, pois juntamente com o nosso ser, Ele nos deu todo o resto. Mas a pessoa que optou pelo caminho do mal, e atualmente faz o mal, deve culpar apenas a si mesmo, pois ninguém pode forçá-lo a cometê-lo, uma vez que Deus o criou com livre vontade. Uma vez que ele merecerá o louvor de Deus por ter escolhido o caminho da bondade; pois ele age assim não a partir de qualquer necessidade de sua natureza, como é o caso com coisas animadas e inanimadas que participam passivamente em bondade, mas como convém a um ser que Deus honrou com os dons da inteligência. Nós mesmos deliberadamente e intencionalmente escolhemos o mal, sendo treinados nele por sua descoberta. Deus, que é bom além de toda bondade, não nos força, para não sermos forçados e ainda desobedecer e sermos ainda mais culpados. nem tira Ele de nós a liberdade que em Sua bondade Ele nos concedeu.

Aquele que quer agir corretamente, rogue a Deus em oração, e conhecimento e poder lhe serão dados. Neste sentido será evidente que a Graça concedida por Deus foi dada justamente; pois foi dada pela oração, ainda que pudesse ter sido dada sem ela. Nenhum louvor, porém, é devido ao homem que aceita o ar por meio do qual vive, sabendo que sem ele sua vida seria impossível; preferencialmente ele mesmo deve graças ao seu Criador, que lhe deu nariz e a saúde para respirar e viver. Similarmente, ele também deve agradecer a Deus por causa de Sua graça o fato de que Ele criou nossa oração, nosso conhecimento, nossa força, nossa virtude, todas as nossas circunstâncias e nós mesmos. E não apenas Ele fez isso tudo, mas Ele sem cessar faz o que quer que Ele possa para vencer nossa fraqueza e aquela de nossos inimigos, os demônios.

Mesmo o demônio, tendo perdido o conhecimento de Deus, e assim inevitavelmente tornando-se ignorante em sua ingratidão e orgulho, não pode ele mesmo saber o que fazer. Pelo contrário, ele vê o que Deus faz para nos salvar e maliciosamente aprende disto e inventa coisas similares para a nossa destruição. Pois ele odeia Deus, e sendo incapaz de lutar com Ele diretamente, ele luta contra nós que somos a imagem de Deus, pensando em vingar-se de Deus deste modo; e, como diz São João Crisóstomo, ele nos encontra obedientes para sua vontade. Por exemplo, ele vê como Deus criou Eva como ajudante de Adão, e assim ele alista a cooperação dela para causar desobediência e transgressão. Ou, novamente, Deus deu um mandamento de modo a manter Adão consciente dos grandes presentes que recebeu e agradecer seu benfeitor por eles; mas o demônio fez destes mandamentos o ponto de partida da desobediência e da morte.  A despeito dos profetas, ele promove falsos profetas; a despeito dos apóstolos, falsos apóstolos; a despeito da lei, ausência de lei; a despeito das virtudes, vícios; a despeito dos mandamentos, transgressão; a despeito da justiça, tolas heresias.

Em adição a isto, quando o diabo viu descender de Cristo os santos mártires e os pais reverenciados, aparecendo em Si mesmo ou por meio de anjos ou de alguma outra forma inefável, ele começou a fabricar ilusões numerosas, a fim de destruir as pessoas. É por conta disso que os pais em seu discernimento, escreveram que não devemos prestar qualquer atenção a tais manifestações diabólicas, se elas procedem de imagens, ou luz, ou fogo, ou alguma outra forma enganosa. pois o demônio pode nos enganar no sono ou pelos sentidos. Se aceitamos tais ilusões, ele faz o intelecto, em sua ignorância total e vaidade, perceber várias formas ou cores para que assim pensemos ser isto uma manifestação de Deus ou de um anjo. Frequentemente no sono, ou quando nossos sentidos estão acordados, ele nos mostra demônios que são aparentemente derrotados. Em suma, ele faz o que pode para nos destruir por nos fazer sucumbir a estas ilusões.

