Cristo Pantocrator

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Um tesouro de conhecimento divino

O texto que postarei agora é de São Pedro de Damasco. A edição da Philokalia que eu me sirvo é a inglesa (London, Faber and Faber, 1984, first edition, III volume, pag. 70 a 207).
Devido a amplitude do texto, vou postar aqui a Introdução ao texto. Cada novo tópico do Tesouro postarei em nova postagem, para assim facilitar a vida dos leitores. Isso porque o texto é didivido em muitos tópicos e é perfeitamente possível a leitura de um independente de outro, tal como ocorreu com o texto das doenças espirituais de São João Cassiano.

"Os trabalhos de São Pedro de Damasco ocupam mais espaço na Filocalia que qualquer outro, perdendo apenas para São Máximo Confessor. Pouco se sabe da vida e identidade do autor, a não ser por aquilo que ele próprio escreveu. São Nicodemos o identifica com certo bispo Pedro Hieromartir, comemorado dia 9 de fevereiro, que sofreu em defesa dos santos ícones em meados do século oitavo: sua língua foi cortada e ele morreu no exílio no Sul da Arábia. No entanto, é provável que o autor do texto da Filocalia seja outro Pedro, já que este autor cita Simeão Metaphrastis, que morreu no décimo século.  Parece mais provável que ele seja do século XI ou mesmo XII; ele é definitivamente anterior à controvérsia hesicasta. Apesar de ter vivido um período de agravamento entre a Ortodoxia e Roma, ele nunca alude a isto. (...)

Ele é evidentemente um monge, escrevendo para outros monges. Ele fala de três tipos de monasticismo - a obediência corporal' em uma comunidade plenamente organizada, a vida eremita, e o caminho intermediário ou semi-eremita, com dois ou três monges perseguindo uma vida de silêncio. Talvez tenha sido esta a forma de monasticismo que ele mesmo seguiu. O conteúdo de seu trabalho confirma isto: ele fala pouco sobre os aspectos comunitários ou sociais da vocação monástica, pouco sobre a hospitalidade e os serviços litúrgicos. Ele se interessa com a ascese pessoal e a oração individual hesicasta; e ele não encara a vida de alguém que é completamente solitário, já que frequentemente menciona os "irmãos". (...)

Como é de se esperar, o trabalho de São Pedro não é sistemático. Apesar dele fazer uso de vários esquemas gerais - as quatro virtudes cardeais, os oito pensamentos demoníacos, as sete ações corporais e os oito estágios da contemplação - há constantes repetições, digressões e mudanças de temas. (...)

Em seus ensinamentos espirituais, São Pedro é moderado. Ainda que escreva para monges, ele insiste que a salvação e o conhecimento espiritual estão no interior de cada um e que a oração contínua é possível em todas as situações sem exceção. Ainda que enfatize a necessidade do esforço ascético, ele nunca subestima a extrema importância da ajuda divina. Tudo o que temos é um dom da Divina Graça. Lágrimas, compunção, dor são frequentemente mencionados, especialmente nos oito primeiros estágios da contemplação; mas a nota predominante é de esperança, e ele tem muito a dizer sobre a finalidade universal do amor de Deus e a liberdade soberana da vontade humana" (Philokalia, Opus Cit, pags. 70 a 72).

Um tesouro de conhecimento divino
Introdução

Por conta da Graça de Deus foi-me concedido muitos grandes dons, ainda que eu não tenha feito nada de bom por mim mesmo, e assim acabei temendo que por minha preguiça e indolência eu esquecesse Suas bençãos - bem como minhas próprias falhas e pecados - e assim não Lhe rendesse graças ou mostrasse minha gratidão de alguma forma. Deste modo, escrevi este tratado como forma de repreender minha alma infeliz, de ilustrar o que veio a mim através da vida e obra dos santos padres, citando-os pelo nome, para que isso me sirva como um lembrete de suas palavras, mesmo que minha lembrança seja incompleta.

Como eu mesmo não possuo nem nunca possuí qualquer livro, eu os tenho pego emprestado com alguns amigos devotos, que também me ajudam em minhas necessidades físicas; e depois de passar por estes livros com muito cuidado, por amor a Deus, os tenho devolvido aos seus proprietários. Estes livros incluem antes de tudo o Antigo e Novo Testamento, isto é, o Pentateuco, o Saltério, os quatro livros dos Reis, os seis livros da Sabedoria, os Profetas, as Crônicas, os Atos dos Apóstolos, os Santos Evangelhos e os comentários de todos estes; e então todos os escritos dos grandes padres e mestres - Dionísio, Atanásio, Basílio, Gregório o Teólogo, João Crisóstomo, Gregório de Nissa, Antônio, Arsênio, Macário, Nilo, Efrém, Isaac, Marcos, João de Damasco, João Clímaco, Máximo, Doroteu, Filimon, como também as vidas e ditos de todos os santos.

Eu percorri por todos eles acuradamente e diligentemente, tentando descobrir a raiz da destruição do homem e a salvação, e quais de suas ações e práticas lhe trazem ou não a salvação. Eu quis encontrar o que todo mundo busca, e como as pessoas serviam a Deus no passado, e ainda O servem nos dias de hoje, na riqueza ou na pobreza, vivendo entre muitos pecadores ou na solidão, no casamento ou no celibato: como, simplesmente, em toda circunstância e atividade encontramos vida ou morte, salvação ou destruição. Mesmo entre nós, monges, há diferentes situações: obediência ao pai espiritual em todas as matérias referentes ao corpo ou à alma; silêncio que purifica a alma; aconselhamento espiritual no lugar da obediência; o ofício de abade ou de bispo. Em cada uma destas situações, alguns encontram a salvação e outros perecem.

Isto em si mesmo me deixava atônito; mas eu estava atônito também com a queda dos primeiros anjos no céu, imateriais por natureza, vestidos de sabedoria e de todas as virtudes, que subitamente tornaram-se demônios, enegrecidos e ignorantes, o princípio e fim de todo mal e malícia. E então houve Adão, que gozou de muita  honra e de muitas bençãos, tal era sua familiaridade com Deus, que foi adornado com sabedoria e virtude, sozinho no paraíso com Eva: ele subitamente tornou-se um exilado, cheio de paixões, mortal, forçado ao labor com suor e aflição. Dele brotou os únicos dois irmãos no mundo, Caim e Abel; e entre eles triunfou a inveja e o engano, e estes deram nascimento ao assassinato, maldição e terror. Eu estava atônito também pelos seus descendentes, cujos pecados foram tantos que eles provocaram o dilúvio; e então Deus em Sua compaixão salvou alguns na arca, um deles - Canaã - foi amaldiçoado, ainda que tivesse sido seu pai Cão que tivesse pecado: e para assim não revogar  a benção de Deus, o justo Noé amaldiçoou o filho no lugar do pai (cf. Gênesis 9: 22-27). Então houve a torre de Babel, o povo de Sodoma, os Israelitas, Salomão, os Ninivitas, Geazi, Judas e todos aqueles que foram dotados com bençãos e mesmo assim retornaram ao pecado.

Eu também estava atônito no modo como Deus, que é bom além de toda a bondade e pleno de compaixão, permite todos os muitos e variados tipo de aflição e provação no mundo. Alguns Ele permite como  sofrimento que conduz ao arrependimento. Estes incluem fome, sede, dor, privação do que é necessário à vida, abstinência do prazer, o desperdício do corpo por meio do asceticismo, vigílias, labores, fadiga, prolíferas lágrimas amargas, angústia, medo da morte, exame de consciência, medo de ser chamado a prestar contas, de viver no inferno com os demônios, o temível dia do juízo, a ignomínia que está prestes a cair sobre o mundo inteiro, o terror, a busca amarga e a avaliação dos atos de cada um, palavras e pensamentos, ameaças e a ira; e em adição a tudo isso, as várias eras de punição, o lamento inútil e as lágrimas incessantes; as trevas do desamparo, o medo, a dor, o exílio, o desalento, a opressão, o estrangulamento da alma neste mundo e no próximo. E então há ainda todos estes perigos a serem enfrentados neste mundo: naufrágios, doenças de todo tipo,  relâmpagos, trovões, granizo, terremoto, fome, maremotos, mortes intempestivas - todas as coisas dolorosas que Deus permite que nos aconteçam contra  nossa vontade.

Outras coisas não são desejadas por Deus mas por nós mesmos ou pelos demônios. Estas incluem batalhas, paixões, toda série de pecados da loucura ao desespero e a destruição final, das quais falará nosso tratado em seguida; o ataque de demônios, guerras, tirania das paixões, negligências, desarticulação e vicissitudes na vida, temor, calúnia e todas as aflições que nós, por nossa própria vontade, transmitimos uns aos outros contra a vontade de Deus. Novamente estava alarmado como, por assalto de tais demônios, ainda assim muitos conseguissem ser salvos, e que nada era capaz de deter este fato. E por outro lado também, muitos pereceram contra a vontade de Deus.

Quando, de meu estudo laborioso das Escrituras, eu me tornei consciente de todas estas coisas, e mais ainda, minha alma foi destruída, senti-me tão impotente quanto água derramada. Eu não compreendi plenamente o significado daquilo que li; de fato, tivesse eu compreendido, não poderia permanecer nesta  vida, cheio de pecados e desobediência a Deus tal como me encontrava, pois é exatamente isso o que produz todos os males deste mundo e do vindouro. Não obstante, por meio da Graça de Deus, eu tive as respostas  que procurava, e vi, de minha leitura dos santos padres, que temos de fazer certas distinções.

Primeiro, nós devemos reconhecer que o início de todo o desenvolvimento espiritual é o conhecimento natural dado por Deus, isso vem quer através da Escritura, quer do agir humano, ou por meio do anjo que é dado no batismo divino para proteger a alma de cada crente, atuando como sua consciência e lembrando-o dos mandamentos divinos de Cristo. Se a pessoa batizada guarda estes mandamentos, a graça do Espírito Santo é preservada Nela. 

Então, juntamente com o conhecimento, há nossa capacidade para escolher. Este é o início de nossa salvação; por nossa livre escolha nós abandonamos nossos próprios desejos e pensamentos e fazemos o que Deus deseja e pensa. Se temos sucesso ao fazer isso, não há objeto, nem atividade ou lugar em toda a criação que possa nos prevenir de nos tornarmos o que Deus desde o início desejou que fôssemos: isto quer dizer, de acordo com Sua imagem e semelhança, deuses por adoção através da graça, desapegados, justos, bons e sábios, ainda que rico ou pobre, casado ou celibatário, em autoridade e livre ou sob a obediência e escravidão _ em suma, qualquer que seja a nossa época, lugar, ou atividade. Isto é porque, antes da lei, sob a lei e sob a graça, havia muitos homens justos _ homens que preferiram o conhecimento de deus e Sua vontade a seus próprios pensamentos e desejos. Ainda que houvesse também muitos que nas mesmas circunstâncias e tempos tenham perecido, por terem preferido seus próprios pensamentos e desejos àqueles de Deus.

É esta então a pintura geral. Mas atividades e situações variam, e alguém necessita adquirir discernimento, ou pela humildade dada por Deus ou pelos questionamentos daqueles que possuem os dons do discernimento. Pois sem discernimento nada do que venha acontecer será bom, mesmo se nós em nossa ignorância pensamos que seja. Mas quando por nosso discernimento aprendemos como está em nosso poder obter aquilo que desejamos, então é neste momento que começamos a nos conformar com a vontade de Deus.

Apenas quando, como foi dito, em todas as coisas que buscamos, renunciamos nossa própria vontade,  atingimos a meta que Deus estabeleceu para nós e agimos de acordo com o que Ele deseja. A menos que façamos isto, nós não podemos ser salvos. Pois já desde a transgressão de Adão nós estamos sujeitos a paixões por causa de nossa presente associação a elas. Nós não perseguimos alegremente a bondade, nem temos tempo para o conhecimento de Deus, nem fazemos o bem por amor, desapegadamente; ao invés disso nós agarramos nossas paixões e nossos vícios e não aspiramos a tudo o que é bom a não ser por medo do castigo. E este é o caso com aqueles que recebem a palavra de Deus com firme fé e propósito. O restante de nós nem sequer aspira a este propósito, mas levamos em conta apenas as aflições desta vida e as punições que virão não são levadas em consideração e de todo o coração permanecemos escravos das paixões. Alguns de nós não percebe nosso apuro desesperador, e apenas sob constrangimento e com relutância se engaja na batalha pela virtude. E em nossa ignorância temos tempo apenas para o que merece nosso ódio.

Como pessoas doentes necessitam de cirurgia e cauterização para recobrar a saúde que perderam, assim nós necessitamos de provações e ferramentas de arrependimento, e temor à morte e do castigo, para que assim nós possamos recuperar nossa primeira saúde de alma e sacudir a doença que nossa loucura nos induziu. Quanto mais o Médico de nossa alma nos concede sofrimento voluntário e involuntário, mas devemos ser gratos a Ele por Sua compaixão e aceitar o sofrimento alegremente. Pois é para nos ajudar que Ele aumenta nossa tribulação, tanto por sofrimento que alegremente abraçamos por nosso arrependimento e pelas provações e punições não sujeitas à nossa vontade. Neste sentido, se nós aceitamos voluntariamente as aflições, nós seremos libertos de nossa doença e da punição que virá, e talvez mesmo da punição presente. Mesmo quando não somos gratos, nosso Médico em Sua graça irá nos curar, ainda que por meio de castigos e provações diversas. Mas se nós nos apegamos à nossa doença e persistimos nela, nós merecidamente traremos sobre nós mesmos duradoura punição. Nós teremos feito de nós mesmos demônios e assim justamente compartilharemos com eles a punição duradoura preparada para eles; pois, tal qual eles, nós teremos escarnecido de nosso Benfeitor.

Nós não recebemos bençãos no mesmo sentido. Alguns ao receber o fogo do Senhor por meio de Sua palavra, a colocam em prática e se tornam mais suaves de coração, como cera, enquanto outros pela preguiça tornam-se mais duros do que argila e pedra. E ninguém nos obriga a receber estas bençãos em diferentes sentidos. É como o sol cujos raios iluminam todo o mundo: a pessoa que quer vê-lo pode fazê-lo, enquanto a pessoa que não quer ver, não é forçada a isto, de modo que só ele é culpado por sua condição sem luz. Pois Deus fez tanto o sol quanto os olhos do homem, mas como o homem os usa depende apenas dele. De modo similar, então, Deus irradia conhecimento a todos e ao mesmo tempo Ele nos dá a fé como um olho por meio do qual nós podemos percebê-lo.

Se escolhemos compreender este conhecimento firmemente por meio da fé, nós podemos nos manter atentos de pô-lo em prática; e Deus então nos dá maior ardor, conhecimento e poder. Pois nossa busca por conhecimento natural  acende nosso ardor, e este ardor aumenta nossa capacidade de pôr o conhecimento em prática. Ao colocá-lo em prática nos mantemos atentos a ele, e ele por sua vez nos induz a praticá-lo em uma extensão maior. A maior prática é recompensada pelo maior conhecimento; e do entendimento assim adquirido nós ganhamos controle sobre as paixões e aprendemos a como suportar nossos sofrimentos pacientemente. Sofrimentos produzem devoção a Deus e o reconhecimento de Seus bens e de nossas faltas. Estes dão nascimento à gratidão, e gratidão inculca temor a Deus que nos conduz à guarda dos mandamentos, a uma tristeza interior, à mansidão e à humildade. Estas três virtudes produzem discernimento, que nos dá um insight espiritual e torna possível para o intelecto em sua pureza a prever falhas próximas e a preveni-los através de sua experiência e lembrança do que aconteceu no passado e desta forma se proteger contra ataques furtivos. E tudo isso gera esperança, e da esperança vem o desapego e o amor perfeito.

Uma vez que tenhamos avançado assim nós não desejaremos qualquer coisa que não seja a vontade de Deus; de preferência nós abandonaremos alegremente esta vida transitória fora do amor a Deus e aos nossos irmãos. Através da sabedoria e habitação do Espírito Santo e pela adoção filial, nós somos crucificados com Cristo e queimados com Ele, e nós nascemos com Ele e ascendemos com Ele espiritualmente por imitar Seu modo de vida neste mundo. Para falar simplesmente, nós nos tornamos deus por adoção através da graça, recebendo o penhor da eterna benção, como diz São Gregório, o Teólogo (São Gregório de Nazianzo). Neste sentido,  considerando os oito tipos de maus pensamentos (veja as primeiras postagens deste blog e as 8 doenças de que falou São João Cassiano), nós nos tornamos desapegados, justos, bons e sábios, tendo Deus em nós mesmos - como o próprio Cristo nos falou (cf. João 14; 21-23) - através da guarda dos mandamentos em ordem, do primeiro ao último. Eu falarei abaixo sobre como os mandamentos devem ser praticados.

Uma vez que mencionamos o conhecimento das virtudes, nós também falaremos sobre as paixões. Conhecimento vem como a luz do sol. O homem tolo através da falta de fé ou da preguiça deliberadamente fecha seus olhos - isto é, sua faculdade de escolha - e uma vez que consigna o conhecimento ao esquecimento por conta de sua indolência ele falha ao pô-lo em prática. pois tolice gera indolência, que gera inércia e logo esquecimento. Esquecimento conduz ao amor próprio - o amor de si mesmo e dos próprios pensamentos - que é o equivalente ao amor do prazer e do louvor. Do amor de si vem a avareza, a raiz de todos os males (cf. Timóteo 6;10), pois ela nos enreda nos assuntos do mundo e neste sentido conduz a completa falta de consciência acerca dos bens de Deus e de nossas faltas. E assim os oito vícios tomam residência em nós; glutonaria, que conduz à falta de castidade, que gera avareza, que dá nascimento à ira quando deixamos de obter o que nós queremos - isto é, falhamos em ter nosso próprio caminho. Isto produz dejeção, e dejeção engendra primeiro apatia e então autoestima; e autoestima conduz ao orgulho. Destas oito paixões vêm todo mal, paixão e pecado. aqueles consumidos por elas são levados ao desespero e posteriormente à destruição; eles caem longe de Deus e se tornam como demônios, como já foi dito.

O homem se vê numa encruzilhada entre retidão e pecado e ele escolhe o caminho que o agrada. Mas após o caminho que ele escolheu seguir, vêm os seus guias, ou anjos e santos ou então demônios e pecadores, que o conduzirão para o fim, mesmo que ele não tenha nenhuma desejo de ir até lá. os bons guias o conduzirão para Deus e o reino dos Céus, os maus guias o conduzirão para o mau e a punição vindoura. Mas nada nem ninguém é  culpado por nossa destruição, senão nossa própria livre vontade. Pois Deus é Deus de salvação, conferindo-nos, além de ser e bem estar, o conhecimento e força que nós não podemos ter a não ser pela Graça de Deus. Nem mesmo o demônio pode destruir um homem, compelindo-o a escolher erradamente, ou reduzindo-o à impotência ou à ignorância forçada, ou a qualquer outra coisa: ele pode apenas sugerir o mal ao homem.


Assim, aquele que age corretamente deve atribuir a graça de agir assim a Deus, pois juntamente com o nosso ser, Ele nos deu todo o resto. Mas a pessoa que optou pelo caminho do mal, e atualmente faz o mal, deve culpar apenas a si mesmo, pois ninguém pode forçá-lo a cometê-lo, uma vez que Deus o criou com livre vontade. Uma vez que ele merecerá o louvor de Deus por ter escolhido o caminho da bondade; pois ele age assim não a partir de qualquer necessidade de sua natureza, como é o caso com coisas animadas e inanimadas que participam passivamente em bondade, mas como convém a um ser que Deus honrou com os dons da inteligência. Nós mesmos deliberadamente e intencionalmente escolhemos o mal, sendo treinados nele por sua descoberta. Deus, que é bom além de toda bondade, não nos força, para não sermos forçados e ainda desobedecer e sermos ainda mais culpados. nem tira Ele de nós a liberdade que em Sua bondade Ele nos concedeu.

Aquele que quer agir corretamente, rogue a Deus em oração, e conhecimento e poder lhe serão dados. Neste sentido será evidente que a Graça concedida por Deus foi dada justamente; pois foi dada pela oração, ainda que pudesse ter sido dada sem ela. Nenhum louvor, porém, é devido ao homem que aceita o ar por meio do qual vive, sabendo que sem ele sua vida seria impossível; preferencialmente ele mesmo deve graças ao seu Criador, que lhe deu nariz e a saúde para respirar e viver. Similarmente, ele também deve agradecer a Deus por causa de Sua graça o fato de que Ele criou nossa oração, nosso conhecimento, nossa força, nossa virtude, todas as nossas circunstâncias e nós mesmos. E não apenas Ele fez isso tudo, mas Ele sem cessar faz o que quer que Ele possa para vencer nossa fraqueza e aquela de nossos inimigos, os demônios.

Mesmo o demônio, tendo perdido o conhecimento de Deus, e assim inevitavelmente tornando-se ignorante em sua ingratidão e orgulho, não pode ele mesmo saber o que fazer. Pelo contrário, ele vê o que Deus faz para nos salvar e maliciosamente aprende disto e inventa coisas similares para a nossa destruição. Pois ele odeia Deus, e sendo incapaz de lutar com Ele diretamente, ele luta contra nós que somos a imagem de Deus, pensando em vingar-se de Deus deste modo; e, como diz São João Crisóstomo, ele nos encontra obedientes para sua vontade. Por exemplo, ele vê como Deus criou Eva como ajudante de Adão, e assim ele alista a cooperação dela para causar desobediência e transgressão. Ou, novamente, Deus deu um mandamento de modo a manter Adão consciente dos grandes presentes que recebeu e agradecer seu benfeitor por eles; mas o demônio fez destes mandamentos o ponto de partida da desobediência e da morte.  A despeito dos profetas, ele promove falsos profetas; a despeito dos apóstolos, falsos apóstolos; a despeito da lei, ausência de lei; a despeito das virtudes, vícios; a despeito dos mandamentos, transgressão; a despeito da justiça, tolas heresias.

Em adição a isto, quando o diabo viu descender de Cristo os santos mártires e os pais reverenciados, aparecendo em Si mesmo ou por meio de anjos ou de alguma outra forma inefável, ele começou a fabricar ilusões numerosas, a fim de destruir as pessoas. É por conta disso que os pais em seu discernimento, escreveram que não devemos prestar qualquer atenção a tais manifestações diabólicas, se elas procedem de imagens, ou luz, ou fogo, ou alguma outra forma enganosa. pois o demônio pode nos enganar no sono ou pelos sentidos. Se aceitamos tais ilusões, ele faz o intelecto, em sua ignorância total e vaidade, perceber várias formas ou cores para que assim pensemos ser isto uma manifestação de Deus ou de um anjo. Frequentemente no sono, ou quando nossos sentidos estão acordados, ele nos mostra demônios que são aparentemente derrotados. Em suma, ele faz o que pode para nos destruir por nos fazer sucumbir a estas ilusões.

A despeito de tudo isso, o demônio cairá em sua proposta se nós aplicarmos o conselho dos santos padres: durante o tempo da oração, nós devemos manter nosso intelecto livre de forma, figura e cor e não dar acesso a qualquer coisa que seja, se luz, fogo ou qualquer outra coisa mais; e que nós devemos fazer tudo o que pudermos para confinar nossa mente somente nas palavras que estamos dizendo, já que aquele que ora apenas com a boca lança palavras ao vento e não a Deus. Pois, diferente dos homens, Deus é atento ao intelecto e não às palavras ditas. Nós devemos venerar, é dito, 'em espírito e em verdade' (João 4;24) e novamente, "Eu prefiro falar cinco palavras cujo significado eu entenda do que dez mil palavras em uma língua estranha" (1 Cor. 14: 19).

É agora que o demônio, tendo falhado em todos seus outros esquemas, nos tenta com pensamentos de desespero: ele tenta nos persuadir que no passado as coisas eram diferentes e que os homens por quem Deus realizou maravilhas para o fortalecimento da fé não eram como nós. Ele também nos fala que agora não há necessidade de tais esforços. Pois já não somos agora todos Cristãos batizados? "Aquele que crer e for batizado será salvo" (Marcos 16:16). Do que mais temos necessidade? Mas se nós sucumbirmos a esta tentação e permanecermos como nós somos, nós ficaremos completamente estéreis. Nós seremos Cristãos apenas de nome, não percebendo que aquele que creu e foi batizado deve manter todos os mandamentos de Cristo; e mesmo aquele que for capaz de realizar isso, ele deve dizer, "Eu sou um servo inútil" (Lucas 17:10), como o Senhor falou aos Seus apóstolos quando Ele os instruiu a realizar tudo o que Ele tinha previsto para eles.

Todo aquele que for batizado renuncia ao demônio dizendo, "Eu renuncio a satanás e todas as suas obras, e unir-me a Cristo e a todas as suas obras." Mas onde está sua renúncia, se você não abandona toda paixão e desiste de todo pecado que o demônio promove? Em vez disso, odiemos tais coisas com toda a nossa alma e mostremos nosso amor a Cristo através da guarda de seus mandamentos. E como nós guardaremos Seus mandamentos a menos que nós abandonemos nossa própria vontade e pensamento - a vontade e o pensamento, ou seja, aqueles que são opostos aos mandamentos de Deus?

Há frequentemente pessoas que, por causa do temperamento pessoal ou por hábito, de fato escolhem o que é bom em determinadas situações e odeiam o que é mau. E há também bons pensamentos, como atestam as Escrituras, apesar deles requererem o discernimento daqueles que possuem experiência; pois sem discernimento mesmo aqueles pensamentos que parecem bons não são de fato bons, ou chegam na hora errada, ou são desnecessários, ou indignos, ou não são adequadamente compreendidos.  Para tanto, a menos que a pergunta e aquele que se questiona sejam atentos não só às Escrituras, mas também à questão levantada, eles vão perder o sentido do que foi dito e o dano resultante será grave. Eu mesmo tenho encontrado isso freqüentemente, ao mesmo tempo com relação à pergunta e ao que é questionado; e depois de ter entendido o verdadeiro significado da passagem em discussão, fiquei espantado em aprender como as palavras podem ser as mesmas, mas o significado muito diferente.

Assim necessitamos discernir em todas as coisas se nós sabemos como agir e como fazer a vontade de Deus. Pois Deus, como criador de todas as coisas, conhece nossa natureza completamente e ordenou todas as coisas para nosso benefício; e Ele estabeleceu leis que estão de acordo com nossa natureza e não são estranhas a ela, ainda que não sejam capazes de conduzir à perfeição aqueles que voluntariamente aspiram a atingir Deus em um sentido que transcenda a natureza. Pois isto requer mais do que qualidades naturais de virgindade, pobreza voluntária, humildade - não apenas gratidão, que é natural. A humildade é mais do que natural já que o homem humilde busca toda virtude e ainda que não tenha dívidas, ele se reconhece como o maior devedor de todos. A pessoa grata, por outro lado, irá reconhecer apenas o débito que possui. Similarmente, o homem merecedor, que realiza seus atos de caridade mas se inspira em suas posses, permanece dentro dos limites da natureza, e não vai além dela como a pessoa que dá tudo o que possui. Novamente, o casamento é natural, enquanto a virgindade é mais do que uma graça natural. A pessoa que permanece nos limites da natureza é salva se ela abandona sua própria vontade e cumpre aquela de Deus; mas à pessoa que transcende estes limites, Deus dará a coroa da resistência e da glória, porque ele renunciou não apenas ao que é proibido pela lei mas também, com a ajuda de Deus, à sua própria natureza. Ele ama ao Deus supernatural com toda a sua alma e imita Seu desapego com toda sua força.

    Se somos ainda ignorantes não apenas de nós mesmos e do que fazemos, mas também do propósito do que é feito e da verdadeira finalidade de tudo, a divina Escritura e as palavras dos santos, mesmo os profetas e homens justos do antigo testamento, ou ainda os padres mais recentes, parecerão a nós contraditórios. Aqueles que desejam ser salvos parecem discordar uns dos outros. Mas na realidade este não é o caso.

Brevemente podemos dizer que na natureza das coisas, se alguém quer ser salvo, nenhuma pessoa e nenhum tempo, lugar ou ocupação podem impedi-lo. Nós não devemos, porém, agir contrariamente ao objetivo que ele tem em vista, mas devemos com discernimento referir todo pensamento ao propósito divino. As coisas não acontecem fora da necessidade: elas dependem da pessoa por meio de quem acontecem. Nós não pecamos contra nossa vontade, mas primeiro assentimos a um mau pensamento e então caímos na catividade. Então o próprio pensamento carrega o cativo à força e contra seus desejos ao pecado. O mesmo é verdadeiro com respeito aos pecados por meio da ignorância: eles surgem de pecados conscientemente cometidos. Pois a menos que um homem esteja bêbado pelo vinho ou pelo desejo, ele não está inconsciente do que ele está fazendo; mas a bebedeira obscurece o intelecto e o faz falhar, e ele acaba morrendo como resultado. Ainda que a morte não venha inexplicavelmente, ela foi inconscientemente induzida pela bebedeira para a qual nós conscientemente assentimos. Nós encontraremos muitos exemplos, especialmente em nossos pensamentos, onde passamos daquilo que temos controle para aquilo que está fora de nosso controle, e daquilo de que somos conscientes para o que é involuntário. Mas porque os primeiros nos parecem não atrativos ou desimportantes, nós caímos sem intenção e sem consciência nos segundos. No entanto, se desde o início quiséssemos guardar os mandamentos e permanecer como quando fomos batizados, nós não teríamos caído em tantos pecados e então não teríamos a necessidade de provações, tribulações e arrependimento.

Se assim desejarmos, no entanto, um dom de Deus segundo a Graça - o arrependimento - pode nos conduzir de volta à nossa beleza primeira. Mas se não nos arrependermos, inevitavelmente nós partiremos com os demônios inarrependíveis para a punição vindoura, mais por nossa livre escolha do que contra nossa vontade. "Porque Deus não nos criou para a ira, mas para a salvação" (cf. 1 Tessalonicenses 5:9), de modo que possamos aproveitar Suas bençãos, e consequentemente sermos gratos e agradecidos para com nosso Benfeitor. Mas a nossa incapacidade de conhecer seus dons nos faz indolentes, e a indolência produz esquecimento, e como resultado a ignorância se torna a senhora sobre nós.

Temos de fazer extenuantes esforços quando de início tentamos retornar de onde caímos. Pois ressentimos em abandonar nossos próprios desejos, e pensamos que podemos atender ao mesmo tempo aos desejos de Deus e aos nossos próprios - o que é impossível. O Próprio Nosso Senhor disse, "Eu vim para cumprir não com a Minha própria vontade, mas a Daquele que me enviou" (Cf. João 6:38), ainda que a vontade do Pai, do Filho e do Espírito Santo sejam uma única, já que constituem uma natureza singular inseparável. Mas Ele disse isso levando-nos em conta e com respeito à vontade da carne. Pois se a carne não é consumida e se um homem não é plenamente conduzido pelo Espírito de Deus, ele não fará a vontade de Deus a menos que ele seja forçado a isto. Mas quando a graça do Espírito rege o seu interior, então ele não tem mais vontade própria, mas o que ele faz está de acordo com a vontade de Deus.  Então ele está em paz. Homens como estes serão chamados Filhos de Deus (cf. Mateus 5:9), porque eles farão a vontade de Seu Pai, como fez o Filho de Deus que é também Deus.