A despeito de tudo isso, o demônio cairá em sua proposta se nós aplicarmos o conselho dos santos padres: durante o tempo da oração, nós devemos manter nosso intelecto livre de forma, figura e cor e não dar acesso a qualquer coisa que seja, se luz, fogo ou qualquer outra coisa mais; e que nós devemos fazer tudo o que pudermos para confinar nossa mente somente nas palavras que estamos dizendo, já que aquele que ora apenas com a boca lança palavras ao vento e não a Deus. Pois, diferente dos homens, Deus é atento ao intelecto e não às palavras ditas. Nós devemos venerar, é dito, 'em espírito e em verdade' (João 4;24) e novamente, "Eu prefiro falar cinco palavras cujo significado eu entenda do que dez mil palavras em uma língua estranha" (1 Cor. 14: 19).

É agora que o demônio, tendo falhado em todos seus outros esquemas, nos tenta com pensamentos de desespero: ele tenta nos persuadir que no passado as coisas eram diferentes e que os homens por quem Deus realizou maravilhas para o fortalecimento da fé não eram como nós. Ele também nos fala que agora não há necessidade de tais esforços. Pois já não somos agora todos Cristãos batizados? "Aquele que crer e for batizado será salvo" (Marcos 16:16). Do que mais temos necessidade? Mas se nós sucumbirmos a esta tentação e permanecermos como nós somos, nós ficaremos completamente estéreis. Nós seremos Cristãos apenas de nome, não percebendo que aquele que creu e foi batizado deve manter todos os mandamentos de Cristo; e mesmo aquele que for capaz de realizar isso, ele deve dizer, "Eu sou um servo inútil" (Lucas 17:10), como o Senhor falou aos Seus apóstolos quando Ele os instruiu a realizar tudo o que Ele tinha previsto para eles.

Todo aquele que for batizado renuncia ao demônio dizendo, "Eu renuncio a satanás e todas as suas obras, e unir-me a Cristo e a todas as suas obras." Mas onde está sua renúncia, se você não abandona toda paixão e desiste de todo pecado que o demônio promove? Em vez disso, odiemos tais coisas com toda a nossa alma e mostremos nosso amor a Cristo através da guarda de seus mandamentos. E como nós guardaremos Seus mandamentos a menos que nós abandonemos nossa própria vontade e pensamento - a vontade e o pensamento, ou seja, aqueles que são opostos aos mandamentos de Deus?

Há frequentemente pessoas que, por causa do temperamento pessoal ou por hábito, de fato escolhem o que é bom em determinadas situações e odeiam o que é mau. E há também bons pensamentos, como atestam as Escrituras, apesar deles requererem o discernimento daqueles que possuem experiência; pois sem discernimento mesmo aqueles pensamentos que parecem bons não são de fato bons, ou chegam na hora errada, ou são desnecessários, ou indignos, ou não são adequadamente compreendidos.  Para tanto, a menos que a pergunta e aquele que se questiona sejam atentos não só às Escrituras, mas também à questão levantada, eles vão perder o sentido do que foi dito e o dano resultante será grave. Eu mesmo tenho encontrado isso freqüentemente, ao mesmo tempo com relação à pergunta e ao que é questionado; e depois de ter entendido o verdadeiro significado da passagem em discussão, fiquei espantado em aprender como as palavras podem ser as mesmas, mas o significado muito diferente.

Assim necessitamos discernir em todas as coisas se nós sabemos como agir e como fazer a vontade de Deus. Pois Deus, como criador de todas as coisas, conhece nossa natureza completamente e ordenou todas as coisas para nosso benefício; e Ele estabeleceu leis que estão de acordo com nossa natureza e não são estranhas a ela, ainda que não sejam capazes de conduzir à perfeição aqueles que voluntariamente aspiram a atingir Deus em um sentido que transcenda a natureza. Pois isto requer mais do que qualidades naturais de virgindade, pobreza voluntária, humildade - não apenas gratidão, que é natural. A humildade é mais do que natural já que o homem humilde busca toda virtude e ainda que não tenha dívidas, ele se reconhece como o maior devedor de todos. A pessoa grata, por outro lado, irá reconhecer apenas o débito que possui. Similarmente, o homem merecedor, que realiza seus atos de caridade mas se inspira em suas posses, permanece dentro dos limites da natureza, e não vai além dela como a pessoa que dá tudo o que possui. Novamente, o casamento é natural, enquanto a virgindade é mais do que uma graça natural. A pessoa que permanece nos limites da natureza é salva se ela abandona sua própria vontade e cumpre aquela de Deus; mas à pessoa que transcende estes limites, Deus dará a coroa da resistência e da glória, porque ele renunciou não apenas ao que é proibido pela lei mas também, com a ajuda de Deus, à sua própria natureza. Ele ama ao Deus supernatural com toda a sua alma e imita Seu desapego com toda sua força.

    Se somos ainda ignorantes não apenas de nós mesmos e do que fazemos, mas também do propósito do que é feito e da verdadeira finalidade de tudo, a divina Escritura e as palavras dos santos, mesmo os profetas e homens justos do antigo testamento, ou ainda os padres mais recentes, parecerão a nós contraditórios. Aqueles que desejam ser salvos parecem discordar uns dos outros. Mas na realidade este não é o caso.

Brevemente podemos dizer que na natureza das coisas, se alguém quer ser salvo, nenhuma pessoa e nenhum tempo, lugar ou ocupação podem impedi-lo. Nós não devemos, porém, agir contrariamente ao objetivo que ele tem em vista, mas devemos com discernimento referir todo pensamento ao propósito divino. As coisas não acontecem fora da necessidade: elas dependem da pessoa por meio de quem acontecem. Nós não pecamos contra nossa vontade, mas primeiro assentimos a um mau pensamento e então caímos na catividade. Então o próprio pensamento carrega o cativo à força e contra seus desejos ao pecado. O mesmo é verdadeiro com respeito aos pecados por meio da ignorância: eles surgem de pecados conscientemente cometidos. Pois a menos que um homem esteja bêbado pelo vinho ou pelo desejo, ele não está inconsciente do que ele está fazendo; mas a bebedeira obscurece o intelecto e o faz falhar, e ele acaba morrendo como resultado. Ainda que a morte não venha inexplicavelmente, ela foi inconscientemente induzida pela bebedeira para a qual nós conscientemente assentimos. Nós encontraremos muitos exemplos, especialmente em nossos pensamentos, onde passamos daquilo que temos controle para aquilo que está fora de nosso controle, e daquilo de que somos conscientes para o que é involuntário. Mas porque os primeiros nos parecem não atrativos ou desimportantes, nós caímos sem intenção e sem consciência nos segundos. No entanto, se desde o início quiséssemos guardar os mandamentos e permanecer como quando fomos batizados, nós não teríamos caído em tantos pecados e então não teríamos a necessidade de provações, tribulações e arrependimento.

Se assim desejarmos, no entanto, um dom de Deus segundo a Graça - o arrependimento - pode nos conduzir de volta à nossa beleza primeira. Mas se não nos arrependermos, inevitavelmente nós partiremos com os demônios inarrependíveis para a punição vindoura, mais por nossa livre escolha do que contra nossa vontade. "Porque Deus não nos criou para a ira, mas para a salvação" (cf. 1 Tessalonicenses 5:9), de modo que possamos aproveitar Suas bençãos, e consequentemente sermos gratos e agradecidos para com nosso Benfeitor. Mas a nossa incapacidade de conhecer seus dons nos faz indolentes, e a indolência produz esquecimento, e como resultado a ignorância se torna a senhora sobre nós.

Temos de fazer extenuantes esforços quando de início tentamos retornar de onde caímos. Pois ressentimos em abandonar nossos próprios desejos, e pensamos que podemos atender ao mesmo tempo aos desejos de Deus e aos nossos próprios - o que é impossível. O Próprio Nosso Senhor disse, "Eu vim para cumprir não com a Minha própria vontade, mas a Daquele que me enviou" (Cf. João 6:38), ainda que a vontade do Pai, do Filho e do Espírito Santo sejam uma única, já que constituem uma natureza singular inseparável. Mas Ele disse isso levando-nos em conta e com respeito à vontade da carne. Pois se a carne não é consumida e se um homem não é plenamente conduzido pelo Espírito de Deus, ele não fará a vontade de Deus a menos que ele seja forçado a isto. Mas quando a graça do Espírito rege o seu interior, então ele não tem mais vontade própria, mas o que ele faz está de acordo com a vontade de Deus.  Então ele está em paz. Homens como estes serão chamados Filhos de Deus (cf. Mateus 5:9), porque eles farão a vontade de Seu Pai, como fez o Filho de Deus que é também Deus.