É impossível descobrir a vontade de Deus a menos que guardemos os mandamentos, consequentemente cortando toda vontade ou prazer pessoal e a menos que suportemos toda a dor que isto envolve. Como foi dito, prazer e dor nascem da loucura e eles dão origem a todo mal. Pois o homem tolo ama a si mesmo e não pode amar seu irmão ou Deus; ele não pode refrear os prazeres ou desejos que lhe dão satisfação, nem pode suportar a dor. Algumas vezes ele consegue o que ele quer, e então ele é preenchido com prazer e alegria; algumas vezes ele não consegue, e então ele é completamente dominado pela dor que isto engendra, e então ele é rejeitado, sentindo uma antevisão do inferno.

Do conhecimento, ou entendimento, nasce o autocontrole e o sofrimento paciente. Pois o homem do entendimento restringe sua própria vontade e suporta a dor que disso resulta; e, reconhecendo a si mesmo como indigno de alguma coisa agradável, ele está agradecido de seu Benfeitor, temendo por conta das numerosas bençãos que Deus lhe concedeu neste mundo, ele sofreria a punição no mundo por vir. Assim, através do autocontrole, ele pratica também as outras virtudes. Ele olha a si mesmo como estando em débito com Deus em relação a tudo, não encontrando nada com que ele possa pagar ao seu Benfeitor, e chegando a pensar que suas virtudes aumentam o débito. Pois ele recebe e nada tem a dar. Ele apenas pede que possa lhe ser permitido oferecer Graças a Deus. Ainda mesmo pelo fato de que Deus aceite seu agradecimento, assim ele pensa, ainda aumentará seu débito. Mas ele continua a dar graças, mesmo fazendo o que é bom e considerando a si mesmo como um grande devedor, em sua humildade julgando-se a si mesmo como estando abaixo de todos os homens, deleitando-se em Deus seu Benfeitor e tremendo mesmo quando se alegra (cf. Salmo 2:11).

À medida que se avança através da humildade para o conhecimento e amor divino, nós aceitamos sofrer como merecemos. De fato, ele pensa merecer mais sofrimento do que o que ele encontra; e ele está feliz que ele seja agraciado com alguma aflição neste mundo, pois por elas ele pode ser poupado da porção de punição que lhe foi reservado no mundo a ser. E por conta de tudo isso ele conhece sua própria fraqueza, e por isso ele não deve exultar, e porque ele foi descoberto digno de conhecer e suportar estas coisas pela Graça de Deus, ele é preenchido com uma forte saudade de Deus.

A humildade nasceu do conhecimento espiritual, e tal conhecimento nasceu de provações e tentações. Para a pessoa que conhece a si mesma é dado conhecimento de todas as coisas (Clemente de Alexandria, Pedagogo III), e aquele que se sujeita a Deus coloca tudo sob seu controle; e então todas as coisas são sujeitas a ele, pois ele é completamente humilde. De acordo com São Basílio e São Gregório de Nazianzo, aquele que conhece a si mesmo - que sabe que ele está a meio caminho entre a nobreza e a baixeza, já que ele tem uma alma capaz de conhecimento espiritual e um corpo mortal e terreno - nunca exulta ou se desespera. De preferência, com um sentimento de vergonha diante de sua alma, ele rejeita tudo o que é vergonhoso, e conhecendo sua fraqueza, ele encolhe todo sentimento de euforia.

Assim, aquele que conhece sua própria fraqueza depois de passar por muitas tentações e provações, que sofre com as paixões da alma e do corpo, entende o poder incomensurável de Deus e como Ele redime o humilde que clama a Ele por meio de oração persistente das profundezas de seu coração. Para tal pessoa a oração torna-se um deleite. Ele sabe que sem Deus ele não pode fazer nada (cj. João 15:5), e em seu medo de cair, ele se esforça para se unir a Deus, e ele fica espantado como ele considera como Deus tem o resgatado de tantas tentações e paixões. Ele dá graças ao seu Salvador, e para sua ação de graças ele acrescenta humildade e amor; e ele não ousa julgar quem quer que seja, sabendo que como Deus o ajudou, assim Ele pode ajudar a todos os homens quando Ele o desejar, como diz São Máximo. Ele sabe também que se uma pessoa percebe sua fraqueza, ele pode ser capaz de lutar e vencer muitas paixões; pois em tal caso Deus rapidamente vem em sua assistência para que sua alma não seja destruída. E por muitas outras razões também a pessoa que reconhece sua própria fraqueza não cai. Ninguém pode atingir este reconhecimento a menos que antes sofra muitas tentações de alma e corpo, e ganhe experiência por sofrê-las pacientemente e assim superá-las com a ajuda de Deus.

Tal homem não ousa agir de acordo com suas próprias volições ou seguir suas próprias ideias sem primeiro questionar aqueles com experiência. Pois o que ganha uma pessoa ao escolher fazer ou pensar  algo que não contribua para sua vida corporal ou para a salvação de sua alma? E se ele não conhece o que deseja abandonar e o que ele poderia por de lado, deixe-o testar cada ação e cada pensamento, e mantendo-os em exame, perceber como tais pensamentos o afetam. Se algo lhe traz prazer mas ao resisti-lo lhe trazem dor, então essa coisa é ruim e deve ser rejeitada antes que se enraíze; de outro modo ele achará difícil vencê-la mais tarde, quando ele perceber que tal coisa o prejudica. Isto se aplica a toda ação e pensamento que não nos ajuda a nos manter vivos e de acordo com a vontade de Deus. Pois um hábito de longa data toma a força da própria natureza; mas se você não der força a ele, ele se enfraquece e é gradualmente destruído. Se um hábito é bom ou mau, o tempo o alimenta, como a madeira alimenta o fogo. Assim, na medida que pudermos, devemos cultivar e praticar o que é bom, de modo que se torne um hábito estabelecido que opera automaticamente e sem esforço, quando necessário. Foi por meio de vitórias nas pequenas coisas que os padres ganharam suas grandes batalhas.

 Pois se um homem se recusa a satisfazer até as necessidades básicas do corpo e rejeita-as a fim de passar essa vida de forma estreita e apertada, como ele pode ser vítima do amor pelas posses? Amor pelas posses consiste não meramente em possuir muitas coisas, mas também em apegar-se a elas, ou no seu mau uso, ou no seu uso excessivo. Pois muitos santos da antiguidade, como Abraão, Jó, Davi e muitos outros, tinham muitas posses, mas eles não estavam apegados a elas: eles a consideravam como presentes de Deus e procuraram agradá-Lo ainda mais através do uso delas. Entretanto o Senhor, estando além da perfeição e sendo a própria sabedoria, ataca na raiz; pois Ele insta aqueles que O seguem através da imitação suprema da virtude a renunciar não apenas aos bens e posses materiais, mas mesmo à sua própria alma (cf. Lucas 14:26), isto é, aos seus próprios pensamentos e vontade.

Porque eles sabiam isto, os padres fugiram do mundo, vendo-o como um obstáculo à perfeição; e não apenas do mundo mas também de sua própria vontade pela mesma razão. Nenhum deles jamais fez o que propriamente queria. Alguns viveram em obediência corporal, assim que no lugar de Cristo teriam um pai espiritual os guiando em cada pensamento. Outros, fugindo totalmente da sociedade humana, viveram no deserto e tiveram o próprio Deus como seu professor, por quem escolheram viver uma morte voluntária. Outros seguiram o "caminho real", levando a vida em silêncio ao lado de um ou dois companheiros: estes tinham um ou outro como conselheiro para se fazer a vontade de Deus. E aqueles que, depois de se submeterm ao pai espiritual, fossem então apontados por eles para tomar cuidado de outros irmãos, realizavam suas tarefas como se ainda estivessem em obediência, mantendo as tradições de seus pais espirituais. Assim, todos os esforços eram abençoados por Deus.

Hoje em dia, porém, mesmo se estamos sob a obediência ou autoridade, não queremos abandonar nossa própria vontade, e assim, nenhum de nós faz qualquer progresso. Não obstante, é ainda possível escapar da sociedade humana e dos afazeres mundanos, e tomar o "caminho real" ao se viver uma vida de silêncio com um ou dois outros, estudando os mandamentos de Cristo e todas as Escrituras, dia e noite. Por este meio, ao ser testado em todas as coisas por consciência e aplicação, leitura e oração, talvez possamos atingir o primeiro mandamento, o temor de Deus, que vem através da fé e do estudo das Sagradas Escrituras; e através disso nós possamos alcançar tristeza interior, e asim chegar aos mandamentos de que São Paulo fala: fé, esperança e caridade (cf. I Coríntios 13;13). Pois aquele que tem fé no Senhor teme o castigo; e este medo incita-o a manter os mandamentos. A manutenção dos mandamentos o conduz a suportar as aflições; e suportar as aflições produz esperança em Deus. Tal esperança separa o intelecto de todo apego material, e a pessoa liberta de tais apegos possui amor por Deus. Quem seguir este caminho será salvo. 

Silêncio, que é a base da purificação da alma, faz a observância dos mandamentos relativamente sem dor. "Fuja", foi dito,"mantenha o silêncio, seja quieto, pois nisso jaz as raízes da impecabilidade". Novamente foi dito: "Fuja dos homens e serás salvo". Pois a sociedade humana não permite que o intelecto perceba suas próprias falhas ou artimanhas dos demônios, assim é preciso guardar-se contra eles. Nem, por outro lado, é permitido ao intelecto perceber a bondade e providência de Deus, de modo a auxiliá-lo no aconhecimento de Deus e na humildade.

A razão é que quem deseja viajar na rota estreita de Cristo - a rota do desapego e do conhecimento espiritual - e alegremente atingir a perfeição, não pode virar nem para a direita nem para a esquerda, mas em toda a sua vida, deve viajar diligentemente no caminho real. Ele deve orientar um curso médio entre excesso e insuficiência, já que ambos engendram prazer. Ele não deve obscurecer o intelecto com excessiva comida e convivialidade, fazendo-se cego com tais distrações; mas nem deve ele nublar sua mente com excesso de jejuns e vigílias. De preferência, ele deve cuidadosamente e pacientemente praticar as sete formas de disciplina corporal como se subisse uma escada, dominá-las de uma vez por todas e avançar para que o estado moral nas quais, como disse o Senhor (cf. Mateus 13: 11-12), pela Graça de Deus os diferentes estágios da contemplação espiritual são dados ao crente.

 Toda a Escritura é inspirada por Deus e é aproveitável (cf. 2 Timóteo 3: 16), e ninguém pode frustrar alguém que deseje ser salvo. Apenas Deus que nos fez tem o poder sobre nós, e Ele está pronto a ajudar e proteger de toda tentação aquele que clama a Ele e quer fazer Sua santa vontade. Sem Ele, nada podemos fazer (cf. João 15:5), nós não podemos sofrer nenhum mal involuntário a menos que Deus o permita de modo a nos castigar e salvar nossas almas. Mas o mal que cometemos é nossa própria responsabilidade e surge de nossa própria preguiça com o apoio dos demônios. Por outro lado, todo conhecimento, força e virtude são graças de Deus, como são todas as outras coisas. E através da Graça, Ele deu a todos os homens o poder de se tornarem filhos de Deus (cf. João 1: 12) na guarda dos divinos mandamentos. Ou, de preferência, estes mandamentos nos guardam, e são a graça de Deus, já que sem Sua graça nós não podemos guardá-los. Não temos nada a Lhe oferecer senão nossa fé, nossa resolução e, em suma, todos os verdadeiros dogmas que defendemos com firme fé através dos ensinamentos que ouvimos (cf. Romanos 10:7). Com tudo isso em mente, estabeleçamos nosso trabalho sem distração, como se fosse início das aulas na escola, e deste modo aprendamos cuidadosamente sobre as sete formas de disciplina as quais nos referimos. 

domingo, 16 de dezembro de 2012

Sobre a Oração do Senhor

Esse texto também é de São Máximo Confessor, e fala acerca da oração de Jesus, o Pai Nosso. Tipo de meditação recorrente ao longo da tradição cristã, sendo bastante conhecida a análise feita por Santo Agostinho dessa mesma oração.
A edição que usei é a mesma das 400 Centúrias sobre o amor. As páginas são de 285 a 305.


Sobre a oração do Senhor

Uma breve interpretação endereçada a um devoto cristão

Eu, Senhor, ao ter recebido suas cartas inspiradoras, o recebi em sua própria pessoa. De fato, você sempre esteve presente em espírito e não pode possivelmente estar ausente. Mas, seguindo o exemplo de Deus, você, em sua bondade, também aproveitou a oportunidade dada a você por Deus para se comunicar com os seus servos.  Eu tenho grandemente admirado sua humilhação de si mesmo, tenho atenuado meu medo por ti com afeição, e por eles formei um amor baseado no respeito e boa vontade. Ambos combinados com o medo e desprovidos de afeição, devem se verter em ódio, ou afeição desprovida de medo, se verte em excessiva familiaridade. Neste caso, o amor se torna uma lei íntima de ternura, assimilando tudo e tornando-o semelhante a ele, dominando o ódio pela boa vontade e a excessiva familiaridade com o respeito.

Davi, o salmista disse, "O temor do Senhor é puro e permanece para sempre" (Salmo 19:9), porque ele sabe que de todas as coisas o temor é a mais capaz de preservar o amor divino. Tal medo, ele percebe ser muito diferente do medo de ser punido por um crime. Este segundo tipo de medo é inclusive derrubado e destruído pelo amor, como João Evangelista deixa claro quando escreve, "O amor lança fora o temor" (I João 4:18). Mas o temor do qual Davi se refere é expressão natural da lei da verdadeira ternura; e é por este temor que os santos sempre mantém intacto o papel e prática do amor, tanto por Deus quanto pelo próximo.

Assim, conforme eu disse, também moderei meu temor por ti, Senhor, com afeição e tenho mantido esta lei do amor até agora. Até aqui tenho sido impedido de escrever, através do respeito, porque não desejo abrir a porta da excessiva familiaridade; mas agora eu fui impelido a escrever através da boa vontade, para que a minha falta de escrita não seja interpretada como ódio. E assim, como requerido, eu escrevo, não o que eu penso - pois, como a Escritura diz, "os pensamentos dos homens são patéticos" (Sabedoria 9:14) - mas o que Deus quer e concede pela Graça para que o bem possa chegar, pois "O Conselho do Senhor permanece para sempre" diz Davi, "e os pensamentos de Seu coração de geração em geração" (Salmo 33:11). Talvez o conselho de Deus Pai para o qual Davi aqui se refere seja o insondável despojamento do Filho Unigênito que ocasionou a deificação de nossa natureza e pela qual ele estabeleceu um limite para as eras; e talvez os pensamentos de Seu Coração sejam o princípio da providência e julgamento pelo qual Ele sabiamente ordena nossa vida presente e futura como se elas fossem gerações separadas, atribuindo a cada uma seu modo de atividade apropriada.

Se o propósito do divino conselho é a deificação de nossa natureza, e o objetivo dos pensamentos divinos é fornecer os pré requisitos de nossa vida, segue que devemos tanto conhecer e levar a efeito a poderosa Oração do Senhor, e escrever sobre ela em um sentido próprio. E já que o senhor ao escrever para mim seu servo foi inspirado por Deus a mencionar em particular esta oração, este é necessariamente também o assunto de minhas palavras; portanto eu suplico ao Senhor, que nos ensinou esta oração, para abrir meu intelecto para que o mesmo possa compreender os mistérios contidos nela, e dar-me palavras similares para a tarefa de elucidar o que eu compreendi. Pois como que oculta no interior de uma pequena bússola, esta oração contém a proposta e objetivo principal dos quais já falamos; ou, de preferência, ela abertamente proclama esta proposta e objetivo para aqueles cujos intelectos são fortes o bastante para percebê-los. A Oração inclui as petições por tudo o que o Divino Logos efetuou por meio de Seu auto-esvaziamento na encarnação, e ela nos ensina a nos esforçar por obter aquelas bençãos das quais apenas obtemos pelo Deus provedor, o Pai, mediante a natural mediação de Seu Filho no Espírito Santo. Pois o Senhor Jesus é o mediador entre Deus e os homens, como o divino apóstolo fala (cf. 1 Tim. 2:5), já que Ele torna manifesto o Pai desconhecido por meio da carne, e dá àqueles que foram reconciliados a Ele o acesso ao Pai por meio do Espírito Santo (cf. Efésioa 2:18). Foi em nome deles e para a salvação deles que sem mudança fez-Se homem, e é agora o autor e professor de tantos e tão imensos mistérios ainda além de nosso entendimento.