É impossível descobrir a vontade de Deus a menos que guardemos os mandamentos, consequentemente cortando toda vontade ou prazer pessoal e a menos que suportemos toda a dor que isto envolve. Como foi dito, prazer e dor nascem da loucura e eles dão origem a todo mal. Pois o homem tolo ama a si mesmo e não pode amar seu irmão ou Deus; ele não pode refrear os prazeres ou desejos que lhe dão satisfação, nem pode suportar a dor. Algumas vezes ele consegue o que ele quer, e então ele é preenchido com prazer e alegria; algumas vezes ele não consegue, e então ele é completamente dominado pela dor que isto engendra, e então ele é rejeitado, sentindo uma antevisão do inferno.

Do conhecimento, ou entendimento, nasce o autocontrole e o sofrimento paciente. Pois o homem do entendimento restringe sua própria vontade e suporta a dor que disso resulta; e, reconhecendo a si mesmo como indigno de alguma coisa agradável, ele está agradecido de seu Benfeitor, temendo por conta das numerosas bençãos que Deus lhe concedeu neste mundo, ele sofreria a punição no mundo por vir. Assim, através do autocontrole, ele pratica também as outras virtudes. Ele olha a si mesmo como estando em débito com Deus em relação a tudo, não encontrando nada com que ele possa pagar ao seu Benfeitor, e chegando a pensar que suas virtudes aumentam o débito. Pois ele recebe e nada tem a dar. Ele apenas pede que possa lhe ser permitido oferecer Graças a Deus. Ainda mesmo pelo fato de que Deus aceite seu agradecimento, assim ele pensa, ainda aumentará seu débito. Mas ele continua a dar graças, mesmo fazendo o que é bom e considerando a si mesmo como um grande devedor, em sua humildade julgando-se a si mesmo como estando abaixo de todos os homens, deleitando-se em Deus seu Benfeitor e tremendo mesmo quando se alegra (cf. Salmo 2:11).

À medida que se avança através da humildade para o conhecimento e amor divino, nós aceitamos sofrer como merecemos. De fato, ele pensa merecer mais sofrimento do que o que ele encontra; e ele está feliz que ele seja agraciado com alguma aflição neste mundo, pois por elas ele pode ser poupado da porção de punição que lhe foi reservado no mundo a ser. E por conta de tudo isso ele conhece sua própria fraqueza, e por isso ele não deve exultar, e porque ele foi descoberto digno de conhecer e suportar estas coisas pela Graça de Deus, ele é preenchido com uma forte saudade de Deus.

A humildade nasceu do conhecimento espiritual, e tal conhecimento nasceu de provações e tentações. Para a pessoa que conhece a si mesma é dado conhecimento de todas as coisas (Clemente de Alexandria, Pedagogo III), e aquele que se sujeita a Deus coloca tudo sob seu controle; e então todas as coisas são sujeitas a ele, pois ele é completamente humilde. De acordo com São Basílio e São Gregório de Nazianzo, aquele que conhece a si mesmo - que sabe que ele está a meio caminho entre a nobreza e a baixeza, já que ele tem uma alma capaz de conhecimento espiritual e um corpo mortal e terreno - nunca exulta ou se desespera. De preferência, com um sentimento de vergonha diante de sua alma, ele rejeita tudo o que é vergonhoso, e conhecendo sua fraqueza, ele encolhe todo sentimento de euforia.

Assim, aquele que conhece sua própria fraqueza depois de passar por muitas tentações e provações, que sofre com as paixões da alma e do corpo, entende o poder incomensurável de Deus e como Ele redime o humilde que clama a Ele por meio de oração persistente das profundezas de seu coração. Para tal pessoa a oração torna-se um deleite. Ele sabe que sem Deus ele não pode fazer nada (cj. João 15:5), e em seu medo de cair, ele se esforça para se unir a Deus, e ele fica espantado como ele considera como Deus tem o resgatado de tantas tentações e paixões. Ele dá graças ao seu Salvador, e para sua ação de graças ele acrescenta humildade e amor; e ele não ousa julgar quem quer que seja, sabendo que como Deus o ajudou, assim Ele pode ajudar a todos os homens quando Ele o desejar, como diz São Máximo. Ele sabe também que se uma pessoa percebe sua fraqueza, ele pode ser capaz de lutar e vencer muitas paixões; pois em tal caso Deus rapidamente vem em sua assistência para que sua alma não seja destruída. E por muitas outras razões também a pessoa que reconhece sua própria fraqueza não cai. Ninguém pode atingir este reconhecimento a menos que antes sofra muitas tentações de alma e corpo, e ganhe experiência por sofrê-las pacientemente e assim superá-las com a ajuda de Deus.

Tal homem não ousa agir de acordo com suas próprias volições ou seguir suas próprias ideias sem primeiro questionar aqueles com experiência. Pois o que ganha uma pessoa ao escolher fazer ou pensar  algo que não contribua para sua vida corporal ou para a salvação de sua alma? E se ele não conhece o que deseja abandonar e o que ele poderia por de lado, deixe-o testar cada ação e cada pensamento, e mantendo-os em exame, perceber como tais pensamentos o afetam. Se algo lhe traz prazer mas ao resisti-lo lhe trazem dor, então essa coisa é ruim e deve ser rejeitada antes que se enraíze; de outro modo ele achará difícil vencê-la mais tarde, quando ele perceber que tal coisa o prejudica. Isto se aplica a toda ação e pensamento que não nos ajuda a nos manter vivos e de acordo com a vontade de Deus. Pois um hábito de longa data toma a força da própria natureza; mas se você não der força a ele, ele se enfraquece e é gradualmente destruído. Se um hábito é bom ou mau, o tempo o alimenta, como a madeira alimenta o fogo. Assim, na medida que pudermos, devemos cultivar e praticar o que é bom, de modo que se torne um hábito estabelecido que opera automaticamente e sem esforço, quando necessário. Foi por meio de vitórias nas pequenas coisas que os padres ganharam suas grandes batalhas.

 Pois se um homem se recusa a satisfazer até as necessidades básicas do corpo e rejeita-as a fim de passar essa vida de forma estreita e apertada, como ele pode ser vítima do amor pelas posses? Amor pelas posses consiste não meramente em possuir muitas coisas, mas também em apegar-se a elas, ou no seu mau uso, ou no seu uso excessivo. Pois muitos santos da antiguidade, como Abraão, Jó, Davi e muitos outros, tinham muitas posses, mas eles não estavam apegados a elas: eles a consideravam como presentes de Deus e procuraram agradá-Lo ainda mais através do uso delas. Entretanto o Senhor, estando além da perfeição e sendo a própria sabedoria, ataca na raiz; pois Ele insta aqueles que O seguem através da imitação suprema da virtude a renunciar não apenas aos bens e posses materiais, mas mesmo à sua própria alma (cf. Lucas 14:26), isto é, aos seus próprios pensamentos e vontade.

Porque eles sabiam isto, os padres fugiram do mundo, vendo-o como um obstáculo à perfeição; e não apenas do mundo mas também de sua própria vontade pela mesma razão. Nenhum deles jamais fez o que propriamente queria. Alguns viveram em obediência corporal, assim que no lugar de Cristo teriam um pai espiritual os guiando em cada pensamento. Outros, fugindo totalmente da sociedade humana, viveram no deserto e tiveram o próprio Deus como seu professor, por quem escolheram viver uma morte voluntária. Outros seguiram o "caminho real", levando a vida em silêncio ao lado de um ou dois companheiros: estes tinham um ou outro como conselheiro para se fazer a vontade de Deus. E aqueles que, depois de se submeterm ao pai espiritual, fossem então apontados por eles para tomar cuidado de outros irmãos, realizavam suas tarefas como se ainda estivessem em obediência, mantendo as tradições de seus pais espirituais. Assim, todos os esforços eram abençoados por Deus.