Destes mistérios que Ele concedeu aos homens em Sua generosidade sem limites, sete são de significação mais geral; e por meio deles um poder oculto repousa na Oração do Senhor. Estes sete são a teologia, a adoção como filhos pela Graça, a igualdade com os anjos, a participação na vida eterna, a restauração da natureza humana quando ela é reconciliada a si mesma sem apego, a abolição da lei do pecado, e a destruição da tirania que nos mantém em seu poder através do engano do maligno.

Examinaremos a verdade do que dissemos. Teologia é ensinada pelo Logos encarnado de Deus, já que Ele revela em Si Mesmo o Pai e o Espírito Santo. Pois o todo do Pai e o todo do Espírito Santo estavam presentes essencialmente e perfeitamente no todo do Filho Encarnado. Eles mesmos não se tornaram encarnados, mas o Pai aprovou e o Espírito cooperou quando o Próprio Filho efetuou Sua encarnação. Na encarnação o Logos preservou Seu intelecto e Sua vida intactos: exceto pelo Pai e o Espírito Ele não estava compreendido em essência por qualquer outro ser que seja, mas em Seu amor pelos homens estava unido hipostaticamente com a carne.

O Logos concede adoção em nós quando Ele nos garante nascimento e deificação que transcendem a natureza, pela Graça do Alto através do Espírito. A guarda e preservação daqueles que assim nasceram em Deus depende da determinação deles na aceitação sincera da Graça que lhes foi concedida, por meio da prática dos mandamentos e no cultivo da beleza dada a eles pela graça. Mais ainda, esvaziando-se das paixões que os afastam do divino com a mesma intensidade com que Ele mesmo esvaziando-se de Sua própria Glória Sublime, de Logos Divino tornou-se verdadeiramente homem.

O Logos fez os homens iguais aos anjos. Não apenas Ele "reconciliou pelo sangue de Sua Cruz ... coisas na terra e no Céu" (Colossenses 1:20), e reduziu à impotência os poderes hostis que ocupam a região intermediária entre céu e terra, unificando os poderes celestes e terrestres num singular encontro para a distribuição de Seus divinos dons, com a humanidade alegremente unida com os poderes do alto em louvor unânime da Glória de Deus; mas também, depois de cumprir o propósito realizado em nosso nome, quando Ele foi levado com o corpo que Ele tinha assumido, Ele uniu céu e terra em Si mesmo, juntou o que é sensível com o que é inteligível, e revelou a criação como um todo singular cujos extremos estão unidos tanto pela virtude quanto pelo conhecimento da Causa Primeira deles. Penso que Ele mostrou através do que Ele cumpriu misticamente, que o Logos une o que está separado e que a alienação do Logos divide o que é unido. Aprendamos, então, a continuar o esforço mesmo após a prática das virtudes, de modo que pelo Logos possamos ser unidos aos anjos não apenas por meio das virtudes, mas ao próprio Deus, em conhecimento espiritual mediante afastamento das coisas criadas.

O Logos nos capacita a participar da vida divina ao se fazer Ele mesmo nossa comida, de um modo inteligível a Si mesmo e àqueles que receberam dele uma percepção noética deste tipo. É por provar esta comida que eles se tornam verdadeiramente conscientes de que o Senhor é pleno de virtude (cf. Salmo 34:8). Pois Ele transmuta em divindade aqueles que O comem, proporcionando-lhes Deificação, já que Ele é o pão da Vida e do poder, tanto no nome quanto na realidade.

Ele restaura a natureza humana em si mesma. Primeiro, Ele se tornou homem e manteve Sua vontade livre de paixões e de rebeldia contra a natureza, de modo que Ele não vacilou nem um pouco de seu próprio movimento natural, mesmo com relação àqueles que o crucificaram; pelo contrário, Ele escolheu a morte por causa deles, ao invés da vida, demonstrando desse modo o caráter voluntário de sua paixão, enraizada em seu Amor pela humanidade. Em Segundo Lugar, tendo pregado na Cruz o registro de nossos pecados (cf. Col. 2:14), Ele aboliu a inimizade que levou a natureza a travar uma guerra implacável contra si mesma e tendo convocado os que estavam fora e próximos - isto é, aqueles sob a Lei e aqueles fora dela - e tendo quebrado a parede obstrutiva que dividia os homens - explicando a Lei dos mandamentos a partir de seus ensinamentos a estas duas categorias de humanidade - Ele formou os dois em um novo homem, fazendo a paz e reconciliando-nos através de si mesmo ao Pai e ao outro (cf. Efésios 2:14-16): nossa vontade não é mais oposta ao princípio de natureza, mas nós aderimos a ela sem desvio em qualquer vontade ou natureza.

O Logos purifica a natureza humana da lei do pecado não permitindo que a sua Encarnação para nossa salvação seja precedida de prazeres sensuais. Pois sua concepção tomou lugar miraculosamente sem semente, e seu nascimento supranatural sem a perda da virgindade de sua mãe. Isso significa dizer que, quando Deus nasceu de Sua mãe, pelo Seu nascimento Ele mostrou por meio da virgindade dela a superação da natureza; e naqueles que estavam desejando que Ele libertasse o todo da natureza humana da regra opressiva da lei que a domina, na medida em que eles imitam Sua morte voluntária ao mortificar os aspectos terrenos deles mesmos (cf. Colossenses 3:5). Pois o mistério da salvação pertence àqueles que o escolheram, não aqueles que são compelidos pela força.

O Logos destrói a tirania do mal, que nos domina através do engano, por triunfantemente armar-se contra ele, a carne corrompida de Adão. Neste sentido Ele mostra que o que foi uma vez capturado e feito matéria de morte agora captura o capturador: por uma morte natural destrói-se a vida do capturador tornando-se um veneno para ele, fazendo-o vomitar todas aquelas coisas que ele era capaz de fazer porque estava sob o poder da morte. Mas para a humanidade torna-se vida, como o fermento na massa impulsionando toda a natureza a crescer como massa na ressurreição da vida (cf. I Coríntios 5:6-7). Foi para conferir esta vida que o Logos que era Deus feito homem - coisa verdadeiramente inédita - aceitou de bom grado a morte da carne.

A oração do Senhor, como eu disse, contém uma petição para cada uma destas coisas. Primeiro, ela fala do Pai, Seu nome, e seu Reino. Segundo, ela nos mostra que a pessoa que reza é por Graça Filho deste Pai. Solicita que aqueles que estão tanto no céu quanto na terra possam ser unidos em uma única vontade. Fala-nos para pedir pelo pão diário. Estabelece que os homens devam ser reconciliados uns com os outros e une nossa natureza consigo mesma quando perdoamos e somos perdoados, pois então ela não se divide em pedaços, separando a vontade do propósito. Ensina-nos a rezar para não entrar em tentação, uma vez que é esta a lei do pecado. E exorta-nos a pedir que sejamos livres do mal. Pois o autor e doador das bençãos divinas não podia ser nosso professor, provendo as palavras da oração como preceitos de vida para aqueles discípulos que NEle creram e ao mesmo tempo seguir o caminho que Ele ensinou na carne. Através destas palavras Ele revelou os tesouros ocultos da sabedoria e do conhecimento (cf. Colossenses 2:3) que em forma pura existem NEle; e para todos aqueles que oferecem esta oração Ele estimula o desejo de gozar de tais tesouros.

É por esta razão, eu penso, que a Escritura chama este ensinamento de "oração", já que ela contém petições para os dons que Deus dá aos homens pela graça. Nossos pais divinamente inspirados explicaram a oração em um sentido similar, dizendo que a oração é uma petição pela qual Deus naturalmente dá aos homens na maneira apropriada a Ele, enquanto uma promessa (voto), conversivamente, é uma promessa de que os homens que veneram a Deus sinceramente resolvem oferecer a Ele. Os pais citam muitos textos das Escrituras para ilustrar esta distinção tais como "Fazei votos ao Senhor nosso Deus e cumpri-os" (Salmo 76: 11), e "Eu pagarei o que a Ti votei" (Jonas 2:10), que se referem aos votos. Sobre o tema da oração, eles citam por exemplo alguns textos como este: "Ana orou ao Senhor dizendo: O Senhor dos exércitos, se o Senhor queres de fato ouvir a Tua serva e dar-me uma criança" (cf. 1 Samuel 1:11),  "Ezequias, rei de Judá, e o profeta Isaías o filho de Amós oraram ao Senhor" (cf. 2 Crônicas 32:20), e "Portanto orareis assim: Pai Nosso que estás no Céu" (Mateus 6:9), como o Senhor disse aos discípulos. Consequentemente, um voto é uma decisão de manter o mandamento, confirmado por uma promessa na parte da pessoa que fez o voto; e uma oração é uma petição por aquele que manteve o mandamento que pode ser transformado pelo mandamento que ele manteve. Ou, de preferência, um voto é uma luta por virtude que Deus acolhe mais prontamente sempre que é oferecido a Ele; e orar é o preço da virtude que Deus dá alegremente quando a luta é vencida.

Já que então a oração é a petição pelas bençãos dadas pelo Logos Encarnado, façamos dele nosso mestre na Oração. E quando tivermos contemplado o sentido de cada frase tão cuidadosamente quanto possível, vamos apresentá-la com confiança; pois o Próprio Logos nos dá, de uma maneira que é melhor para nós, a capacidade para entender o que ele diz.

"Pai Nosso que estás nos céus, santificado seja o Vosso nome; venha a Nós o Vosso Reino" (Mateus 6:9-10). Convém que desde o início o Senhor ensine àqueles que rezam a começar pela teologia, e deve iniciá-los no modo de existência dEle que é por essência a Causa criadora de todas as coisas. Pois estas palavras abertas da oração contém uma revelação do Pai, do nome do Pai, e do reino do Pai, de modo que desde o início possamos ser ensinados a reverenciar, invocar e adorar a Trindade na unidade. Pois o nome de Deus Pai existe em forma substancial como do Filho Unigênito. Novamente, o Reino de Deus Pai existe em forma substancial como Espírito Santo: o que Mateus chama "Reino" neste contexto um dos outros Evangelistas chama em outro lugar de "Espírito Santo", dizendo, "Que teu Espírito Santo venha e nos purifique". (Lucas 11:2). Pois o nome do Pai não é alguma coisa que Ele adquiriu, não é o reino uma dignidade atribuída a Ele: Ele não teve início, de modo que em um certo momento Ele começasse a ser Pai ou Rei, mas Ele é eterno e é eternamente Pai e Rei. Em nenhum sentido, consequentemente, ele começou a existir ou começou a ser Pai ou Rei. E se Ele existe eternamente, não apenas Ele é eternamente Pai e Rei mas também o Filho e o Espírito Santo coexistem nEle eternamente em forma substancial, tendo seu Ser dEle e por natureza inerindo a Ele além de qualquer causa ou princípio: Eles não são sucessivos a Ele, nem vieram eles a existência após Ele de maneira contingente. A relação de co-inerência  entre as Pessoas abraça as três ao mesmo tempo, não permitindo que uma das três seja reconhecida como primeira ou emanação das outras.

No início desta oração, então, nós honramos a coessencial e supra-essencial Trindade como a causa criadora de nossa vinda à existência. Em segundo lugar, nós somos instruídos a proclamar a graça de nossa adoção, já que nos descobrimos dignos de nos endereçar ao Criador por natureza como nosso Pai pela graça. Assim, venerando este título causado pela graça, nós nos esforçamos para estampar nosso Criador como nosso Pai, mostrando-nos ser Suas crianças por esta adoção, que é por natureza Filho do Pai.

Nós reverenciamos ou santificamos o nome do nosso Pai pela graça quando nós mortificamos nosso desejo por coisas materiais e nos purificamos das paixões corruptoras. Pois santificação é verdadeiramente a completa mortificação e a cessação do desejo nos sentidos. Quando nós alcançamos isso, nós amenizamos a rude turbulência de nossos próprios prazeres apetitivos, pois o desejo que a desperta a persuade a lutar por seus próprios prazeres agora que ela foi debelada pela santidade. Pois a ira, sendo por natureza a protagonista do desejo, pára por sua própria vontade, uma vez que vê seu desejo morto.

Para repudiar ira e desejo devemos invocar a regra do Reino de Deus o Pai que com as palavras "Venha a nós o Vosso Reino" (Mateus 6:10), isto é, "Possa vir o Espírito Santo"; pois ao por de lado estas coisas, nós nos fazemos agora templo de Deus através do Espírito Santo pelo ensinamento e prática da gentileza. "Que me leva a descansar", diz a Escritura, "mas aquele que é manso e humilde, teme as minhas palavras" (cf. Isaías 66:2). É claro disto que o Reino de Deus pertence aos mansos e humildes. Pois "bem aventurados os mansos, pois herdarão a terra" (Mateus 5:55). Não é a terra física,  que ocupa o universo, que Deus promete como herança àqueles que o amam - não, pelo menos, se Ele está falando verdadeiramente quando diz, "Na ressurreição eles nem se casam nem se dão em casamento, mas são como anjos no céu" (Mateus 22:30) e "Venha, você a quem meu Pai abençoou, herde o Reino preparado para você desde a fundação do mundo" (Mateus 25: 34), e novamente, em outra parte, alguém que se esforçar com boa vontade, "Entrará na alegria de nosso Deus" (Mateus 25:21). E após o Senhor, São Paulo diz: "A trompeta soará e primeiro os que morreram em Cristo ressuscitarão incorruptos; então nós que estivermos vivos seremos arrebatados com eles nas nuvens para encontrar o Senhor no ar; e assim nós estaremos com o Senhor para sempre". (I Tessalonicenses 4: 16-17).

 Já que estas coisas foram prometidas àqueles que amam o Senhor, o que um homem solicitado pela inteligência e desejoso de servi-la diria, de uma leitura literal das Escrituras apenas: que o céu e o reino preparado desde a fundação do mundo, e a alegria misticamente ocultada do Senhor, e a morada perpétua com o Senhor aproveitada pelos santos, são para ser identificados com o que é terreno? Neste texto (Mateus 5:5) eu penso que a palavra "terra" significa a resolução e força da estabilidade inerente, imovivelmente enraizada na bondade, que é característica das pessoas mansas. Esse estado de estabilidade existe eternamente com o Senhor e contém  uma alegria infalível, capacitando os mansos a obter o reino preparado desde o início, e tem sua estadia e dignidade no céu. Também permite os mansos a inerir ao princípio da virtude, como se a virtude fosse a terra que ocupa o universo. Pois as pessoas mansas abraçam uma posição intermédia entre honra e descrédito, e permanecem sem apego, nem inchadas pela honra, nem humilhadas pelo descrédito. Pois a inteligência é por natureza superior tanto ao louvor quanto à vergonha; e assim, quando se põe de lado o desejo sensual, não se é mais perturbado nem por um nem por outro, tendo ancorado todo o poder da alma na divina e inatacável liberdade. O Senhor, querendo transmitir esta liberdade aos seus discípulos, diz, "Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração; e você encontrará repouso para suas almas" (Mateus 11:29). Ele chama a regra do Reino Divino de "repouso" porque ele confere naqueles dignidade de uma senhoria livre de toda a servidão.