Hoje em dia, porém, mesmo se estamos sob a obediência ou autoridade, não queremos abandonar nossa própria vontade, e assim, nenhum de nós faz qualquer progresso. Não obstante, é ainda possível escapar da sociedade humana e dos afazeres mundanos, e tomar o "caminho real" ao se viver uma vida de silêncio com um ou dois outros, estudando os mandamentos de Cristo e todas as Escrituras, dia e noite. Por este meio, ao ser testado em todas as coisas por consciência e aplicação, leitura e oração, talvez possamos atingir o primeiro mandamento, o temor de Deus, que vem através da fé e do estudo das Sagradas Escrituras; e através disso nós possamos alcançar tristeza interior, e asim chegar aos mandamentos de que São Paulo fala: fé, esperança e caridade (cf. I Coríntios 13;13). Pois aquele que tem fé no Senhor teme o castigo; e este medo incita-o a manter os mandamentos. A manutenção dos mandamentos o conduz a suportar as aflições; e suportar as aflições produz esperança em Deus. Tal esperança separa o intelecto de todo apego material, e a pessoa liberta de tais apegos possui amor por Deus. Quem seguir este caminho será salvo. 

Silêncio, que é a base da purificação da alma, faz a observância dos mandamentos relativamente sem dor. "Fuja", foi dito,"mantenha o silêncio, seja quieto, pois nisso jaz as raízes da impecabilidade". Novamente foi dito: "Fuja dos homens e serás salvo". Pois a sociedade humana não permite que o intelecto perceba suas próprias falhas ou artimanhas dos demônios, assim é preciso guardar-se contra eles. Nem, por outro lado, é permitido ao intelecto perceber a bondade e providência de Deus, de modo a auxiliá-lo no aconhecimento de Deus e na humildade.

A razão é que quem deseja viajar na rota estreita de Cristo - a rota do desapego e do conhecimento espiritual - e alegremente atingir a perfeição, não pode virar nem para a direita nem para a esquerda, mas em toda a sua vida, deve viajar diligentemente no caminho real. Ele deve orientar um curso médio entre excesso e insuficiência, já que ambos engendram prazer. Ele não deve obscurecer o intelecto com excessiva comida e convivialidade, fazendo-se cego com tais distrações; mas nem deve ele nublar sua mente com excesso de jejuns e vigílias. De preferência, ele deve cuidadosamente e pacientemente praticar as sete formas de disciplina corporal como se subisse uma escada, dominá-las de uma vez por todas e avançar para que o estado moral nas quais, como disse o Senhor (cf. Mateus 13: 11-12), pela Graça de Deus os diferentes estágios da contemplação espiritual são dados ao crente.

 Toda a Escritura é inspirada por Deus e é aproveitável (cf. 2 Timóteo 3: 16), e ninguém pode frustrar alguém que deseje ser salvo. Apenas Deus que nos fez tem o poder sobre nós, e Ele está pronto a ajudar e proteger de toda tentação aquele que clama a Ele e quer fazer Sua santa vontade. Sem Ele, nada podemos fazer (cf. João 15:5), nós não podemos sofrer nenhum mal involuntário a menos que Deus o permita de modo a nos castigar e salvar nossas almas. Mas o mal que cometemos é nossa própria responsabilidade e surge de nossa própria preguiça com o apoio dos demônios. Por outro lado, todo conhecimento, força e virtude são graças de Deus, como são todas as outras coisas. E através da Graça, Ele deu a todos os homens o poder de se tornarem filhos de Deus (cf. João 1: 12) na guarda dos divinos mandamentos. Ou, de preferência, estes mandamentos nos guardam, e são a graça de Deus, já que sem Sua graça nós não podemos guardá-los. Não temos nada a Lhe oferecer senão nossa fé, nossa resolução e, em suma, todos os verdadeiros dogmas que defendemos com firme fé através dos ensinamentos que ouvimos (cf. Romanos 10:7). Com tudo isso em mente, estabeleçamos nosso trabalho sem distração, como se fosse início das aulas na escola, e deste modo aprendamos cuidadosamente sobre as sete formas de disciplina as quais nos referimos.