Se o poder indestrutível do puro reino é dado aos mansos e humildes, qual homem será tão completamente sem amor e sem disposição para a benção divina que não desejará o mais alto grau de humildade e mansidão de modo a assumir o selo do conhecimento divino, tanto quanto isso é possível aos homens, e carregar em si mesmo pela graça uma semelhança espiritual de Cristo, que é por natureza o Rei verdadeiramente grande? Nesta semelhança, diz São Paulo, "não há homem nem mulher" (Gálatas 3:28), isto é, não há nem ira nem desejo. Destes, a primeira tiranicamente perverte o julgamento e faz a mente trair a lei de natureza: enquanto o segundo despreza a única causa desapegada  e a natureza, que apenas é verdadeiramente  desejável, em favor do que é inferior, dando preferência à carne e não ao espírito, e considerando o prazer mais nas coisas visíveis do que na magnificência e glória das realidades inteligíveis. Neste sentido, com a lubricidade dos prazeres sensuais ele seduz o intelecto da divina percepção das realidades espirituais que é próprio a ele.

É nosso próprio papel fazer a inteligência ficar sozinha, despojada das virtudes desta afecção pelo corpo; pois esta afecção, mesmo quando totalmente desapaixonada, é ainda natural. O espírito, completamente triunfante sobre a natureza, tem de persuadir o intelecto a desistir da filosofia moral de modo a comungar com o Logos supraessencial através da contemplação direta e individida, a despeito do fato de que a filosofia moral ajude o intelecto a isolar-se indo para além das coisas que estão no fluxo do tempo. Pois quando o intelecto tornou-se livre de sua união aos objetos sensíveis, ele não fica sobrecarregado mais tempo com preocupações acerca da moralidade que é como um manto felpudo.

Elias claramente revela este mistério de forma tipológica através de suas ações (cf. 2 Reis 2:11-14). Pois quando ele foi transportado para o Céu, ele deu a Eliseu sua capa, isto é, a mortificação da carne que constitui a principal glória da conduta moral. Ele fez isso assim que Eliseu recebeu o apoio do Espírito em sua batalha contra os poderes hostis e triunfando sobre o fluxo e instabilidade da natureza, tipificado pelo Jordão; assim que, em outras palavras, ele não seria imerso na turbidez e lodo do apego material e, assim, impedido de cruzar a terra santa. Entretanto, o próprio Elias avançou livremente para Deus, não onerado pela união a qualquer criatura criada. Por ser o seu desejo não dividido e sua vontade não misturada, ele fez sua morada com Ele que é simples por natureza, conduzido que foi para lá pelas virtudes cardeais independentes, espiritualmente avançado como um cavalo de fogo.

Elias sabia que o discípulo de Cristo não deve possuir disposições desequilibradas, pois tal diversidade é prova de uma falta de unidade interior. Assim a paixão de desejo produz uma difusão de sangue em torno ao coração, e o poder apetitivo quando desperto faz com que o sangue ferva. Aquele que já vive, se move e tem seu Ser em Cristo (cf. Atos 17:28) anulou em si mesmo a produção do que é desequilibrado e desunido: como eu disse, ele não carrega em si, como macho e fêmea, as oposições dispostas de tais paixões. Neste sentido, a inteligência não é escravizada pelas paixões e sujeita à sua inconstância. Naturalmente dotada com a santidade da imagem divina, a inteligência impele a alma a conformar-se por sua própria escolha à divina semelhança. Neste sentido a alma é também capaz de participar no grande Reino que existe de maneira substantiva em Deus, o Pai de tudo, e torna-se uma morada translúcida do Espírito Santo, recebendo - se isso pode ser expresso deste modo - a inteira autoridade do conhecimento da natureza divina tanto quanto isto é possível. Tanto quanto prevalece esta autoridade, a produção do que é inferior automaticamente se encerra e apenas o que é superior é gerado; pois a alma que pela Graça deste chamado se assemelha a Deus mantém inviolada em si mesma a substância das bençãos que lhe foram atribuídas. Em almas tais como estas Cristo sempre deseja ser nascido de maneira mística, tornando-se encarnado naqueles que atingem a salvação, e fazendo da alma que lhe dá nascimento uma Virgem Mãe; pois tal alma, para falar brevemente, não condicionada por categorias como macho e fêmea que tipificam a natureza sujeita à geração e corrupção.

Não se choque ao me ver falar da corrupção que é inerente à geração. Pois quando alguém examinou justamente e desapegadamente a natureza do que vem ao ser e do que cessa de ser, claramente verá que a geração começa com a corrupção e termina com a corrupção. Cristo, e de modo semelhante o caminho de Cristo de vida e entendimento, como eu disse, são livres de tais paixões características da geração. Pelo menos este é o caso se São Paulo estava falando a verdade ao dizer que em Cristo Jesus não há nem "macho nem fêmea" (Gálatas 3:28), significando por estes termos as características e paixões da natureza sujeitas à geração e à corrupção. Pois em Cristo e no Seu modo de vida há apenas um entendimento deiforme imbuído com divino conhecimento, e uma disposição singular de disposição e proposta que escolhe apenas a virtude.

Mais ainda, em Cristo não há nem Grego nem Judeu (cf. Gálatas 3: 28). Significa isto uma divergência, ou melhor, contrariedade de visões sobre Deus. Os Gregos afirmam uma série de princípios dominantes e divide o princípio único fundamental em operações opostas e poderes, elaborando uma veneração politeísta cheia de contradições por causa da multidão de objetos venerados e ridícula por causa de seus muitos modos de veneração. Os judeus afirmam o princípio fundamental o qual, a despeito de ser único, é estreito, imperfeito e quase inexistente, já que ele é desprovido de consciência imanente e vida; e assim ele cai num mal tão ruim quanto aqueles em que caíram os Gregos por uma razão oposta, ou seja, a descrença no Deus verdadeiro. Pois ele limita o princípio fundamental a uma simples pessoa, que existe sem Logos e Espírito, e que meramente possui Logos e Espírito enquanto qualidades; pois ele não consegue perceber que tipo de Deus teria se privado das outras duas Pessoas, ou como ele poderia ser Deus se atribuísse a eles como acidentes por participação, tal como ocorre no caso dos seres criados. Nem Grego, nem judeu então, tem qualquer lugar completo em Cristo. NEle há apenas o princípio da verdadeira religião e a lei inabalável da teologia mística, que rejeita tanto a dilação da Divindade, como no politeísmo grego, e a contração da Divindade, como no monoteísmo judaico. Neste sentido a Divindade é plena de contradições internas, com os Gregos, por conta de sua pluralidade natural, nem é reconhecida como passível, com os Judeus, por conta de ser uma simples pessoa, desprovida de Logos e Espírito, possuindo Logos e Espírito apenas enquanto qualidades, sem ser ela mesma Inteligência, Logos e Espírito.

A teologia mística nos ensina, através da fé que foi adotada pela graça e trazida ao conhecimento da verdade, a reconhecer uma natureza e poder da Divindade, isto quer dizer, um Deus contemplado no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Isto nos ensina a conhecer Deus como um Intelecto singular não originado, auto-existente, o gerador de um Logos singular, auto-existente, não originado, e a fonte de uma vida eterna, auto-existente como o Espírito Santo: a Trindade em Unidade e a Unidade em Trindade. A Divindade não é uma coisa em outra coisa: a Trindade não está na Unidade como um acidente em uma substância ou vice-versa, pois Deus é sem qualidades.  A Divindade não é uma coisa em outra coisa: a Unidade não difere da Trindade por distinção de Natureza; a natureza é simples e singular ao mesmo tempo. Nem na Divindade há uma coisa dependente ou a priori a outra: a Trindade não é distinguida da Unidade, ou a Unidade da Trindade, por inferioridade de poder; nem é a Unidade distinguida da Trindade como alguma coisa comum e geral abstraída em uma maneira puramente conceitual dos particulares em que ela ocorre: ela é substantivamente uma essência auto-subsistente  e um poder verdadeiramente auto-consolidante. Nem na Divindade uma coisa vem a ser por outra: não há nela tal relação mediadora quanto aquela de causa e efeito, já que ela está unida e livre de relações. Nem na divindade é uma coisa derivada de outra: a Trindade não deriva da Unidade, já que ela é não gerada e auto-manifestada. Pelo contrário, a Unidade e a Trindade são tanto afirmadas e concebidas como verdadeiramente una e a mesma, a primeira denotando o princípio da essência e a segunda o modo da existência. O todo é a Unidade singular, não dividida pelas Pessoas; e o todo é também uma Trindade singular, cujas Pessoas não são confundidas pela Unidade. Assim politeísmo não é introduzido pela divisão da Unidade ou a descrença no Deus verdadeiro pela confusão das Pessoas.

Quando a doutrina Cristã rejeitou estes erros ela alcançou um genuíno esplendor. Por doutrina Cristã eu quero dizer os ensinamentos do Cristo, a nova proclamação da verdade em que não há nem macho nem fêmea, isto é, os sinais e paixões da natureza humana quando sujeitos a nascimento e decadência; nem Grego nem Judeu, isto é, visões contrárias da Divindade; nem circunciso ou incircunciso (cf. Col. 3:11), isto é, diferentes tipo de veneração apropriadas a diferentes visões, a primeira divinizando a natureza por causa das paixões e fixando a criatura contra o Criador, e a segunda por causa de seu mau uso dos símbolos da Lei difamando a criação visível e escandalizando o Criador como fonte do mal. Ambas constituem igualmente um insulto ao Divino e conduzem igualmente ao mal. Nem na doutrina cristã há o bárbaro ou cita, ou seja, a fragmentação deliberada dos seres humanos que se entregam a lei anti natural do abate mútuo; nem há escravos ou livres, isto é, a divisão fortuita desta natureza que conduz uma pessoa a desprezar outra ainda que ambas sejam por natureza iguais em dignidade, nem há àquilo que encoraje os homens a dominar outros tiranicamente, pois isto viola a imagem divina no homem. "Mas Cristo é tudo em todos" (Colossenses 3:11), moldando em espírito o reino não originado no qual mora algo além da natureza e da lei.

Este reino é caracterizado, como mostramos, pela humildade e mansidão de coração. Ele é a combinação destas duas qualidades que constituem a perfeição da pessoa criada de acordo com Cristo.  Pois toda pessoa humilde é invariavelmente mansa e toda pessoa mansa é invariavelmente humilde. Uma pessoa é humilde quando ela sabe que seu ser é um empréstimo para ela. Ela é mansa quando ela sabe como usar os poderes que lhe foram dados de um modo que concorde com a natureza, afastando completamente suas atividades dos sentidos e colocando-as a serviço da inteligência de modo a produzir virtudes. Neste sentido seu intelecto se move incessantemente para Deus e quando seus sentidos estão em atividade, nem por isso ela é perturbada por qualquer coisa que aflija o corpo, nem ela carimba sua alma com qualquer traço de angústia, que destrói seu estado de alegria criativa. Pois ela não reconhece o que é doloroso aos sentidos como desprovido de prazer: ela conhece um único prazer, o casamento da alma com o Logos. Ser desprovido deste casamento é o tormento final, estendido à natureza por todas as eras. Assim quando ela deixou o corpo e tudo quanto lhe pertence, ela está impelida à união com o divino; pois mesmo que ela fosse mestra do mundo inteiro, ela reconheceria apenas um único desastre real: falhar na obtenção pela graça da deificação pela qual ela espera.

"Purifiquemo-nos de toda poluição da carne e  do espírito" (2. Coríntios 7:1), de modo que quando extinguimos nosso desejo sensual, que é indecentemente lascivo e unido às paixões, nós poderemos santificar o nome divino. E com nossa inteligência liguemos nosso medo perturbado e frenético pelo prazer sensual, de modo que possamos receber o Reino de Deus Pai, que nos vem com mansidão.

Ao finalizar isto, nós podemos ir para a próxima fase da oração dizendo: "Assim na terra como no céu" (Mateus 6:10). Aquele que venera Deus misticamente apenas com a faculdade da inteligência, mantendo-a livre dos desejos sensuais e do medo, cumpre a vontade divina na terra como as ordens dos anjos a cumprem no céu. Ele tornou-se em todas as coisas um co-venerador e um cidadão do céu com os anjos, conforme a afirmação de São Paulo, "nossa cidadania está no céu" (Filipenses 3:20). Entre os anjos o desejo não enfraquece a intensidade do intelecto através de prazeres sensuais, nem a raiva os faz delirar e atacar indecentemente seus companheiros, criaturas como ele: há apenas a inteligência naturalmente conduzindo seres inteligentes para a fonte da inteligência, o Próprio Logos. Deus se regozija apenas em inteligência e é isto o que Ele exige de nós, Seus servos. Ele revela isto quando diz a Davi: "O que tenho no Céu e desejo na terra além de ti?" (Salmo 73: 25). Nada é oferecido a Deus nos céus pelos anjos exceto a veneração inteligente; e é isto que Deus também pede de nós quando Ele nos ensina a dizer em nossas orações, "Seja feita a Vossa Vontade assim na terra como no céu" (Mateus 6:10).

Então nossa inteligência será movida a procurar Deus, nosso desejo será desperto em saudade DEle, e nosso poder apetitivo lutará para manter a guarda de nosso amor a Ele. Ou, mais precisamente, todo nosso intelecto estará direcionado para Deus, tensionado por nosso poder apetitivo como por algum nervo, incendiado com saudade pelo desejo mais ardente de todos. Pois se nós imitamos os anjos celestiais deste modo, nós nos encontraremos sempre venerando a Deus, agindo na terra como os anjos no céu. Pois como os anjos, nosso intelecto não será atraído por qualquer coisa menos que Deus.

Se nós vivermos o caminho que nós prometemos, nós receberemos como pão cotidiano que tonifica nutrindo  nossa alma e ajudando na manutenção do bom estado no qual fomos abençoados o Próprio Logo; pois isto foi o que Ele disse, "Eu sou o Pão descido do céu e que dá vida ao mundo" (João 6: 33-35). Em proporção à nossa capacidade, o Logos se tornará tudo para nós que somos nutridos através da virtude e da sabedoria; e de acordo com Seu próprio julgamento Ele será incorporado diferentemente em cada recipiente de salvação enquanto vivemos ainda nesta era. Isto é indicado na frase da oração que diz, "O pão nosso cotidiano dai-nos hoje" (Mateus 6:11).

Eu acredito que a expressão "cotidiano" se refere à era presente. É como se disséssemos, depois de um entendimento mais claro do contexto da oração, "Já que estamos nesta vida presente mortal, dai-nos hoje nosso pão cotidiano que Vós preparaste originalmente para a natureza humana e que pode nos tonar imortais" (cf. Gênesis 2:9); pois neste sentido a comida do pão da vida e o conhecimento triunfarão sobre a morte que veio pelo pecado. A transgressão do mandamento divino impediu o primeiro homem de partilhar deste pão (cf. Gênesis 3:19). De fato, se ele tivesse tomado dessa comida divina, ele não teria estado sujeito à morte pelo pecado.

Aquele que ora para receber este pão cotidiano, porém, não o recebe todo automaticamente como é em si mesmo: ele o recebe de acordo com sua capacidade receptiva. Pois o Pão da Vida em seu amor se dá a todos os que o pedem, mas ele não se dá da mesma forma. Ele dá liberalmente para aqueles que fizeram grandes coisas, e mais modestamente para aqueles que obtiveram menos. Assim Ele concede a cada pessoa de acordo com a capacidade receptiva do intelecto dele ou dela.

O Próprio Salvador conduziu-me a esta interpretação da frase que estamos considerando, porque Ele ordena Seus discípulos explicitamente a não tomar qualquer pensamento sobre alimento sensível, quando diz, "Não vos preocupeis com vossa vida, o que comereis, ou o que bebereis, ou sobre o vosso corpo, o que vestireis. Pois são os pagãos que procuram estas coisas. Mas buscai primeiro o Reino de Deus e a Sua justiça, e todas estas coisas lhe serão dadas em acréscimo" (Mateus 6:25, 32, 33). Como então poderia Ele nos ensinar a orar por aquilo que Ele nos proíbe de procurar? Obviamente Ele não nos ordena a fazer qualquer coisa deste tipo: nós deveríamos pedir na oração apenas por coisas que estamos obrigados a procurar. Se nosso Salvador nos ordenou a procurar apenas o Reino de Deus e sua justiça, então seguramente Ele pretendia àqueles que desejam dons divinos para pedir este Reino em suas orações. Neste sentido, ao mostrar quais petições são abençoadas por Sua Graça, Ele une as intenções daqueles que pedem de acordo com a Vontade Daquele que dá a graça.

Se, porém, nós também aproveitarmos esta cláusula para significar que devamos rezar pelo pão diário que sustenta nossa vida presente, sejamos cuidadosos para não ultrapassar os limites da oração, assumindo presunçosamente que viveremos muitos ciclos de vida e nos esquecendo de que somos mortais e que nossa vida passa tal como sombra; mas libertos da angústia oremos pelo pão suficiente para um dia, mostrando assim que como filósofos cristãos nós fazemos da vida uma preparação para a morte. Nosso propósito é antecipar a natureza, para que mesmo antes da morte chegar, extirpemos da alma a ansiedade acerca das coisas corpóreas. Neste sentido a alma não transferirá seu apetite natural às coisas materiais, apegando-se ao que é corruptível, e não aprenderá a ganância que nos priva de uma rica possessão de bençãos divinas.

Assim, evitaremos o amor à matéria e nosso apego à matéria com todas as forças que tivermos, como se lavássemos poeira dos olhos; e estaremos satisfeitos simplesmente com o que sustenta nossa vida presente, não com o que a deleita. Oremos a Deus para isto, como ensináramos, de modo que possamos manter nossas almas privadas de escravidão e absolutamente livres do domínio de qualquer coisa visível amada devido ao cuidado que traz ao corpo. Mostraremos que comemos para a manutenção da vida, e não nos façamos culpados da vida por conta de comida. O primeiro caso é um sinal de inteligência e o segundo uma prova cabal de sua ausência. Sejamos exatos no modo em que observamos esta oração, mostrando assim por nossas ações que nós nos apegamos a um modo de vida solitário, e que usamos nossa vida presente para adquirir vida espiritual. Nós a usamos apenas na medida em que não recusamos a sustentar nosso corpo com pão e o mantemos na medida do possível em seu estado natural de boa saúde, nosso objetivo não sendo simplesmente viver, mas viver para Deus. Ao tornarmos nosso corpo inteligente e repleto de virtudes fazemos dele um mensageiro da alma, e a alma, uma vez que ela está firmemente estabelecida no bem, um arauto de Deus; e no plano natural nós restringimos nossa oração por este pão para apenas o dia de hoje, não ousando estender nossa petição para um segundo dia por causa DEle que nos deu a oração. Quando nós nos conformarmos assim ao sentido da oração, nós podemos proceder em pureza à próxima petição, dizendo, "Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores" (Mateus 6:12).

De acordo com a primeira interpretação proposta pela seção precedente da oração, a palavra "cotidiano" simboliza a era presente; e a pessoa que ora nesta era pelo pão incorruptível da sabedoria, o qual extirpamos pela transgressão original, se deleita em uma única coisa: atingir as bençãos divinas. É Deus que por natureza concede estas bençãos, mas é da livre vontade de quem as recebe salvaguardá-las. De modo similar, uma pessoa conhece apenas um pão: o fracasso para alcançar estas bençãos. É o mal que ocasiona esta falha, mas é a própria pessoa que o faz na atualidade, por causa de sua fraqueza de vontade com relação ao divino, e porque ele não se agarra ao precioso bem pelo qual ele ora. Mas se alguém não está interessado com alguma coisa no mundo visível, e consequentemente não é superado por qualquer aflição corporal, então tal pessoa verdadeiramente e desapaixonadamente perdoa aqueles que pecam contra ele; pois ninguém pode roubar-lhe o bem pelo qual aspira e que por natureza é inatacável.

Uma pessoa deste tipo faz-se a si mesmo padrão de virtude para Deus, se isto pode ser posto neste sentido; pois ao dizer "Perdoai nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores", ele exorta a Deus, que está além da imitação, a vir e imitá-lo; e ele implora a Deus a tratá-lo como ele mesmo trata seus próximos. Pois ele deseja ser perdoado por Deus como ele mesmo perdoou os débitos daqueles que pecaram contra ele; aqui, assim como apenas Deus desapaixonadamente perdoa Suas Criaturas, assim também tal pessoa deve ela mesma permanecer desapaixonada em face do que lhe acontece e perdoar aqueles que lhe ofendem. Ele não deve permitir a memória de coisas que o aflijam ser estampada em seu intelecto para que não acabe interiormente rompendo a natureza humana por separar-se de algum outro homem, ainda que ele seja um homem. Quando a vontade de um homem está em união com o princípio de natureza neste sentido, Deus e natureza são naturalmente reconciliados: mas, falhando-se tal união, nossa natureza permanece auto-dividia em sua vontade e não pode receber os dons do Próprio Deus.

Isto seguramente é porque Deus deseja-nos primeiro que sejamos reconciliados uns com os outros. Ele próprio não tem necessidade de aprender de nós como ser reconciliado com pecadores e renunciar a pena por uma infinidade de crimes atrozes; mas Ele deseja nos purificar de nossas paixões e nos mostrar que a medida da Graça conferida àqueles que são perdoados corresponde ao seu estado interior. É evidente que quando a vontade de um homem está em união com o princípio de natureza, não há estado de rebelião contra Deus. Já que o princípio de natureza é uma lei tanto natural quanto divina, e não há nada contrário ao Logos, quando a vontade de um homem funciona de acordo com este princípio, ela concorda com Deus em todas as coisas. Tal condição de vontade é um estado interno ativamente caracterizado pela graça do que é bom por natureza e por isso produtor de virtude.

Este, então, é o estado interior do homem que ora pelo pão gnóstico. Depois dele vem o homem que, constrangido pela natureza, procura o pão ordinário, mas suficiente para apenas uma jornada. Ele atingirá o mesmo estado interior que o primeiro quando ele tiver perdoado os débitos de seus devedores, já que ele sabe que ele é por natureza mortal. Mais ainda, por aceitar a incerteza do futuro e esperar cada dia pelo que é provido pela natureza, ele antecipa a natureza, escolhendo tornar-se morto para o mundo e obedecer ao texto, "Por amor a Ti somos mortos todo dia; somos como ovelhas destinadas ao matadouro". (Salmo 44:22 ; Romanos 8:36). Ele estabelece esta paz com todos de modo a ser liberto de todas as depravações da era presente quando ele sair para a vida eterna, e receber do Juiz e Salvador do universo uma justa recompensa pelo que ele fez nesta vida. Estes dois tipos de homens, logo, necessitam expor uma pura disposição para com aqueles que os ofenderam. Isto é verdade em geral; mas tem uma referência particular para as palavras que concluem a oração: "E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal" (Mateus 6:13).

A Escritura revela nestas palavras que aquele que não perdoou completamente aqueles que tropeçam, e não apresentou para Deus seu coração livre de queixa e iluminado com a luz da reconciliação com seu próximo, falhará em alcançar a Graça das bençãos pelas quais ora. De fato, ele será justamente entregue à tentação e ao mal, de modo que, tendo recolhido seus julgamentos dos demais, ele possa aprender a se purificar de seus próprios pecados. A Escritura aqui significa por tentação a lei do pecado, do qual o primeiro homem estava liberto quando criado. E por "mal" significa aqui o diabo, que tem misturado esta lei do pecado com a natureza humana, persuadindo enganosamente o homem a transferir o desejo de sua alma do que é permitido para o que é proibido, desviando-a para a transgressão do divino mandamento. O resultado disso é a perda da incorruptibilidade que foi dada pela Graça.

Alternativamente, por tentação a Escritura quer dizer a predileção da alma pelas paixões da carne; e por "mal" o caminho atual em que esta tendência apaixonada é satisfeita. O Justo Juiz não liberta um homem da tentação e do mal se ele não perdoou os débitos de seus devedores. Enquanto ele reza meramente em palavras pela libertação, Deus lhe permite ser contaminado pela lei do pecado; e enquanto sua vontade é crua e teimosa, Ele o abandona ao domínio do mal; pois ele os abandonou às paixões infames (cf. Romanos 1:26), das quais o mal é o semeador, em preferência à natureza, da qual Deus é criador. Deus deixa-o livre para inclinar, se ele assim o deseja, para as paixões da carne e atualmente para satisfazer aquela inclinação. Valorizando paixões não substanciais mais sumamente do que a natureza, em seu interesse por estas paixões ele se torna ignorante dos princípios da natureza. Tivesse ele seguido aquele princípio, ele teria conhecido o que constitui a lei da natureza e o que a tirania das paixões - uma tirania causada não pela natureza, mas por escolha deliberada. Então ele teria aceitado a lei de natureza que é mantida por meio de atividades que são naturais; e ele teria expelido a tirania das paixões completamente de sua vontade. Ele teria obedecido a natureza com sua inteligência, pois a natureza em si mesma é pura e imaculada, irrepreensível, livre de ódio e de alienação, e ele teria feito de sua vontade uma vez mais uma companheira da natureza, totalmente desligada de tudo que não foi concedido pelo princípio de natureza. Neste sentido ele teria erradicado todo o ódio e toda a alienação a quem é por natureza semelhante a ele, e dizendo esta oração ele seria ouvido e receberia de Deus não uma simples Graça, mas uma dupla: perdão pelas ofensas já cometidas e proteção e libertação daquelas que estão no futuro. Pois ele não poderia entrar em tentação e cair no poder do mal por uma simples razão: sua prontidão em perdoar os pecados de seus próximos.

Assim, para retornar um pouco e comentar brevemente o que foi dito, se nós realmente desejamos ser libertos do mal e não entrarmos em tentação, nós devemos confiar em Deus e perdoar as dívidas de nossos devedores. "Pois se não perdoares os pecados das pessoas", diz a Escritura, "Vosso Pai celestial não perdoará os vossos" (mateus 6:15). Nós devemos fazer isto não apenas para receber perdão pelas ofensas que cometemos, mas também para derrotar a lei do pecado - porque então não poderíamos ser submetidos à experiência da tentação - e pisar no originador da lei do pecado, a serpente a quem rogamos a Deus que nos livre. Pois Cristo, que venceu este mundo (cf. João 16:33) é nosso líder. Ele nos arma com as leis dos mandamentos, e por nos capacitar a rejeitar as paixões, Ele nos une ao puro amor com a própria natureza. Sendo o pão da vida, da sabedoria, do conhecimento espiritual e da justiça, Ele desperta em nós um desejo insaciável por Ele. Se nós cumprirmos a vontade de Seu Pai, Ele nos faz co-adoradores com os anjos, e em nossa conduta nós os imitaremos como se estivéssemos no estado celestial. Então Ele nos conduzirá ainda mais além na suprema ascensão da verdade divina até o Pai das Luzes, e nos fará compartilhar da divina natureza (Cf. 2 Pedro 1;4) pela participação pela Graça no Espírito Santo. Em virtude desta participação nós somos chamados crianças de Deus e limpos de toda mancha, somos cercados por ele que é o autor desta graça e por natureza Filho do Pai, muito além da circuncisão. "A partir DEle, por meio DEle e  NEle nós temos e sempre teremos nosso ser, nosso mover e nosso viver" (cf. Atos 17:28).

Quando nós rezarmos, que nosso objetivo seja este mistério de deificação, que nos mostra o que éramos e, com o auto-esvaziamento do filho unigênito pela carne, Cristo nos faz agora; que nos mostra as profundezas para as quais nós fomos arrastados pelo peso dos pecados, e as alturas para as quais nós  somos arrebatados por Sua mão compassiva. Neste sentido nós viremos a ter maior amor por Ele que preparou esta salvação para nós com tal sabedoria. A oração consegue assim o seu cumprimento na prática, e nós proclamaremos manifestamente Deus como o nosso verdadeiro Pai pela graça. Nós mostraremos que o único mal, que é sempre tiranicamente a tentativa de obter controle sobre nossa natureza através de paixões vergonhosas, não é o pai de nossa vida, e que nós não queremos trocar a vida pela morte. Pois tanto Deus quanto o mal naturalmente transmitem suas qualidades para aqueles que deles se aproximam: Deus concede vida eterna para aqueles que O amam, enquanto o demônio, operando por meio de tentações que são sujeitas à nossa volição, causa a morte de seus seguidores.

Pois de acordo com as Escrituras há dois tipos de tentação, uma agradável e outra dolorosa. Uma é o resultado da escolha deliberada e a outra não é procurada. O primeiro tipo gera pecado. Nós fomos ordenados pelos ensinamentos do Senhor a rezar para que não caiamos nela, pois Ele diz, "E não nos deixeis cair em tentação" (Mateus 6:13) e "Vigiai e orai para não cairdes em tentação" (Mateus 26:41). O outro tipo de tentação pune pecado, castiga a disposição amante do pecado com sofrimentos que não foram procurados. Para a pessoa que permanece nesse tipo de tentação - que vem na forma de um julgamento - e que em particular não está atada ao mal, as palavras do apóstolo Tiago podem ser aplicadas: "Meus irmãos,  olhai com grande gozo quando vos encontrardes em várias tentações; porque o teste de vossa fé produzirá paciência; esta paciência moldará o caráter; e o caráter assim moldado conduzirá a bom termo" (Cf. Tiago 1: 2-4; Romanos 5:4). O único mal opera com sua malícia ao mesmo tempo através da tentação que é sujeita à nossa volição e daquela que não buscamos. Quando a primeira está em causa, por buscar a alma prazeres corporais e por se excitar nesta maneira, ele planeja divertir seu desejo e assim desviá-lo do amor divino. Quando a tentação não buscada está em causa, em seu desejo de destruir a natureza humana através da dor, ele astuciosamente tenta forçar a alma, enervada pelos sofrimentos, a caluniar e abusar do Criador.

Mas conhecendo os ardis do único mal, rezemos para nos livrar das tentações sujeitas à nossa volição, para que assim não desviemos nosso desejo do amor divino; e soframos bravamente as tentações que nos chegam sem que as busquemos, já que elas nos visitam com o consentimento de Deus e ao suportá-las nós mostramos que nós não colocamos a natureza antes do Criador da natureza. Possamos todos invocar o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo para sermos libertos dos deleites presentes e das aflições futuras do mal e assim participarmos na realidade de bençãos realizadas e já reveladas a nós em Cristo nosso Próprio Senhor, que junto ao Pai e ao Espírito Santo é louvado por toda a criação. Amém.


quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Quarta Centúria sobre o Amor

Esta é a última centúria sobre os "400 Escritos sobre o Amor", escrito pelo grandessíssimo São Máximo, o Confessor. Espero depois de traduzi-la ter dado cabo de uma tarefa sublime, não digna de minha pessoa, mas se bem feita, apenas por Auxílio, Socorro, Graça e Mérito Daquele que é o único Autor das coisas verdadeiramente belas.
Máximo, como falamos, ocupa espaço magistral na Filocalia, e nosso interesse é divulgar toda a sua obra. Espero que a beleza de suas palavras tão singelas, didáticas e diretas, sirvam para a edificação, libertação e felicidade de quem as lê.

Quatrocentos Escritos Sobre o Amor
Parte final.
Quarta Centúria
São Máximo, o Confessor
Tradução da versão inglesa (Op. Cit, pags 100 a 113).

1) Primeiro o intelecto se maravilha quando reflete na absoluta infinidade  de Deus, mar sem limites que tanto se almeja. Então ele é surpreendido de como Deus trouxe coisas à existência a partir do nada. E como "Sua magnificência é sem limite" (Salmo 145: 3) e "Seus desígnios são inescrutáveis" (Isaías 40:28).

2) Como pode o intelecto não se maravilhar quando ele contempla o imenso e mais do que surpreendente mar de bondade? Ora, como não ficar surpreendido quando ele reflete  em como e de que fonte o que existe veio à existência, tanto a natureza dotada com inteligência e intelecto, e os quatro elementos que compõem o mundo físico, ainda que nenhuma matéria pré existisse à geração deles? Qual tipo de potencialidade era aquela que, uma vez atualizada, trouxe estas coisas ao ser? Mas tudo isso não é aceito por aqueles que seguem os filósofos pagãos gregos, ignorantes que eram da bondade onipotente e sua sabedoria efetiva e conhecimento, transcendendo o intelecto humano.

3)Deus é Criador desde toda a eternidade, e Ele cria quando Ele quer, em Sua infinita bondade, através de seu Logos e Espírito coessencial. Não se levanta a objeção: "Por que ele cria em um momento particular uma vez que ele é bom desde toda a eternidade?" Pois eu respondo que a sabedoria inescrutável da essência infinita não vem em paralelo com o conhecimento humano.

4) Quando o Criador quis, Ele deu o ser e manifestou aquele conhecimento das coisas criadas que já existiam nEle desde toda a eternidade. Pois no caso do Deus Onipotente é ridículo duvidar que Ele não possa dar o ser a qualquer coisa assim que o queira.

5) Tente aprender porque Deus cria; pois isto é conhecimento verdadeiro. Mas não tente aprender como Ele criou ou porque Ele fez assim há relativamente pouco tempo; pois que isso não tem paralelo com nossa inteligência. Das divinas realidades algumas podem ser apreendidas pelos homens e outras não podem. Uma especulação desenfreada, como disse um de nossos santos, pode nos levar de cabeça ao precipício.

6) Alguns dizem que a ordem criada coexistiu com Deus desde toda a eternidade, mas isto é impossível. Pois como pode que coisas limitadas coexistam com Ele que é completamente infinito? Ou como eles seriam realmente criações se fossem coeternos ao Criador? Esta noção é extraída dos filósofos gregos pagãos, que afirmam que Deus não é de modo algum criador do ser mas apenas das qualidades. Nós, porém, que sabemos que Deus é onipotente, dizemos que Ele é o criador não apenas das qualidades mas também do ser das coisas criadas. Se isto é assim, as coisas criadas não coexistiram com Deus desde toda a eternidade.

7) A divindade e as realidades divinas são em alguns aspectos cognoscíveis e em alguns outros incognoscíveis. Eles são cognoscíveis na contemplação do que pertence à essência de Deus e incognoscíveis no que diz respeito à essência própria.

8) Não olheis para as condições e propriedades da essência simples e infinita da Santíssima Trindade; de outro modo você a fará composta como os seres criados - uma coisa ridícula e blasfema a se fazer no caso de Deus.

9) Apenas o Ser infinito, todo poderoso e criador de todas as coisas, é simples, único, incondicional, pacífico e estável. Toda criatura que possua ser e acidente, é composta e sempre está necessitando da Divina Providência, pois não é livre para mudar.

10) Tanto a natureza sensível e inteligível, ao ser trazida para a existência por Deus, recebeu poderes para deter os seres criados. A natureza inteligível recebeu poderes da intelecção e a natureza sensível poderes da percepção sensível.

11) Deus é apenas participado. A Criação ao mesmo tempo participa e comunica: participa no ser e bem-estar, mas comunica apenas bem-estar. No entanto, a natureza corpórea comunica isto em um sentido e a natureza incorpórea em outro.

12) A natureza incorpórea comunica bem-estar por falar, por agir, e por ser contemplada; a natureza corpórea apenas por ser contemplada.

13) Seja ou não uma natureza dotada de inteligência e intelecto, para ela existir eternamente depende-se da vontade do Criador cuja criação é boa; mas se tal natureza é boa ou má, depende apenas de sua própria vontade.

14) O mau não pode ser imputado à essência do ser criado, mas à sua motivação errônea e estúpida.

15) Uma motivação de alma é corretamente ordenada quando seu poder desejante é subordinado ao autocontrole, quando seu poder apetitivo rejeita o ódio e  abre caminho para o amor, e quando seu poder de inteligência, através da contemplação espiritual e da oração, avança em direção a Deus.

16) Se em tempo de julgamento um homem não sofre pacientemente suas aflições mas desliga-se do amor de seus irmãos espirituais, ele ainda não possui o amor perfeito ou um conhecimento profundo da divina providência.

17) O objetivo da divina providência é unir por meio da verdadeira fé e do amor espiritual aqueles separados em vários sentidos pelo vício. De fato, o Salvador suportou Seus sofrimentos de modo que 'deve-se reunir na unidade os filhos de Deus' (João 11:52). Assim, aquele que não suporta resolutamente suas tribulações, aguentando aflições, e pacientemente sustentando dificuldades, extravia-se do caminho do amor divino e da proposta da providência.

18) "Se o amor é longânimo e doce" (1 Cor. 13:4), um homem que é tímido em face de suas aflições e que logo se comporta perversamente contra aqueles que o ofendem, deixa de amá-los, seguramente falha da proposta da divina providência.

19) Observe-se, verás que o vício que o separa de seu irmão jaz em você e não nele. Seja reconciliado com ele sem demora, a fim de que você não falhe no mandamento do amor.

20) Não guarde o mandamento do amor com desacato, pois por ele você se torna filho de Deus. Mas se você o transgride, você se tornará filho da Geena.

21) O que nos separa do amor dos amigos é invejar ou ser invejado, causando ou recebendo prejuízo, insultar ou ser insultado, e pensamentos suspeitos. Se você nunca tivesse feito ou experimentado algo deste tipo jamais se separaria do amor de um amigo.

22) Um irmão foi a ocasião de algum julgamento feito por ti e seu ressentimento levou-e ao ódio? Não deixe-se vencer por este ódio, mas conquiste-o pelo amor. Você terá sucesso nisso orando a Deus sinceramente pelo seu irmão e por aceitar suas desculpas; ou ainda conciliando o com um pedido de desculpas a si mesmo, reconhecendo-se como responsável pelo julgamento e esperando pacientemente até que esta nuvem passe.

23)  Um homem longânimo é aquele que espera pacientemente pelo seu julgamento para finalizar tudo e espera que sua perseverança será recompensada.

24) "Um homem longânimo abunda em entendimento" (Provérbios 14:29), porque ele suporta tudo até o fim e, enquanto aguarda esse fim, pacientemente carrega essa angústia. O fim, como diz São Paulo, é vida eterna (cf. Romanos 6:22). "E a vida eterna é esta: que possam conhecer a Ti o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (João 17:3).

25) Não descarte levemente o amor espiritual: para os homens não há outra rota de salvação.

26) Porque nos dias atuais um assalto do demônio fez surgir um ódio entre vós, não julguei aquele irmão perverso que ontem vós reconhecíeis como espiritual e virtuoso; mas como o amor longânimo habita na bondade o que vós percebeste ontem expelirá o ódio de hoje de vossa alma.

27) Não condeneis hoje o homem perverso que ontem louvaste como virtuoso e reconheceste como bom, mudando do amor ao ódio, porque ele te criticou; mas mesmo cheio de mágoa, vê-o com os olhos de antes, e assim te recobrirá o mesmo amor salvador.

28) Quando conversar com outros irmãos não adultere o louvor habitual de um irmão ao subrepticiamente censurá-lo por conta de algum ressentimento oculto contra ele. Pelo contrário, na companhia dos outros dê-lhe um elogio sem mistura e reze por ele sinceramente como se estivesse rezando por si mesmo; então você se libertará rapidamente de seu ódio destrutivo.

29) Não diga, "Eu não odeio meu irmão", quando você simplesmente eclipsa o pensamento dele em sua mente. Ouvi a Moisés que disse, "Não odeie seu irmão em sua mente; mas repreenda-o e você não cometerá pecado contra ele" (Levítico 19:17).

30) Se um irmão acontece de ser tentado e continua a lhe insultar, não se desvie de seu estado de amor, ainda que o próprio demônio venha para perturbar a sua mente. Você não se desviará deste estado quando abusado você abençoar; quando caluniado, você elogiar; quando enganado, você mantiver seu afeto. Este é o sentido da filosofia de Cristo: se você não a segue não compartilhará de Sua companhia.
 31) Não pense que aqueles que lhe trazem relatórios cheios de ressentimento e lhe fazem odiar seu irmão estão carinhosamente dispostos para com você, ainda que pareçam falar a verdade. Pelo contrário, volte-se contra eles como se se tratasse de cobras venenosas, pois assim você prevenirá tanto a si quanto eles de proferir calúnias e livra sua própria alma da perversão.

32) Não irrite seu irmão ao falar com ele equivocadamente; de outro modo você pode receber o mesmo tratamento dele e assim expulsar tanto o seu amor quanto o dele. De preferência, repreenda-o com amor e carinhosamente, removendo assim os fundamentos do ressentimento e liberte-o assim como também você da irritação e da angústia.

33) Examine sua consciência escrupulosamente, no caso de saber se não é por sua culpa que seu irmão ainda está hostil. Não trapaceie sua consciência, pois ela conhece seus segredos, e na hora de sua morte ela lhe acusará e no momento da oração ela lhe servirá como pedra de tropeço.

34) Em tempos de relacionamentos pacíficos não lembre-se do que foi dito por um irmão quando ele tinha sentimentos maus contra você, ainda que coisas ofensivas tenham lhe sido dirigidas na cara, ou de outra pessoa sobre você e que você tenha por conseguinte ouvido. De outro modo, você dará guarida a pensamentos de rancor e voltará  para você o ódio destrutivo de seu irmão.

35) A alma deiforme não pode nutrir ódio contra um homem e ainda assim estar em paz com Deus, o doador dos mandamentos. "Pois", Ele diz, "se não perdoares os homens suas faltas, não lhes Perdoará o Pai do Céu" (cf. Mateus 6: 14-15). Se seu irmão não deseja viver em paz com você, não guarde, no entanto, ódio contra ele, orando por ele sinceramente e não abusando dele.

36) A perfeita paz dos anjos jaz no amor deles por Deus e uns pelos outros. Isto também é o caso com todos os santos desde o início dos tempos. mais verdadeiramente é dito que "nestes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas" (Mateus 22;40).

37) Para de se agradar e você não odiará seu irmão; pare de se amar e você amará a Deus.

38) Uma vez que tenha decidido a compartilhar a sua vida com seus irmãos espirituais, renuncie aos seus desejos desde o começo. A menos que faça isso, você será capaz de viver pacificamente ou com Deus ou com os irmãos.

39) Aquele que obteve o perfeito amor e ordenou toda a sua vida de acordo com ele, é a pessoa que diz "Senhor Jesus" no Espírito Santo (cf. I Cor. 12:3)

40) O amor por Deus sempre aspira dar asas ao intelecto em sua comunhão com Deus; o amor ao próximo sempre nos leva a ter bons pensamentos sobre ele.

41) O homem que ainda ama a fama vã, ou está ainda atado a algum objeto material, se aborrece naturalmente com as pessoas por conta de coisas transitórias, ou guarda rancor ou ódio contra elas, ou é ainda escravo de pensamentos vergonhosos. Tais coisas são muito estranhas a alma que ama a Deus.

42) Se você não tem ideia de qualquer palavra vergonhosa ou ação em sua mente, não guarde rancor contra alguém que lhe injuriou ou caluniou e, enquanto ora, mantenha sempre seu intelecto livre de matéria e forma, pois assim esteja certo de que você terá obtido a pela medida do desapego e do amor perfeito.

43) Não é pequena luta ser liberto da autoestima. Tal liberdade é para ser obtida pela prática inerente das virtudes e por uma oração mais frequente; e o sinal que você tiver obtido é que não guardará mais rancor contra quem quer que tenha abusado ou abuse de você.

44) Se você quer ser uma pessoa justa, prescreva a cada parte de si mesmo - para sua alma e seu corpo - o que está de acordo com sua compleição. Para a parte intelectual prescreva a leitura espiritual, contemplação e oração; para a parte apetitiva, amor espiritual, o oposto do ódio; para o  aspecto desejante, moderação e autocontrole; para a parte carnal, comida e bebida, pois apenas estes são necessários (cf. I Tim. 6:8)

45) O intelecto funciona de acordo com a natureza quando ele mantém as paixões sob controle, contempla as essências inerentes dos seres criados e permanece com Deus.

46) Assim como saúde e doença se relacionam ao corpo dos seres viventes, luz e escuridão aos olhos, assim também virtude e vício se relacionam á alma, e conhecimento e ignorância ao intelecto.

47) Os mandamentos, as doutrinas, a fé: estes são os três objetos da filosofia Cristã. os mandamentos separam o intelecto das paixões; as doutrinas o conduzem para o conhecimento espiritual dos seres criados; e a fé para a contemplação da santíssima Trindade.

48) Alguns daqueles que perseguem a via espiritual apenas repelem os pensamentos apaixonados; outros extirpam as próprias paixões. Tais pensamentos são repelidos pela salmodia, ou pela oração, ou pela elevação da mente para Deus, ou por ocupar a atenção de alguém de algum sentido parecido a isto. As paixões são extirpadas pelo distanciamento apropriado daquelas coisas pelas quais elas nasceram.

49) As paixões são despertadas em nós, por exemplo, através de mulheres, riquezas, famas e assim por diante. Nós podemos alcançar distanciamento com relação a mulheres quando nos retirarmos do mundo, pois assim perdemos o vigor do corpo e obtemos autocontrole. Nós podemos alcançar distanciamento quando o interesse pela riqueza é superado por uma mente frugal com respeito a todas as coisas. Nós podemos ser indiferentes à fama por praticar as virtudes no coração, de um modo visível apenas a Deus. E nós podemos agir de maneira similar com respeito a outras coisas. Uma pessoa que alcançou tal distanciamento nunca odiará quem quer que seja.

50) Aquele que renunciou tais coisas como casamento, posses e outras ocupações mundanas é exteriormente um monge, mas pode não sê-lo ainda interiormente. Apenas quem renunciou as imagens conceituais apaixonadas destas coisas se faz monge em si mesmo, e no seu intelecto. É fácil ser um monge por ser-se exteriormente; mas não é pequena a batalha espiritual requerida para se verter em um monge interiormente.

51) Quem nesta geração está completamente liberto das imagens conceituais apaixonadas,  lhe sendo concedido o dom da oração pura, ininterrupta e espiritual? Ora, esta é a marca interior do monge.

52) Muitas paixões estão ocultas em nossas almas; elas podem ser trazidas à luz apenas quando os objetos que as despertam se fazem presentes.

53) Um homem pode aproveitar o desapego e não ser perturbado por paixões quando os objetos que as despertam estão ausentes. Mas, uma vez que os objetos se fazem presentes, as paixões rapidamente distarem seu intelecto.

54) Não imagine que você goza de perfeito desapego quando os objetos que despertam suas paixões não estão presentes. Se quando estão presentes você permanece imóvel tanto pelo objeto quanto pelo pensamento subsequente dele, esteja certo que você entrou no reino do desapego. Mas mesmo assim, não seja super confiante; pois virtude quando se torna um hábito mata as paixões, mas quando é negligenciada as paixões retornam à vida novamente.

55) Aquele que ama a Cristo é obrigado a imitá-Lo o melhor que consegue. Cristo, por exemplo, estava sempre conferindo bençãos ao povo; Ele era longânimo quando eles eram ingratos e blasfemos contra Ele; e quando eles O castigaram e O entregaram à morte, Ele suportou tudo, não imputando mal a quem quer que fosse. Estes são os três atos que manifestam amor ao próximo. Se se é incapaz deles, a pessoa que diz amar a Cristo ou ter atingido o Reino engana-se a si mesmo. Pois "Pois nem todo aquele que diz Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus; mas aquele que faz a vontade do Meu Pai" (Mateus 7:21); e novamente, "Aquele que Me ama, guardará os Meus mandamentos" (cf. João 14: 15, 23).

56) A proposta completa dos mandamentos do Salvador é libertar o intelecto da dissipação e ódio, e conduzi-lo ao amor dEle e de seu próximo. Deste amor brota a luz do santo conhecimento ativo.

57) Quando Deus conceder-lhe um grau de conhecimento espiritual não negligencie o amor e o autocontrole; pois são tais coisas que, uma vez que tenham purificado a alma do aspecto passional, sempre mantém aberta para você o sentido do autoconhecimento.

58) Desapego e humildade conduzem ao conhecimento espiritual. Sem eles não se verá o Senhor.

59) Já que o "conhecimento incha, mas o amor edifica" (I Cor. 8: 1), una amor ao conhecimento e você se libertará da arrogância e será um construtor espiritual, edificando tanto a si mesmo quanto aqueles que se aproximarem de você.

60) O amor edifica porque não inveja, ou sente qualquer amargura para com aqueles que são invejosos, ou ostensivamente revela o que provoca inveja; não julga que seu propósito tenha sido alcançado (cf. Filipenses 3:13), e sem hesitar confessa sua ignorância acerca daquilo que não conhece. Com isso, ele liberta o intelecto da arrogância e sempre equipa-o para avançar no conhecimento.

61) É natural para o conhecimento espiritual produzir vaidade e inveja, especialmente nos estágios iniciais. A vaidade vem de dentro, mas a inveja vem tanto de dentro quanto de fora - de dentro quando sentimos inveja daqueles que possuem conhecimento, de fora quando aqueles que amam o conhecimento sentem inveja de nós. O amor destrói todas estas três falhas: vaidade, porque o amor não incha; inveja de dentro, porque o amor não é invejoso; e inveja de fora, porque o amor é "longânimo e benigno" (1 Cor. 13:4). Uma pessoa com conhecimento espiritual deve, então, também adquirir amor, assim que ele pode sempre manter seu intelecto em um estado saudável.

62) Aquele que recebeu a graça do conhecimento espiritual e ainda guarda ressentimento, rancor ou ódio por alguém, é como alguém que dilacera seus olhos com espinhos e cardos. Disso o conhecimento deve ser acompanhado pelo amor.

63) Não devote todo o seu tempo ao seu corpo mas aplique a ele a medida de asceticismo apropriada para seu vigor, e então volte todo o sue intelecto para o que é interior. "Asceticismo corporal tem apenas um uso limitado, mas a verdadeira devoção é útil em todas as coisas" (1 Timóteo 4:8)

64) Aquele que sempre se concentra em sua vida interior torna-se comedido, longânimo, doce e humilde. Ele será sempre capaz de contemplar, teologizar e rezar. Isto foi o que São Paulo quis dizer quando falou: "Caminhai no Espírito" (Gálatas 5:16).

65) Aquele que é ignorante do caminho espiritual não fica em guarda contra as imagens conceituais apaixonadas, mas devota-se inteiramente à carne. Ele é ou um glutão, ou licencioso, ou cheio de ressentimento, ira e rancor. Como resultado ele obscurece seu intelecto ou então pratica um asceticismo severo que apenas obscurece sua mente.

66) A Escritura não proíbe qualquer coisa que Deus nos tenha dado para uso; mas ela condena imoderação e comportamento irrefletido. Por exemplo, ela não nos proíbe de comer, ou ter filhos, ou possuir bens materiais e administrá-los propriamente. Mas ela nos proíbe de ser glutão, de fornicar e assim por diante. Ela não nos proíbe pensar estas coisas - elas foram feitas para serem pensadas - mas proíbe-nos pensar nelas com paixão.

67) Algumas das coisas que nós fazemos por amor a Deus são feitas em obediência aos mandamentos; outras são feitas não em obediência aos mandamentos, por assim dizer, mas como oferecimento voluntário. Por exemplo, nos é requerido pelos mandamentos a amar a Deus e ao próximo, a amar nossos inimigos, a não cometer adultério, nem homicídio e assim por diante. E quando transgredimos tais mandamentos nós somos condenados. Mas não somos condenados a viver como virgens, abstermos nos do casamento, a renunciar posses, a retirar-se na solidão e assim por diante.  Estes são presentes da natureza, de modo que, se por fraqueza somos incapazes de cumprir com os mandamentos, nós podemos por estes bens livres agradar nosso Bendito Mestre.

68) Aquele que honra o celibato e a virgindade deve manter seus lombos cingidos e sua lâmpada acesa (cf. Lucas 12:35). Ele mantém seu lombo cingido através do autocontrole, e sua lâmpada acesa por meio da oração, contemplação e amor espiritual.

69) Alguns dos irmãos pensam que eles estão excluídos dos bens da graça do Espírito Santo. Porque negligenciaram na prática dos mandamentos não sabem que aquele que tem uma fé não adulterada em Cristo tem em si a soma total de todos os bens divinos. Já que por nossa preguiça estamos longe de ter um amor ativo por Ele - um amor que nos mostre os tesouros divinos em nós - nós naturalmente pensamos que estamos excluídos destes bens.

70) Se, como disse São Paulo, Cristo habita nosso coração pela fé (cf. Efésios 3:17), e todos os tesouros da sabedoria e o conhecimento espiritual estão ocultos NEle (cf. Col. 2:3), então todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento espiritual estão ocultos em nossos corações. Eles são revelados ao coração em proporção à nossa purificação por meio dos mandamentos.

71) Este é o tesouro oculto no campo de nosso coração (cf. Mateus 13:44), que você ainda não encontrou por causa de sua preguiça. Tivesse encontrado teria vendido tudo o que possui e comprado aquele campo. Mas agora que abandonou aquele campo, passou a devotar atenção para terra das proximidades, onde não há nada senão espinhos e cardos.

72) Esta é a razão para que o Salvador diga: "Bem Aventurados são os puro de coração, porque verão a Deus" (Mateus 5:8): pois Ele está escondido no coração daqueles que nEle creem. Eles O verão e as riquezas que estão nele, quando já purificadas pelo amor e autocontrole, e quanto maior sua pureza, mais eles verão.

73) E isso é porque Ele também diz, "Vende tudo o que possui e dê esmolas" (Lucas 12: 33), "e você descobrirá que todas as coisas foram purificadas para você" (Lucas 11:41). Isto se aplica a aqueles que não mais gastam seu tempo no cuidado com o corpo, mas se esforça em purificar o intelecto (que o Senhor chama de "coração") do ódio e dissipação. Pois estes corrompem o intelecto e não permitem ver o Cristo, que nos habita pela graça do Santo Batismo.

74) Na Escritura as virtudes são chamadas 'caminhos'. A maior de todas as virtudes é o amor. Esta é a razão pela qual Paulo disse, "Agora vos mostrarei o melhor caminho de todos" (1 Cor. 12:31), aquele que nos convence a desprezar as coisas materiais e a valorizar nada transitório mais do que o que é eterno.

75) O amor de Deus é o oposto do desejo, pois ele persuade o intelecto a se controlar com relação aos prazeres sensuais. O amor ao nosso próximo é oposto à cólera, pois ele nos faz desprezar fama e riqueza. Estas são as duas moedas que Nosso Salvador deu ao hoteleiro (cf. Lucas 10:35), e que ele deveria tomar cuidado de você. Mas não seja irrefletido e se associe com ladrões; de outro modo você será espancado novamente e não deixado simplesmente inconsciente, senão morto.

76) Purifique seu intelecto da ira, rancor e de pensamentos vergonhosos, e você será capaz de perceber a morada de Cristo.

77) Quem lhe iluminou com fé na Santa, Coessencial e Adorável Trindade? Ou quem lhe fez conhecer a entrega encarnada da Santíssima Trindade? Quem lhe ensinou sobre a essência inerente dos seres incorpóreos, ou sobre a origem e consumação do mundo visível, ou sobre a ressurreição dos mortos e a vida eterna, ou sobre a glória do Reino dos Céus e o terrível julgamento? Não foi a Graça de Cristo que lhe habita, que é o penhor do Espírito Santo? O que é maior do que esta graça? O que é mais nobre do que esta sabedoria e conhecimento? O que é mais sublime do que estas promessas? Mas, se nós somos preguiçosos e negligentes, e se nós não nos purificamos das paixões que nos contaminam, cegando nosso intelecto e impedindo-nos de ver a natureza destas realidades mais claramente do que o sol, nos envergonharemos a nós mesmos e não negaremos a Graça interior.

78) Deus, que tem prometido suas bençãos eternas (cf. Tit. 1: 2) e nos concedeu o penhor do Espírito em nossos corações (cf. 2 Cor. 1: 22), nos ordenou a prestar atenção em como viver, de modo que o homem interior possa ser liberto das paixões e comece aqui e agora a gozar destas bençãos.

79) Quando você for agraciado com as mais altas formas de contemplação das divinas realidades, dê sua máxima atenção ao amor e ao autocontrole, para que assim você possa manter o aspecto passível de sua alma imperturbável e preserve a luz de sua alma em um esplendor não reduzido.

80) Ponha rédeas no poder apetitivo da alma com amor, sacie seu desejo com autocontrole, dê asas à sua inteligência com oração, e a luz de seu intelecto nunca será obscurecida.

81) Desgraça, injúria, calúnia contra a fé de alguém ou uma maneira de vida, violência, golpes e assim por diante - estas são coisas que dissolvem o amor, se elas acontecem a nós mesmos, ou a algum de nossos parentes e amigos. Aquele que perde seu amor por causa destas coisas não entendeu ainda a proposta dos mandamentos de Cristo.

82) Esforce o quanto puder para amar todos os homens. Se você não pode fazer isso, pelo menos não odeie ninguém.  Mas nem isso está em seu poder, a menos que você despreze as coisas mundanas.

83) Alguém lhe vilipendiou? Não o odeie; odeie o vilipêndio e o demônio que o induziu a fazer isso. Se você odeia o vilipendiador, você odiou o homem e assim rompeu com o mandamento. O que ele fez em palavra, você fez em ação.  Para manter o mandamento, mostre as qualidades de amor e ajude-o de qualquer modo para que ele se livre do mal.

84) Cristo não quer que você sinta ódio, ressentimento, ira ou rancor contra alguém em qualquer sentido ou em consideração a coisas transitórias. Isto é inteiramente proclamado nos quatro Evangelhos.

85) Muitos de nós são falastrões, poucos são executores. Mas ninguém pode distorcer a Palavra de Deus por sua própria negligência. Nós devemos confessar nossa fraqueza e não esconder a verdade de Deus. De outro modo nos sentiremos culpados não apenas por quebrar os mandamentos mas também de falsificar a palavra de Deus.

86) Amor e autocontrole libertam a alma das paixões; leitura espiritual e contemplação libertam o intelecto da ignorância; e o estado de oração nos coloca na presença do próprio Deus.

87) Quando os demônios vêem que desprezamos as coisas deste mundo de modo que não odiamos os homens ao considerar tais coisas, e assim nos afastamos do amor, então eles incitam calúnias contra nós. Deste modo eles esperam que, incapazes de conter nosso ressentimento, eles nos provocarão ódio a quem nos calunia.

88) Nada é mais doloroso para a alma do que a calúnia, se dirigida contra a fé ou modo de vida de alguém. Ninguém pode ser indiferente a ela, a não ser aqueles que, como Suzana, possuem seus olhos fixos em Deus. Pois apenas Deus tem o poder de resgatar do perigo, como Ele a resgatou, para convencer os homens da verdade, como ele fez no caso dela, e para encorajar a alma com esperança.

89) Na medida em que você reza com toda a sua alma para a pessoa que a escandaliza, Deus fará a verdade conhecida para aqueles que foram escandalizados pelo caluniador.

90) Apenas Deus é bom por Natureza e apenas aquele que imita Deus é bom em vontade e propósito. Pois é a intenção de tal pessoa unir sua fraqueza àquele que é bom por Natureza, de modo que possa também tornar-se bom. E assim, mesmo que injuriado, abençoe; perseguido, suporte; vilipendiado, rogue (cf. I Cor. 4: 12-13); levado à morte, rogue pelos maus. Ele faz isso tudo para não ser relapso na proposta do amor, que é o Próprio Deus.

91) Os mandamentos de Deus nos ensinam a usar coisas neutras inteligentemente. Tal uso purifica o estado de alma. Um estado de pureza gera discriminação; discriminação gera  desapego; e é do desapego que nasce o amor perfeito.

92) Se quando ocorre algum julgamento e você não consegue ignorar a culpa de um amigo, se real ou aparente, você ainda não conseguiu atingir o desapego. Pois quando as paixões que jazem no mais profundo da alma são agitadas, elas cegam a mente, impedindo-nos de ver a luz da verdade e de discriminar o bem do mal. Se você está em tal estado, você ainda não atingiu o amor perfeito, o amor que expele o medo do julgamento. (cf. João 4:18).

93) "Um amigo fiel é sem preço" (Eclesiástico 6: 15), já que ele reconhece os infortúnios de seu amigo como se fossem seus e sofre com ele compartilhando seu julgamento até a morte.

94) Amigos são muitos em tempos de prosperidade (cf. Provérbios 19:4). Em tempos de adversidade você terá dificuldade em encontrar mesmo um.

95) Deve-se amar com nossa alma a cada homem, mas deve-se colocar somente em Deus nossa esperança e servi-Lo com todas as nossas forças. Pois na medida em que Ele nos protege contra os prejuízos, todos nossos amigos nos tratam com respeito e todos os nossos inimigos ficam sem poder de nos injuriar. Mas, uma vez que Ele nos abandona, todos nossos amigos se voltam contra nós enquanto todos nossos inimigos prevalecem contra nós.

96) Há quatro caminhos em que Deus nos abandona. O primeiro é o caminho da divina dispensa, de modo que por meio de nosso aparente abandono outros que estão abandonados possam ser salvos. Nosso Senhor é um exemplo disso (cf. Mateus 27:46). O segundo é o caminho do julgamento e do teste, como no caso de Jó e José; por ele Jó se tornou um pilar da coragem e José do autocontrole (Gn. 39:8). O terceiro é o sentido da correção fraterna, como no caso de São Paulo, assim que por meio da humildade ele pôde preservar a superabundância da Graça (cf. 2 Cor. 12: 7). O quarto é o caminho da rejeição, como no caso dos Judeus, pois ao serem purificados possam ser conduzidos ao arrependimento. Todos estes são caminhos da salvação, cheio de divina benção e sabedoria.

97) Apenas aqueles que guardam escrupulosamente os mandamentos e são verdadeiros iniciados nos julgamentos divinos, não abandonam seus amigos quando Deus permite que esses amigos sejam testados. Aqueles que desprezam os mandamentos e que são ignorantes acerca do julgamento divino regozijam-se com seus amigos em tempos de prosperidade; mas quando em tempos de julgamento sofrem dificuldades, eles o abandonam e algumas vezes mesmo se colocam ao lado daqueles que o atacam.

98) Os amigos de Cristo amam a todos verdadeiramente mas não são eles próprios amados por todos; os amigos do mundo nem amam a todos nem são amados por todos. Os amigos de Cristo perseveram no amor até o fim; os amigos do mundo perseveram apenas na medida em que possam ter acesso a alguma coisa mundana.

99) "Um amigo fiel é uma forte defesa" (Eclesiástico 6:14); pois quando as coisas estão indo bem com você, ele é um bom conselheiro e um simpático colaborador, enquanto quando as coisas vão mal, ele é o mais confiável dos auxílios e o mais compassivo dos suportes.

100) Muitos disseram muito sobre o amor, mas você só irá encontrá-lo entre os discípulos de Cristo. Pois apenas ele possuem o verdadeiro Amor como mestre. "Ainda que eu tivesse o dom da profecia", diz São Paulo, "e conhecesse todos os mistérios e todo o conhecimento... e não tivesse amor, isso de nada me adiantaria" (I Cor. 13: 2-3). Aquele que possui amor possui o próprio Deus, pois "Deus é amor" (IJoão 4:8). Para Ele toda a glória dos séculos. Amém.